O Último Romance de Moravia - Reynaldo Domingos
Ferreira De: Reynaldo Ferreira
Date: sex., 16 de set. de 2022
Subject: O Último Romance de Moravia
O ÚLTIMO ROMANCE DE MORAVIA
Alberto Moravia ( 1907 - 1990 ) foi, pelos
seus romances, o maior fornecedor de argumentos
para os cineastas, que, após a queda do
fascismo, abraçaram o neo-realismo italiano, a
meu ver, o mais importante e consistente
movimento de renovação da linguagem
cinematográfica do século passado, liderado por
três realizadores de muito pulso, que foram
Vittorio De Sica, Federico Fellini e Luchino
Visconti.
Como romancista, Moravia estreou, com pouco
mais de vinte anos, em 1929, lançando " Gli
Indifferenti ", numa época, em que, além do
revolucionário triestino Ítalo Svevo ( 1861-
1921 ), amigo de James Joyce, mas desprezado
pela crítica italiana, só havia, em evidência a
obra, tida como decadentista, de Garielle
D'Annunzio ( 1863-1938 ), poeta, dramaturgo,
sedutor e apóstolo da guerra, para não dizer do
fascismo, mas que, apesar disso, inspirou
Luchino Visconti a realizar o seu último belo
filme " O Inocente" com Giancarlo Giannini.
Diante desse quadro, tendo em vista também
que Moravia era, nessa época, influente crítico
literário, não há o que estranhar no fato de
que, em 1960, outro romance de sua autoria, " La
Ciociara ", tenha inspirado Vittorio De Sica,
apoiado no roteiro de Cesare Zavattini, a
realizar " Duas Mulheres ", sucesso mundial,
interpretado por Sophia Loren e Jean Paul
Belmondo. E quatro anos mais tarde, Francesco
Maselli tenha rodado um filme, " Os Indiferentes
", baseado no romance de estreia do Moravia.
Conheci Alberto Moravia, apenas de vista, num
dos amplos cinemas de Roma, às vésperas do Natal
de 1973, em uma das concorridas sessões, a das
19,00 horas, de estreia de " Amarcord ", uma das
obras-primas de Federico Fellini. Ele estava, no
hall de entrada da sala de espetáculos, cercado
de admiradores amigos, com os quais, bem ao
estilo italiano, mantinha acalorada conversação.
Eu ainda tinha na lembrança, então, a boa
impressão, que me causara o filme " O
Conformista " (1970), de Bernardo Bertolucci,
visto no Brasil, baseado no romance homônimo
dele, com Jean-Louis Trintignant e Dominique
Sanda.
Da distância em que de mim se encontrava,
naquela noite, Moravia pareceu-me ser de boa
estampa, expansivo e cordial, o que confirmei
depois, na sala de projeção, de cadeiras
numeradas, onde me sentei, numa, que se situava
na segunda fileira atrás da dele. Na saída,
encantado como estava, com o filme de Fellini,
não o vi mais, mesmo porque só preservava, na
mente, a imagem inesquecível, para sempre, do
tio do protagonista, trepado nas grimpas de uma
árvore, gritando: - Io voglio una donna!... Una
donna! Io voglio una donna!...
Agora, um amigo, para minha surpresa,
presenteou-me com um exemplar do último romance
de Moravia, " A Mulher Leopardo ", editado, no
Brasil, pela Record, na tradução de Mário
Fondelli, com apresentação de Enzo Siciliano,
que, naturalmente, rasga elogios à obra - é a
função dele -, mas, a meu ver, nem todos
merecidos. Diz ele que Moravia trabalhou, no
romance, nos dois últimos anos de vida. Aos
amigos, ele mencionava o título, como era do seu
hábito, mas jamais revelava o assunto de que
tratava a obra.
Na manhã em que morreu, na escrivaninha havia
a última redação de " A Mulher Leopardo ", em
manuscrito,guardada numa pasta azul, já aposta
nela a palavra " fim". Segundo Siciliano, a
transcrição do manuscrito se realizou sem
dificuldades, pois a grafia do autor, que
escrevia com caneta esferográfica, era límpida,
quase sem rasura, bem espaçada, preenchendo as
páginas, de uma margem à outra. A temática,
bastante repetitiva, em toda a obra de Moravia,
é relativa à vida conjugal, a mim parecendo ser
uma diminuta variante de " O Desprezo ", que
inspirou Jean-Luc Godard, também inovador da
linguagem cinematográfica, um dos papas da "
Nouvelle Vague, desejoso de homenagear o
neo-realismo italiano, a realizar o mais linear
de seus filmes, com Brigitte Bardot, Michel
Piccoli, numa excelente interpretação, e Fritz
Lang, famoso diretor alemão.
Em " O Desprezo ", de linguagem objetiva, o
drama conjugal se desenvolve, no meio
cinematográfico, no qual corre muito dinheiro,
durante a rodagem, em Roma, de um filme baseado
na "Odisseia ", de Homero, sob a direção de
Fritz Lang. A bela mulher ( Brigitte Bardot ) do
roteirista ( Michel Piccoli ) passa a
desprezá-lo, desde que percebe estar sendo
objeto de troca dele ao produtor ( Jack Palance
) americano do filme, em busca de prestígio
profissional.
Em " A Mulher Escarlate ", de linguagem
subjetiva, a ação se desenvolve, no meio
jornalístico romano. O protagonista, também
narrador da história, Lorenzo, escreve para um
jornal, cujo proprietário, Colli, o convida para
fazerem ambos, com suas respectivas esposas, uma
viagem ao Gabão, na África, onde uma empresa de
engenharia, também de sua propriedade, constrói,
no interior, uma estrada, nas imediações de uma
densa floresta, onde habitam os pigmeus.
Lorenzo deduz logo que o convite se prende ao
desejo, não revelado, pelo dono do jornal, de
que ele escreva uma reportagem sobre o seu
vultoso empreendimento. Mas, ciumento da bela e
sedutora esposa, que tem, não esconde também o
temor de que tenha de presenciar, durante a
viagem, o enlevo que o patrão terá por ela. É,
de fato, o que vai acontecer. Só o que ele,
previamente, não poderia supor - o que também,
de fato, acontece - é que, já em Libreville, a
projetada capital, como Brasília, do Gabão, ele
passe a ser assediado pela desprezada mulher de
Colli. O que realmente deprecia a obra, a meu
ver, é a falta de um desenlace mais convincente.
A proximidade da morte impediu o autor de
fazê-lo. De qualquer forma, o apresentador, Enzo
Siciliano, tem razão, quando afirma que "
Moravia mostra ter chegado, com este romance, a
um ponto extremo da sua meditação existencial: a
vida não se conhece e nós não a conhecemos."
Grato, gratíssimo, pela leitura. Reynaldo
Domingos Ferreira |