A METAMORFOSE
“Certa manhã, ao
despertar de sonhos intranquilos, Gregor
Samsa encontrou-se em sua
cama metamorfoseado num inseto
monstruoso. Estava deitado sobre suas
costas duras como couraça e, quando
levantou um pouco a cabeça, viu seu
ventre abaulado, marrom, dividido em
segmentos arqueados, sobre o qual a
coberta, prestes a deslizar de vez,
apenas se mantinha com dificuldade. Suas
muitas pernas, lamentavelmente finas em
comparação com o volume do resto do seu
corpo, vibravam desamparadas ante seus
olhos.” (A Metamorfose, Franz Kafka,
capítulo 1).
Kafka já dizia que o
despertar é o momento mais perigoso do
dia. Pois hoje, ao lado de meus
naturais estranhamentos matinais, que às
vezes se arrastam pelo dia, fiquei
assombrada com o novo ser que vejo
surgir das notícias sobre a política
nacional. Ou seja, a metamorfose do
Estado brasileiro sob o jugo do Poder
Legislativo e sua esdrúxula influência
na gestão de governo, com olho na
manipulação dos recursos públicos. Não
em função de um bom governo. Mas em uma
esganiçada luta pelo poder e seus
benefícios, fundamentada no que tem de
pior na vida pública: a comercialização
das relações políticas. Um pacto de
governabilidade no qual o apoio que o
Executivo precisa para aprovação de seus
projetos, é trocado por cargos e outras
benesses. A máquina pública de governo é
loteada entre Partidos. A maioria deles
desejando que o atual governo não
funcione com êxito, para conseguir a
Presidência do país mais adiante.
As contribuições dos
políticos através do bom debate
democrático foram substituídas por uma
adesão irrestrita ou não, segundo as
exigências materiais dos Partidos ao
governo. Com consequências para a
representação parlamentar. Pois
ignora-se o voto do eleitor ao
aceitar cargos na máquina burocrática
federal. A representação no Congresso
perde totalmente o seu valor e
significado, na medida em que, afastado
do cargo para o qual foi eleito, o
parlamentar torna-se parte do Executivo
- que ele deveria fiscalizar. Seus
gastos de campanha, financiados pelo
Fundo Eleitoral, não serão devolvidos.
Suas promessas ao povo... vãs!
Pois bem. Não
paramos por aí! Acima de todas as
previsões que este tipo de comércio
traz à realidade política brasileira,
apareceram outros perversos contornos.
Qual seja, a intrusão dos Partidos na
autoridade da gestão governamental.
Lembremos: os indicados nem sempre
apresentam qualificação profissional
para os cargos. E alguns trazem
suspeitas quanto a atos de corrupção ou
convivências estranhas. Sendo, quase
sempre, ilustres desconhecidos no
cenário nacional. Qual a nova variável
nessa relação da qual o Executivo tem
uma profunda dependência? A perda da autoridade
governamental para demitir por justa
causa. Ela foi duramente
atingida. O que aconteceu com o Sr.
Juscelino, titular das Comunicações e do
Turismo, a sra. Daniela. O
União, partido que os indicou, assim
como o sr. Arthur Lira, Presidente da
Câmara Federal, avisaram ao governo das
consequências se eles fossem afastados
dos cargos. Houve pressão das
bancadas pela permanência do Sr.
Juscelino. Por mais que este senhor,
comprovadamente, tenha agido contra a
ética no serviço público. A chantagem
impediu o Presidente Luiz Inácio de
tomar decisões como gestor.
Ou seja, não temos
mais dois Poderes. No Brasil de hoje
vemos nascer um ser estranho, de
múltiplas facetas e pernas, fruto de uma
metamorfose simbiótica entre um
Executivo cada vez mais submisso a um
insano processo de governabilidade e um
Legislativo despudoradamente ganancioso.
Que toma de assalto as prerrogativas da
gestão federal e dos recursos. Por esta
o Sr. Luiz Inácio, Presidente do
Brasil, não esperava. Ou será que
mergulhei profundamente nos perigos do
despertar? (03/20223/luiza)