JORNALISMO ECONÔMICO (21/2/2006)
Quelle língua ist this
one?
Rolf Kuntz
Dólar opera? PIB registra? Por que
case em vez de "caso"? Câmbio tem
stress? A soja é responsável?
A linguagem do jornalismo econômico é
muito estranha, sim, e não por causa do
famigerado economês. O idioma dos cadernos
de Economia é muito menos técnico do que se
diz. É infinitamente mais próximo da fala
comum do que o código usado em matérias
sobre turfe, tênis ou informática - sem
falar, naturalmente, nos magníficos artigos
sobre conjuntos musicais de garagem. O
problema do material econômico não é a
especialização, mas a deformidade. A
linguagem é feia e repleta de vícios. É um
produto da combinação da preguiça,
principalmente dos chefes, com a precária
formação dos jovens profissionais.
O dólar subia ou caía, valorizava-se ou
desvalorizava-se, quando se escrevia em
português, Hoje em dia o dólar opera em
baixa ou em alta, assim como o índice
Bovespa. Ora, dólar não opera. O mercado
opera, vá lá, mas não a moeda, nem o índice.
Naquela era remota, o Produto Interno Bruto
aumentava ou diminuía, crescia ou encolhia,
mas não registrava crescimento nem redução.
PIB não registra. A contabilidade nacional
pode registrar a variação das chamadas
grandezas macroeconômicas. As grandezas
simplesmente variam ou não variam.
Bobagens como "registra" e "opera" têm
sido freqüentemente acompanhadas, há alguns
anos, de agressões à gramática e à sintaxe.
Verbos transitivos tornam-se repentinamente
intransitivos. "O dólar valorizou xis por
cento" passou a substituir "o dólar
valorizou-se". Outra jóia lingüística é a
tradução literal de "appreciation" e "to
appreciate". Em português, apreciação não é
sinônimo de valorização. "O real está muito
apreciado" não corresponde a "o real está
muito valorizado".
Apego à rotina
A imprensa ainda não publicou maravilhas
como "a conferência foi atendida por
duzentas pessoas" ou "fulano de tal
endereçou o problema". Mas chegará até aí,
em pouco tempo, se não mudar de rumo. Frases
com transposições literais de "to attend" e
"to address" têm sido usadas por figuras do
meio financeiro e já foram ouvidas numa
entrevista do Roda Viva.
Mas o hábito de falar e de escrever
inglês em português é cada vez mais popular.
Apresentadores de programas de rádio
recomendam aos ouvintes "dividir"
informações sobre o trânsito. Noutros
tempos, ouvintes eram estimulados a passar,
transmitir ou contar as novidades sobre
congestionamentos, acidentes etc. Mas por
que usar a velha língua portuguesa, quando o
verbo "to share" é tão bonito?
A última novidade do portunglês é a
expressão "mais cedo". Dizia-se ou
escrevia-se na antigüidade: "O presidente da
República discutiu a nova MP com o ministro
da Fazenda durante o almoço. Antes (ou antes
disso) havia recebido o embaixador da
Bulgária". Na modernidade a linguagem é
outra: "O presidente da República (...).
Mais cedo, recebeu o embaixador da
Bulgária". Pode-se apenas conjecturar sobre
o início dessa onda. Alguém deve ter
traduzido "earlier" como "mais cedo", em vez
de usar o tradicional "ante disso". A
bobagem pegou. Boas idéias não pegam ou só
pegam depois de décadas ou séculos.
Mas nada se compara ao noticiário online,
distribuído em pequenas notas pelas
agências. Pérolas como "dólar de lado à
espera do payroll" são rotineiras.
"Payroll", naturalmente, é a informação,
distribuída pelo governo americano, com
regularidade, sobre a variação do emprego
urbano (com mais precisão: não-rural).
O "dólar de lado" é uma das formas de
animação do noticiário econômico. Algumas
são expressivas e justificáveis, outras, nem
tanto. O abuso do antropomorfismo pode ser
irritante. "A soja respondeu por xis por
cento das exportações" e "as vendas de
geladeiras responderam por xis por cento da
receita bruta da empresa" são fórmulas
comuns. A noção de responsabilidade, em
casos como esses, não tem sentido, mesmo
figuradamente.
Esse tipo de linguagem é apenas
manifestação de preguiça e de apego à
rotina. É escandaloso, mas profissionais de
comunicação dão pouca importância ao sentido
e ao valor das palavras. Daí o abuso, por
exemplo, de expressões como "euforia" para
descrever reações positivas no mercado
financeiro.
Valor pedagógico
Linguagem figurada não é necessariamente
ruim. A maior parte da escrita e da fala
depende do uso de imagens. A expressão
"linguagem figurada" é uma figura. O uso de
estrangeirismos também não é pecado. Mas é
tolice usar palavras como "case" e "delivery"
para substituir termos correntes como "caso"
e "entrega".
Há mais de trinta anos, o estudo de caso
era rotineiro na Escola de Administração de
Empresas da FGV, em São Paulo. Nenhum
professor usava a expressão "case studies",
embora a técnica fosse originária de
universidades americanas. Muitos docentes da
EAESP-FGV faziam mestrado ou doutorado
nessas universidades. Mas voltavam falando
português e isso era considerado
perfeitamente normal. Os alunos tinham de
ler inglês, espanhol e francês, porque a
bibliografia em língua portuguesa era
escassa e, em grande parte, desatualizada.
No entanto, não pareciam julgar necessário o
abuso de estrangeirismos.
Fazem falta aqueles chefes de reportagem
desbocados de antigamente. Algumas de suas
lições eram inesquecíveis. Que "foca"
voltaria a usar a expressão "via de regra",
depois do ouvir do chefe a explicação de seu
significado em termos anatômicos? Antes
disso, naturalmente, o dedicado instrutor
havia rasgado e jogado no lixo a matéria. O
teatrinho tinha valor pedagógico. O padre
Anchieta sabia disso no começo da
colonização do Brasil. Só não falava
palavrões, mas ninguém é perfeito.