Theresa Catharina de Góes Campos

 

AS CHAVES DE CASA

Há algum tempo não se via um filme italiano tão importante como “As Chaves de Casa”, de Gianni Amélio, inspirado no romance “Nati due volte”, de Giuseppe Pontiggia, que narra, com apuro técnico e atuações magistrais, a tentativa de reaproximação de um jovem pai do filho excepcional, de 15 anos de idade, que ele abandonara desde que nascera, trazendo à reflexão a questão do compromisso do indivíduo para com a família e o respeito dele para consigo próprio, com base em roteiro de Sandro Petraglia e Stefano Rulli.

É por isso um filme duro, doloroso, sem complacência para com o espectador sequer na seqüência final, pois, não o contempla com ilusões passageiras de que, retomada a viagem, ao final da estrada, entrecortada por fiordes, na Noruega, os personagens, pai e filho, superarão seus problemas, suas diferenças. É possível que o pior ainda esteja por acontecer, muito além da percepção do espectador, segundo vaticina o canto “Deus do Fogo e da Justiça”, de Osvaldo Almeida e Geraldo Lima  – ouvido desde a seqüência anterior, que acompanha ainda os créditos finais do filme – na interpretação da mezzo-soprano baiana, Virgínia Rodrigues.

Foi com “As Chaves de Casa” (2004) que, pela quarta vez, Gianni Amélio – um nome para não se esquecer - de sessenta e um anos, nascido na Calábria, representou a Itália, sem êxito, como concorrente ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, sendo as anteriores com os filmes:  “As Portas da Justiça” (1990); “Ladrão de Crianças” (1992) e “América” (1994). O filme, entretanto - que tem, por exemplo, excelente fotografia de Luca Bigazzi - conquistou diversos outros prêmios internacionais e nada menos que sete indicações ao Prêmio David di Donatello, da Academia do Cinema Italiano.

Gianni Amélio começou a fazer cinema como assistente de direção de westerns italianos na década de sessenta, época em que Sérgio Leone realizou sua obra-prima “Era uma vez no Oeste”. Mas foi em 1970, que estreou na direção com um filme experimental para a televisão italiana, intitulado “La Fine del Gioco”, baseado em Samuel Beckett. Em 73, dirigiu “La Cittá del Sole” sobre a vida e a ópera de Tommaso Campanella, obtendo o grande prêmio do Festival de Thonon.

Embora tenha realizado um dos filmes italianos mais interessantes da década de oitenta, “Colpire al Cuore”, selecionado para Veneza, Gianni Amélio só ganharia o Leão de Ouro, concedido pelo referido Festival, em 1998, com o filme “Cosi Ridévano”, cujo argumento é semelhante ao de “Rocco e seus Irmãos”, de Luchino Visconti – morto há trinta anos -  mas que não obteve boa resposta do público. O grande prêmio do júri do Festival de Cannes, ele ganhou com “Ladrão de Crianças” em 1992. Amelio já tem pronto para ser lançado um novo filme:
La Stella Che no c´é”

A escolha do romance “Nati due volte”, de Giuseppe Pontiggia, para oferecer o argumento de “As Chaves de Casa” não foi coisa fortuita, já que a questão da paternidade é recorrente nos filmes de Gianni Amélio, pois o pai  o abandonou, quando nasceu, para ir para a Argentina à procura também do pai, que  partira e nunca mais dera notícia à família. O cineasta foi criado pela avó materna. Assim, o filme conta a história de Paolo (Andréa Rossi), um excepcional, afetado ao nascer por complicações com o parto, do que decorreu a morte da mãe de apenas 19 anos de idade.

Abandonado pelo pai, Gianni ( Kim Rossi Stuart), Andréa foi criado pelos tios maternos, os quais, entretanto, entenderam, que, passados 15 anos, os dois precisariam se conhecer e se aproximarem um do outro. Tudo é por eles providenciado para que Gianni acompanhe o filho para fazer avaliação médica em Berlim num hospital especializado. Os dois se encontram numa cabine do trem de luxo que faz o trajeto Milão-Berlim. O impacto inicial do despreparado pai é duríssimo, pois o filho, é deficiente físico, com disfunção cerebral e atrofia muscular.

Apesar disso, Andréa enfrenta a situação com certa indiferença, falando, com carinho, dos tios que o criaram – tratados pelos respectivos nomes -, da rua onde mora, do telefone de sua residência e complementa:  - O Alberto (Pierfrancesco Favine) me disse uma besteira!...Que você é meu pai. A partir daí, tem-se início a aproximação. Os dois dormem. Quando acordam, o fim da viagem está próximo. Ao chegarem a Berlim, sem falarem alemão, vão direto para o hotel e em seguida ao hospital, onde, Andréa, generoso e comunicativo, procura conhecer outros pacientes, como Nadine (Allá Faerovich), cujo caso é mais complicado que o dele. A mãe dela, Nicole (Charlotte Rampling), porém, estranha o fato de ele estar acompanhado pelo pai: - É sempre a mãe que suporta esse tipo de sofrimento!... Meu marido nem chega perto da filha – ela diz.

Gianni nega ser o pai de Andréa. Diz ser filho de um casal amigo, mas isso fica logo desmentido, quando ele, sob impacto emocional, interrompe o exame de esforço físico do garoto, o que leva Nicole – fluente em italiano, alemão e francês - a dizer-lhe que a médica reclamara, afirmando-lhe que os pais trazem sempre mais problemas para o atendimento do que os próprios pacientes. Em vista disso, no exame seguinte, relativo à epilepsia, feito durante o sono do paciente, Andréa pede que Gianni saia do quarto: Fora!...Eu vou ficar só com ele (o enfermeiro)!...
Fora do quarto. Eu não quero você aqui.

Ao contrário dos filmes americanos do gênero, que apelam e às vezes exageram do elemento emocional, “As Chaves de Casa”, seco em suas formulações, procura antes criar ambigüidades sobre o destino de pai e filho neste  mundo em que reina a intolerância. Vale observar, a propósito, que nos dois telefonemas dados por Gianni à mãe de seu  filho, Francesco, de oito meses, fica evidente a intolerância dela em relação à missão do marido com Paolo, o que coloca ainda mais dúvida acerca das reais possibilidades da convivência de ambos no futuro.

Andréa Rossi, a quem o filme é dedicado, deixa registro memorável de sua atuação como Paolo, assim como Charlotte Rampling, no papel de Nicole, exibindo o brilho de sempre. Embora mais envelhecida, a magnífica intérprete de “Porteiro da Noite”, de Liliana Cavani, continua sendo uma grande figura do cinema. Mas é o ator Kim Rossi Stuart quem realmente surpreende. Além de rigoroso preparo técnico, ele demonstra acurada sensibilidade ao transmitir ao espectador, sem cair, em nenhum momento, na pieguice, no efeito fácil, as nuanças, os detalhes mais recônditos da fragilidade de caráter de Gianni, seu personagem. Um belo e raro trabalho de interpretação, que por isso mereceu, sem dúvida, o prêmio Pasinetti de Melhor Ator do Festival de Veneza.

Vale destacar ainda que, assim como soube usar a música brasileira para imprimir dramaticidade às seqüências finais, Gianni Amélio usou também, com propriedade, a ária “Plaisir d´amour”, da ópera “Il Tedesco”, de Jean Paul Martini, interpretada por um coro de senhoras idosas, nas ruas de Berlim, por onde passeiam Gianni e Paolo – antes de empreenderem inesperada viagem à Noruega -  para lançar advertência aos jovens, a qual se ajusta perfeitamente ao tema do filme: O prazer do amor não dura senão um momento. Mas a cicatriz deixada pelo amor permanece por toda vida!... É realmente um belo filme. É ver para conferir.

REYNALDO DOMINGOS FERREIRA

www.revistabrasilia.com.br

FICHA TÉCNICA

AS CHAVES DE CASA

LE CHIAVI DI CASA

(Itália, França, Alemanha/2004)

 

Direção – Gianni Amélio

Livro – “Nati due volte”, de Giuseppe Pontiggia

Duração – 105 min.

Roteiro – Gianni Amélio, Sandro Petraglia, Giuseppe Pontiggia, Stefano Rulli

Música original – Franco Piersanti

Fotografia -  Luca Bigazzi

Edição – Simona Paggi

Elenco – Kim Rossi Stuart (Gianni), Andréa Rossi (Paolo), Charlotte Rampling (Nicole) Allá Faerovich (Nadine), Pierfrancesco Favino (Alberto), Manuel Katzy (motorista de táxi), Thorsten Schwarz (enfermeiro)     

Prêmios – Oito prêmios internacionais e nove indicações.


ELOGIOS PARA TEXTO DE REYNALDO SOBRE AS CHAVES DE CASA

De: "Antonio Augusto dos Reis Veloso"
Data: Fri, 24 Mar 2006 12:08:29 -0300
Assunto: As Chaves de Casa

Caro Reynaldo,

Só agora estou dando a primeira notícia sobre o seu precioso comentário a
respeito do filme “As chaves de Casa”, de Gianni Amélio. Confesso que li muita coisa sobre a matéria, mas nada que se compare ao cuidadoso relato que você fez, com o nível de detalhes que valoriza toda a sua avaliação e, de certa forma, enriquece a sensação de quem a lê sem ter visto ainda o filme.
Este é o meu caso. Pretendo ver o filme no decorrer da próxima semana.
Voltarei, após isso.
O abraço e os cumprimentos pelo texto.

Antonio A. Veloso


De: REYNALDO FERREIRA [mailto:reydferreira@hotmail.com]
Enviada em: sexta-feira, 17 de março de 2006 06:38
Assunto: As Chaves de Casa


Repassando, amigos, comentário sobre o filme "As Chaves de casa". De Gianni Amelio, RDF
 

 

Jornalismo com ética e solidariedade.