AS CHAVES DE CASA
Há algum tempo não se via um filme italiano
tão importante como “As Chaves de Casa”, de
Gianni Amélio, inspirado no romance “Nati
due volte”, de Giuseppe Pontiggia, que
narra, com apuro técnico e atuações
magistrais, a tentativa de reaproximação de
um jovem pai do filho excepcional, de 15
anos de idade, que ele abandonara desde que
nascera, trazendo à reflexão a questão do
compromisso do indivíduo para com a família
e o respeito dele para consigo próprio, com
base em roteiro de Sandro Petraglia e
Stefano Rulli.
É por isso um filme duro, doloroso, sem
complacência para com o espectador sequer na
seqüência final, pois, não o contempla com
ilusões passageiras de que, retomada a
viagem, ao final da estrada, entrecortada
por fiordes, na Noruega, os personagens, pai
e filho, superarão seus problemas, suas
diferenças. É possível que o pior ainda
esteja por acontecer, muito além da
percepção do espectador, segundo vaticina o
canto “Deus do Fogo e da Justiça”, de
Osvaldo Almeida e Geraldo Lima – ouvido
desde a seqüência anterior, que acompanha
ainda os créditos finais do filme – na
interpretação da mezzo-soprano
baiana, Virgínia Rodrigues.
Foi com “As Chaves de Casa” (2004) que, pela
quarta vez, Gianni Amélio – um nome para não
se esquecer - de sessenta e um anos, nascido
na Calábria, representou a Itália, sem
êxito, como concorrente ao Oscar de Melhor
Filme Estrangeiro, sendo as anteriores com
os filmes: “As Portas da Justiça” (1990);
“Ladrão de Crianças” (1992) e “América”
(1994). O filme, entretanto - que tem, por
exemplo, excelente fotografia de Luca
Bigazzi - conquistou diversos outros prêmios
internacionais e nada menos que sete
indicações ao Prêmio David di Donatello, da
Academia do Cinema Italiano.
Gianni Amélio começou a fazer cinema como
assistente de direção de westerns
italianos na década de sessenta, época em
que Sérgio Leone realizou sua obra-prima
“Era uma vez no Oeste”. Mas foi em 1970, que
estreou na direção com um filme experimental
para a televisão italiana, intitulado “La
Fine del Gioco”, baseado em Samuel
Beckett. Em 73, dirigiu “La Cittá del
Sole” sobre a vida e a ópera de Tommaso
Campanella, obtendo o grande prêmio do
Festival de Thonon.
Embora tenha realizado um dos filmes
italianos mais interessantes da década de
oitenta, “Colpire al Cuore”,
selecionado para Veneza, Gianni Amélio só
ganharia o Leão de Ouro, concedido pelo
referido Festival, em 1998, com o filme “Cosi
Ridévano”, cujo argumento é semelhante
ao de “Rocco e seus Irmãos”, de Luchino
Visconti – morto há trinta anos - mas que
não obteve boa resposta do público. O grande
prêmio do júri do Festival de Cannes, ele
ganhou com “Ladrão de Crianças” em 1992.
Amelio já tem pronto para ser lançado um
novo filme: La
Stella Che no c´é”
A escolha do
romance “Nati due volte”, de Giuseppe
Pontiggia, para oferecer o argumento de “As
Chaves de Casa” não foi coisa fortuita, já
que a questão da paternidade é recorrente
nos filmes de Gianni Amélio, pois o pai o
abandonou, quando nasceu, para ir para a
Argentina à procura também do pai, que
partira e nunca mais dera notícia à
família. O cineasta foi criado pela avó
materna. Assim, o filme conta a história de
Paolo (Andréa Rossi), um excepcional,
afetado ao nascer por complicações com o
parto, do que decorreu a morte da mãe de
apenas 19 anos de idade.
Abandonado pelo pai, Gianni ( Kim Rossi
Stuart), Andréa foi criado pelos tios
maternos, os quais, entretanto, entenderam,
que, passados 15 anos, os dois precisariam
se conhecer e se aproximarem um do outro.
Tudo é por eles providenciado para que
Gianni acompanhe o filho para fazer
avaliação médica em Berlim num hospital
especializado. Os dois se encontram numa
cabine do trem de luxo que faz o trajeto
Milão-Berlim. O impacto inicial do
despreparado pai é duríssimo, pois o filho,
é deficiente físico, com disfunção cerebral
e atrofia muscular.
Apesar disso, Andréa enfrenta a situação com
certa indiferença, falando, com carinho, dos
tios que o criaram – tratados pelos
respectivos nomes -, da rua onde mora, do
telefone de sua residência e complementa: -
O Alberto (Pierfrancesco Favine)
me disse uma besteira!...Que você é meu pai.
A partir daí, tem-se início a aproximação.
Os dois dormem. Quando acordam, o fim da
viagem está próximo. Ao chegarem a Berlim,
sem falarem alemão, vão direto para o hotel
e em seguida ao hospital, onde, Andréa,
generoso e comunicativo, procura conhecer
outros pacientes, como Nadine (Allá
Faerovich), cujo caso é mais complicado que
o dele. A mãe dela, Nicole (Charlotte
Rampling), porém, estranha o fato de ele
estar acompanhado pelo pai: - É sempre a
mãe que suporta esse tipo de sofrimento!...
Meu marido nem chega perto da filha –
ela diz.
Gianni nega ser o pai de Andréa. Diz ser
filho de um casal amigo, mas isso fica logo
desmentido, quando ele, sob impacto
emocional, interrompe o exame de esforço
físico do garoto, o que leva Nicole –
fluente em italiano, alemão e francês - a
dizer-lhe que a médica reclamara,
afirmando-lhe que os pais trazem sempre mais
problemas para o atendimento do que os
próprios pacientes. Em vista disso, no exame
seguinte, relativo à epilepsia, feito
durante o sono do paciente, Andréa pede que
Gianni saia do quarto: Fora!...Eu vou
ficar só com ele (o enfermeiro)!...Fora
do quarto. Eu não quero você aqui.
Ao contrário dos
filmes americanos do gênero, que apelam e às
vezes exageram do elemento emocional, “As
Chaves de Casa”, seco em suas formulações,
procura antes criar ambigüidades sobre o
destino de pai e filho neste mundo em que
reina a intolerância. Vale observar, a
propósito, que nos dois telefonemas dados
por Gianni à mãe de seu filho, Francesco,
de oito meses, fica evidente a intolerância
dela em relação à missão do marido com
Paolo, o que coloca ainda mais dúvida acerca
das reais possibilidades da convivência de
ambos no futuro.
Andréa Rossi, a quem o filme é dedicado,
deixa registro memorável de sua atuação como
Paolo, assim como Charlotte Rampling, no
papel de Nicole, exibindo o brilho de
sempre. Embora mais envelhecida, a magnífica
intérprete de “Porteiro da Noite”, de
Liliana Cavani, continua sendo uma grande
figura do cinema. Mas é o ator Kim Rossi
Stuart quem realmente surpreende. Além de
rigoroso preparo técnico, ele demonstra
acurada sensibilidade ao transmitir ao
espectador, sem cair, em nenhum momento, na
pieguice, no efeito fácil, as nuanças, os
detalhes mais recônditos da fragilidade de
caráter de Gianni, seu personagem. Um belo e
raro trabalho de interpretação, que por isso
mereceu, sem dúvida, o prêmio Pasinetti de
Melhor Ator do Festival de Veneza.
Vale destacar ainda que, assim como soube
usar a música brasileira para imprimir
dramaticidade às seqüências finais, Gianni
Amélio usou também, com propriedade, a ária
“Plaisir d´amour”, da ópera “Il
Tedesco”, de Jean Paul Martini,
interpretada por um coro de senhoras idosas,
nas ruas de Berlim, por onde passeiam Gianni
e Paolo – antes de empreenderem inesperada
viagem à Noruega - para lançar advertência
aos jovens, a qual se ajusta perfeitamente
ao tema do filme: O prazer do amor não
dura senão um momento. Mas a cicatriz
deixada pelo amor permanece por toda
vida!... É realmente um belo filme. É
ver para conferir.
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
www.revistabrasilia.com.br
FICHA TÉCNICA
AS CHAVES DE CASA
LE CHIAVI DI CASA
(Itália, França,
Alemanha/2004)
Direção – Gianni Amélio
Livro – “Nati due volte”, de
Giuseppe Pontiggia
Duração – 105 min.
Roteiro – Gianni Amélio,
Sandro Petraglia, Giuseppe Pontiggia,
Stefano Rulli
Música original – Franco
Piersanti
Fotografia - Luca Bigazzi
Edição – Simona Paggi
Elenco – Kim Rossi Stuart (Gianni),
Andréa Rossi (Paolo), Charlotte Rampling
(Nicole) Allá Faerovich (Nadine),
Pierfrancesco Favino (Alberto), Manuel Katzy
(motorista de táxi), Thorsten Schwarz
(enfermeiro)
Prêmios – Oito prêmios
internacionais e nove indicações.
ELOGIOS PARA TEXTO DE REYNALDO SOBRE AS
CHAVES DE CASA
De: "Antonio
Augusto dos Reis Veloso"
Data: Fri, 24 Mar 2006 12:08:29 -0300
Assunto: As Chaves de CasaCaro
Reynaldo,
Só agora estou dando a primeira notícia sobre o
seu precioso comentário a
respeito do filme “As chaves de Casa”, de Gianni
Amélio. Confesso que li muita coisa sobre a
matéria, mas nada que se compare ao cuidadoso
relato que você fez, com o nível de detalhes que
valoriza toda a sua avaliação e, de certa forma,
enriquece a sensação de quem a lê sem ter visto
ainda o filme.
Este é o meu caso. Pretendo ver o filme no
decorrer da próxima semana.
Voltarei, após isso.
O abraço e os cumprimentos pelo texto.
Antonio A. Veloso
De: REYNALDO
FERREIRA [mailto:reydferreira@hotmail.com]
Enviada em: sexta-feira, 17 de março de 2006
06:38
Assunto: As Chaves de Casa
Repassando, amigos, comentário sobre o filme "As
Chaves de casa". De Gianni
Amelio, RDF