Theresa Catharina de Góes Campos

 

 

 
LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO: O DEPARTAMENTO DA VERDADE!

De: LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO
Date: dom., 8 de out. de 2023
Subject: verdade?

O DEPARTAMENTO DA VERDADE!

O tal controle da realidade era um processo complicado que incluía um Departamento exclusivamente com este objetivo e várias estratégias. Tais como: destruir o passado, reconstruir narrativas adequadas ao Partido, destruir provas, adestrar as pessoas a interromperem o pensamento, sempre que uma ideia contrária aos estatutos legais chegava à mente. O que se chamava criminterrupção. Havia também o duplipensamento, quando se ensinava a manter sem questionamentos, dois pensamentos contrários entre si. E a criação da nova linguagem, a Novafala, que tentava retirar da linguagem comum seus significados, suas nuances, a capacidade de suscitar emoções. Assim, dizia o encarregado desta missão: “Uma palavra já contém em si mesma o seu oposto”. E, mais adiante: “Se você tem uma palavra como “bom”, qual a necessidade de uma palavra como “ruim”? “Desbom” dá conta perfeitamente do recado.” E completava, esclarecendo o objetivo final da missão: “menos e menos palavras a cada ano que passa, e a consciência com um alcance cada vez menor”.O controle ideológico, como explica Jaqueline V. Ferreira, feito através da exaltação ufanista do Partido e do povo e a manipulação psicológica. Ao lado da distorção da realidade, as sessões de dois minutos diários nos quais os trabalhadores, diante de uma tela com o rosto do inimigo traidor, deveriam mostrar seu ódio. Com palavras e gestos. Uma semana ao ano era completamente dedicada ao ódio ao inimigo, com várias festividades.Todavia, uma sociedade enraizadamente autoritária e controladora, empregava meios mais invasivos e violentos. Primeiramente, uma teletela em cada habitação, vigiando cada passo de seus habitantes. Vigilância que se estendia através dos supervisores no trabalho. Depois, vinham os métodos mais duros como espancamentos, tortura intensa, contínua e demorada. Até o quarto 102, onde os piores medos do torturado eram explorados. Personalizando a violência. Por último, o enforcamento em praça pública, assistido até por crianças. Que aprendiam desde muito cedo a delatarem seus vizinhos e pais ao Partido. Por último, estimulava-se a histeria sexual, uma vez que ela aumentava a raiva. Portanto o amor, em suas expressões de carinho, afeto, confiança, proteção e plenitude sexual, eram completamente mal vistos e obrigatoriamente evitados.Winston sabia que sua vida não tinha lugar para esperanças. Vivia pobremente, como a maioria da população. Excetuando os proletários, os trabalhadores de baixa renda, excluídos para os subúrbios mais pobres, em precárias condições. Faltava o essencial para viver, porque o estado, a Oceania, não tinha eficiência para produzi-lo. Mesmo porque, seu único objetivo era o poder pelo poder. A desesperança, o desencanto, o cansaço psicológico tomavam Winston, que trabalhava no Departamento da Verdade. Cujo objetivo era justamente fabricar mentiras, distorcendo os fatos que apareciam nos jornais, de forma que servissem aos objetivos do governo e da classe dominante. Winston gostava do trabalho pela forma como tinha de se esforçar para produzir bons textos. Sem poder levar em conta os objetivos, pois corria o risco de morrer. A história do personagem é muito rica e o amor lhe concede a única oportunidade de experimentar uma certa alegria e plenitude física.

A leitura me leva a divagar. Estaríamos preparados para viver em uma sociedade totalitária? Qual seria nossa reação? O medo dobraria nossa ânsia de viver? Salvo engano, não vivemos algo um pouco parecido? A distorção da verdade, substituindo-a por mentiras, é estratégia conhecida de todos nós. E não é de agora. O que tivemos de diferente entre nós, no passado mais recente, é que nós quase criamos um Departamento da Verdade, ao contrário. Quando se estruturou um grupo com organização e recursos e o objetivo de falsear julgamentos e criar confusão, divulgando mentiras. O que nos fez retroceder em civilidade e democracia e, até hoje, ter uma parcela da população se recusando a pesquisar os fatos. E quanto a nossa Justiça? Quando, ao contrário do que promete, se faz lenta e protege ricos e políticos influentes, anulando processos ou atrasando decisões? E extingue a prisão em segunda instância? Ou o poder econômico que compra consciências e consegue benefícios e isenções tributárias para “produzir” mais, em uma sociedade empobrecida? Ou o discurso democrático, quando nosso voto soberano é trocado por emendas e cargos no Executivo. Executivo que, por dever constitucional, o Parlamento tem de fiscalizar? E a estrutura de privilégios e mordomias a atravessar toda a máquina burocrática de governo nos três poderes, extorquindo os nossos impostos, em um país sem recursos e considerado um dos mais injusto do mundo? Com uma dívida interna impagável?

“A realidade não é externa é interna”, dizia o Grande Irmão. Mas, e o conceito de verdade como julgamento objetivo sobre a realidade? Se a realidade é interna, ela é manipulável. Você não pode mudar fatos, você muda sua interpretação sobre eles. Mas a verdade dos fatos permanece inalterável. Para quem quer vê-la.

Por fim, que castigos nos são dados para aderirmos tão silenciosamente às injustiças e mentiras que politicamente absorvemos em nossa realidade atual? Pois os pobres, e cerca de 30 milhões de pessoas que passam fome, decerto sabem o que é desespero. O quarto 102, cuja tortura era personalizada, está ativo hoje, quando alguém não pode comprar o remédio para seu filho doente, quando não tem comida para satisfazer sua fome, nem energia, nem casa nem água. Sem água pois, segundo investigação recente da Folha de S. Paulo, as emendas parlamentares, por serem decisões pessoais dos parlamentares (com nossos recursos), favoreceram uns municípios e outros, não. Então, aquela dona de casa tem de perder duas horas para buscar água para beber e dar a seus filhos. Experimente estar doente em um município pobre e corrupto, sem assistência médica decente – você sentirá a morte chegar sem nada poder fazer. Lembre as mortes em nossas ruas pela ausência de policiamento ostensivo.

O livro “1984” foi escrito por George Orwell e publicado em 1949, poucos meses antes da morte do autor por tuberculose. George tinha uma imensa aversão pelos regimes totalitários. Pela própria experiência pessoal. Considerada uma assustadora distopia, o livro se transformou em um sucesso estrondoso de público. “Se queres uma imagem do futuro, pensa em uma bota pisando o rosto humano”. A bota que calçamos todos nós. E, por fim, Winston pensou que “as únicas características indiscutíveis da vida moderna não eram a sua crueldade e falta de segurança, mas simplesmente sua precariedade, sua indignidade, sua indiferença.” (out/2023/luiza)

 

Jornalismo com ética e solidariedade.