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PONTO FINAL
MUDANÇA DE RUMO E DE PAISAGEM
Em “Ponto Final” (Match Point), Woody Allen, ao
fazer homenagem a Alfred Hitchcock, mestre do
suspense, demonstra que, no cinema, personagens
existem em função de uma idéia, deixando
evidente ao mesmo tempo que o espírito de uma
obra literária pode ser transposto para um filme
sem que necessariamente seja ela adaptada à
linguagem cinematográfica, como, no caso, o
romance “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski.
Woody Allen, que é, nos tempos atuais, um dos
melhores cronistas da vida novaiorquina, como o
foi, no século XIX, seu conterrâneo, Henry
James, também poderia dizer, como ele, ao início
de um de seus romances, depois de atravessar o
Atlântico, que “há poucas paisagens mais
fascinantes do que as avenidas de Hyde Park numa
bela tarde de junho”.
A mudança de paisagem de fato fez muito bem a
Woody Allen, que, ao que se percebe, usou, como
foi dito, idéia de Dostoiévski, para prestar
sensível homenagem à estética cinematográfica do
britânico Alfred Hitchcock, jamais premiado com
o Oscar, sem se esquecer, contudo, da histórica
passagem por Hyde Park do italiano Michelangelo
Antonioni, com o seu clássico “Blow Up”,
de que faz ligeira citação.
Mas a influência da linguagem de Hitchcock em
“Ponto Final” é de tal ordem que, em algumas
tomadas externas, panorâmicas, tem-se impressão
de que, como acontece em seus filmes, ele, de
repente, vai atravessar uma das avenidas da
City londrina ou descer de um ônibus de
Piccadilly ou de um carro que estaciona em
St. Jame´s Street.
Algumas outras características do mestre do
suspense estão preservadas por Woody Allen,
nesse seu belo filme, de excelente acabamento
formal, que são: a obsessão pelos teatros – no
caso, os de ópera – e o uso da iluminação de
cena para criar atmosfera consentânea com o
estado psicológico do personagem em evidência,
como, por exemplo, em “Suspeita”. Além disso,
poucos cineastas foram mais pregadores da
doutrina cristã, em Hollywood, do que Hitchcock,
que em sua obra-prima, “A Tortura do Silêncio”
(1953), fez o padre Michael Logan (Montgomery
Clift) indagar, com duplo sentido, do Sacristão
- O que você fez de sua Alma?.... – ao
vê-lo abraçado à mulher, chamada Alma, que
acabara de matar.
A idéia que comanda a lógica do filme “Ponto
Final” é, pois, a de que o crime traz implícita
a expiação ao criminoso, o qual, por questão de
consciência, segundo a filosofia cristã, mesmo
que lhe falhe a justiça dos homens, jamais
conseguirá livrar-se de sua vítima. Como
punição, sua presença o perseguirá durante toda
a vida. Essa é a idéia de “Crime e Castigo”, de
Dostoiésvski, que, em outro romance, perseguindo
o mesmo tema, forjou o nome de uma família, os
Karamazóvi, composto do substantivo kara
(castigo, punição) e do verbo mazat
(sujar, não acertar, errar, conspurcar), ou
seja, aquele que, por um comportamento errado,
provoca a própria punição. Poucos escritores
pregaram a doutrina cristã tão bem como o fez
Dostoiévski em toda sua obra, sendo por isso
colocado no index das autoridades da
extinta União Soviética.
Como cinema é espetáculo, o personagem do filme,
o irlandês, Chris Wilton ( Jonathan Rhys-Meyers),
é um ex-tenista, de gostos refinados, como a
ópera, que vive e trabalha em ambientes de alto
estilo, de moderna arquitetura, em Londres, ao
contrário de Raskólnikov - o do romance - que
morou em sombrios becos e vielas de Petersburg,
na Rússia czarista. É evidente que Chris não tem
capacidade para ser infeliz. Não se importuna
nem mesmo com as futilidades da aristocracia
inglesa, à qual se integrou depois que se casou
com Chloe (Emily Mortimer), irmã de um ex-aluno
de tênis, Tom Hewett (Matthew Goode), ambos
bastante fleumáticos, filhos de um rico
empresário, Alec Hewett (Brian Cox). É por essa
razão também que - como observaria Henry James,
se visse o filme - ele pode arcar com o risco,
uma vez que acredita, segundo diz, que
é melhor ser homem de sorte do
que um homem bom.
É para ressaltar esse
aspecto voluntarioso de Chris Wilton que Woody
Allen usa, por exemplo, comentário de música
operística, pois é a ópera a mais passional de
todas as artes. A que mais guarda vínculos com a
tragédia grega, como a de Sófocles, citado
também por Chris, quando diz que, para ele, a
melhor dádiva seria se não houvesse nascido. A
escolha da ária “Una furtiva lagrima”, de
Gaetano Donizetti, da ópera L´elisir d´amore,
na interpretação de Caruso, numa gravação
antiga, com ranhuras no disco, tem o sentido de
dizer que, apesar do meio evoluído em que vive,
Chris é um ser antiquado, sem controle
emocional, que age por impulsos interiores
primários, imprevisíveis. A iluminação que
atinge seu rosto ao descer uma escada e a
projeção de sua sombra na parede numa noite de
insônia, à maneira de Hitchcock, são recursos
usados também para ressaltar a angústia do
personagem.
É Chris quem personifica a idéia do filme, tendo
por isso estudo mais aprofundado de sua
personalidade pela direção do que os demais
personagens, quase todos meros estereótipos, com
exceção, é claro, da atriz americana, Nola Rice
(Sacarlette Johansson), objeto de sua paixão,
namorada de seu cunhado Tom Hewett. Mesmo assim
ela se define pouco, quando Chris a qualifica de
linda mulher. De imediato, Nola o contesta,
dizendo que os de sua família acham que linda é
sua irmã, que ficara nos EUA. “Sou –
acrescenta ela – uma mulher sensual, sexy,
que agrada os homens!... De sua vida, porém,
fala pouco. Sabe-se apenas que faz seguidos
testes, mas não consegue ser aprovada em nenhum
deles, mora num bairro pobre e violento de
Londres e confidencia para Chris que sua mãe
bebia muito. Por sinal, todos os personagens de
“Ponto Final” bebem bastante, de tudo, inclusive
“caipirinha”, que – ressalte-se - não é a única
menção ao Brasil, pois, quando os dois casais
combinam ir a um cinema é para ver “Diários de
Motocicleta”, de Walter Salles Júnior.
Há de se notar ainda o brilhantismo dos diálogos
- secos, enxutos e eficientes - que em nada
trazem lembrança da arenga de outros filmes em
que Woody Allen causava até certo aborrecimento
ao vergastar, com insistência, sua
ancestralidade judaica. Os atores estão bem – o
que demonstra o bom trabalho da diretora de
elenco Juliet Taylor - mas sem nenhum destaque
especial, a não ser Scarlette Johansson, bonita
e sensual, cujo tipo se ajusta perfeitamente às
heroínas de Hitchcock (Grace Kelly, Tippy Hedren,
Joan Fontaine), como às de Woody Allen (Mia
Farrow, Helena Bonham Carter, Claire Bloom),
tanto assim que, ao que consta, está rodando
outro filme com ele. Em suma, “Ponto Final”,
além de ser um dos melhores filmes de Woody
Allen – possivelmente sua obra-prima - indica
uma mudança de rumo para melhor em sua notável
carreira de cineasta. É ver para conferir.
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
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