Theresa Catharina de Góes Campos

 

 

 
 EU - MULHER

De: LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO
Date: sex., 1 de dez. de 2023
Subject: conceição

EU - MULHER

Assim, Conceição Evaristo intitula o poema da página 23 de seu livro “Poemas de Recordação e outros movimentos.” E ela fala sobre ser mulher: “Uma gota de leite/ me escorre entre os seios. / Uma mancha de sangue / me enfeita entre as pernas. / Meia palavra mordida/ me foge da boca. / Vagos desejos insinuam esperanças. / Eu – mulher em rios vermelhos / inauguro a vida. / Em baixa voz / violento os tímpanos do mundo / Antevejo. / Participo. / Antes – vivo / Antes – agora- o que há de vir. / Eu – fêmea matriz. / Eu força motriz /Eu – mulher / abrigo da semente /moto – contínuo / do mundo.”

Versejando, a filosofar sobre sua condição de mulher, Conceição abre fronteiras. Navega pelo ser feminino com a delicadeza das ninfas, com a ternura das mães e com a firmeza de como deveríamos ser. Altivas, abertas ao mundo, livres e fortes, sem perder a compreensão e a delicadeza que se fazem necessárias nas coisas da vida.

O leite e o sangue que nos fazem semente; em cujos momentos nos tornamos criadoras, estimuladas pela força e a capacidade de conter em si intenções e sentidos. Ao mesmo tempo em que ouvimos e procuramos entender e aceitar. Como explica o Aurélio em relação ao verbo compreender. E como dizia a nossa maravilhosa atriz, já falecida. Ela achava que nos períodos menstruais a mulher florescia em entendimentos. E quando aleitamos, é como se o mundo parasse um pouco, e somente a mãe e seu filho estivessem presentes. Em um encontro infindo.

O leite e o sangue, o modo como abrimos fronteiras, como lutamos por nossa família, tudo parece opaco quando nos perdemos em objetivos mais imediatos. Quando deixamos que companhia masculina, dinheiro e aparência nos estrangulem como garras de um monstro invisível, a nos alienar do presente. Desta forma nos alienando do futuro. É como se perdêssemos nossa essência feminina. Perdêssemos a consciência do Eu.

Pois, diz Conceição, “Apelidaram-me um dia de Ave-serena. Fui então observar a serenidade das aves. Observei noites e dias. E aprendi que, se a serenidade for a condição prima da ave, a ela, mesmo em momentos de profunda tormenta, caberá reaprumar o corpo, avaliar a condição de voo e de pouso, e seguir adiante.” E ela termina dizendo que: “À ave serena não é permitido cultivar o engano, ela sabe que o amor – dom maior da serenidade e do desespero – se realiza ou se anula por um triz.”

Dos nossos anseios e sonhos a poeta fala: “Na escuridão da noite/ meu corpo igual, / boia lágrimas, oceânico, / crivando buscas/ cravando sonhos/ aquilombando esperanças/ na escuridão da noite.” Corpo esquecido, vilipendiado, corpo de todas nós que se transforma em objeto, mercadoria, muitas vezes com nossa aquiescência. Corpo sobre cujos mistérios criadores se faz silêncio. Se interditam nossos saberes sobre ele, constrangem nossa liberdade de falar sobre nossos períodos de vida: a menstruação, o leite, a menopausa. O silêncio é mais uma forma de alienação e exclusão.

Conceição fala de esperança em seu poema “A roda dos não ausentes”: “E da história que me resta/ estilhaçados sons me esculpem/ partes de uma música inteira. / Traço então a nossa roda gira-gira / em que os de ontem, os de hoje, / e os de amanhã se reconhecem/ nos pedaços uns dos outros. / Inteiros.” Bendita seja! ( nov/2023/luiza)

 

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