J.R.Guzzo: De delírio em delírio -
revistaoeste.com (March 15, 2024) Guzzo - De
delírio em delírio
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March 15, 2024
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O ministro Alexandre de Moraes, que nomeou a
si próprio como a maior autoridade pública que o
Brasil já teve em toda a sua história, e viu os
donos do Estado brasileiro baixarem a cabeça
diante de qualquer coisa que ele mandasse fazer,
acabou se metendo em território desconhecido.
Não sabe, ou não quer, ou não pode mais, voltar
à única situação que a lei lhe permite — a de
ministro do Supremo Tribunal Federal, com a
obrigação de fazer com que a Constituição seja
obedecida. Se deixou de ter existência legal,
passa a existir, cada vez mais, só pela força.
Aparece então o problema de sempre nessas
situações: o governante que vive hoje da força
tem de ter mais força amanhã para continuar
vivo, e mais ainda depois de amanhã, e assim por
diante. Ou manda cada vez mais, ou acaba não
mandando em nada. Aí já começa a ser um perigo.
Pelas experiências recentes da política
brasileira, quem vai para o chão passa a correr
o risco automático de ir também para a cadeia.
A situação de Alexandre de Moraes tem ainda
um complicador pouco lembrado pelos cientistas,
analistas e comentaristas políticos. O ministro
é um caso, ao que parece inédito na vida pública
em geral, de personagem que considera que o modo
mais eficaz de construir uma carreira política é
fazendo inimigos. Ele não precisa apenas
acumular cada vez mais poder — precisa, também,
manter essa gente toda imobilizada pelo resto da
vida com uma tornozeleira eletrônica do tipo
pega-um-pega-geral. Tem de proibir um número
cada vez maior de brasileiros de usarem as redes
sociais. Tem de assustar cada vez mais gente com
a Polícia Federal e os seus inquéritos contra
“atos antidemocráticos”. Não pode, a propósito,
fechar nunca mais o seu inquérito perpétuo em
defesa da “democracia”. Deu-se a obrigação de
ficar contra a anistia para crimes que não foram
cometidos, e que são punidos por ele com 17 anos
de prisão — a única coisa que poderia aliviar,
pelo menos por um tempo, a sua ficha.
O ministro, mandando tudo isso que manda, não
conseguiu criar uma base política até agora. Não
tem aliados de verdade no Congresso Nacional ou
nos partidos; tem apenas um bando de coelhos com
medo dele, o que não é a mesma coisa. Mantém,
com certeza, uma espécie de abraço de afogado
com Lula, o PT e o bas-fond que sustenta os
dois, mas isso não resolve a vida de ninguém no
Brasil de hoje, e sobretudo do futuro. Lula se
convenceu de que Alexandre de Moraes vai
resolver todos os seus problemas, a começar pelo
mais fatal deles, a falta de povo e de voto. Não
tem um plano B; é ele ou é ele. Na verdade, o
presidente e seu sistema de apoio terceirizaram
para o ministro a sua permanência no governo. A
coisa que mais se ouve na esquerda brasileira
hoje em dia, para se ter uma ideia de onde foram
amarrar o burro deles, é: “Chama o Xandão”.
Dizem isso com a emoção de quem diz “vai,
Curíntia”, ou “Palestina livre”, e ficam ainda
mais agitados quando pedem “a Federal”.
É um sinal a mais do abismo moral em que a
esquerda brasileira decidiu se jogar de cabeça,
desde o choque que teve quando constatou ter
perdido as eleições de 2018. Mas não se vê com
clareza no que esta nova devoção ajuda o próprio
ministro Moraes. Ter o apoio encantado da
esquerda, com Lula junto, já não adianta grande
coisa para ele no Brasil de hoje; quando não
houver mais Lula, não vai adiantar nada. Você se
sentiria seguro se fosse Alexandre de Moraes e
tivesse de contar com o apoio dos deputados
“Lindinho”, Janones e coisa parecida para
continuar por cima? Sem Lula o que existe na
vida real é isso; não adianta procurar
mercadoria melhor, porque não vai encontrar. O
ministro é o aparelho de respirar do presidente,
a começar pela garantia de que ele jamais terá
de prestar contas perante a Justiça por nada que
faça, seja lá o que for. Mas quem será o
aparelho de respirar de Moraes? Os jornalistas
da Globo News? Nem ele deve acreditar nisso.
O delírio do “morador de rua golpista” é
apenas o resultado direto e inevitável do
delírio do “Golpe do Estilingue”, que vem do
delírio dos “atos antidemocráticos”, que vem do
delírio do tribunal que deu a si próprio a
autorização de desrespeitar qualquer lei em
vigor no Brasil
O resultado prático dessa situação extrema,
pelo que se tem visto, é que o ministro está
tendo de socar cada vez mais ficha na mesa, e
não para dobrar o ganho — mas para segurar as
fichas que tem. Subir mais, para ele, está
difícil. Subir para onde? Nem o próprio Moraes
imagina que possa vir a ser, por exemplo,
presidente da República; não conseguiria ser
eleito para presidir o Clube Pinheiros. Não pode
se declarar, ou ser nomeado, Lorde Protetor do
Brasil, ou Chefe Vitalício do Poder Moderador,
ou Czar do Sul Global; nenhum desses cargos
existe. O que há de visível para ele é continuar
onde está, e fazendo o que bem entende, até 2043
— ou por mais 19 anos, quando chegará aos 75 e à
aposentadoria obrigatória. Para conseguir isso,
é necessário que o Brasil continue igual ao que
é hoje, imóvel como uma múmia de faraó, com os
seus Lulas, e Liras, e Pachecos e sem nenhuma
mudança. Fica mais complicado ainda se você é o
homem público mais odiado do Brasil.
Uma pista que pode ser útil para deduzir a
que ponto leva essa trilha é a mais recente
realização da obra geral de Alexandre de Moraes
— a admissão, por parte dele próprio, de que
manteve na prisão durante mais de 11 meses, pelo
crime de “golpe de Estado”, um morador de rua de
Brasília. (Leia reportagem a respeito nesta
edição.) Pense 30 segundos numa coisa destas:
como é possível, em qualquer sistema minimamente
racional de Justiça do planeta, acusar um
sem-teto de “abolição violenta do Estado
Democrático de Direito”? Nem nos tribunais de
Idi Amin se tem notícia de algo parecido. É o
fundo do poço, tanto para Moraes como para o
STF, em matéria de humilhação. O que o mundo
civilizado acharia se ficasse sabendo que o
Brasil tem um magistrado e uma “suprema corte”
que funcionam assim? Mas aí é que está o
problema: o mais alto tribunal de Justiça da
nação se condenou a operar num sistema movido
por delírios contínuos e encadeados. Uma
alucinação leva à outra.
O delírio do “morador de rua golpista” é
apenas o resultado direto e inevitável do
delírio do “Golpe do Estilingue”, que vem do
delírio dos “atos antidemocráticos”, que vem do
delírio do tribunal que deu a si próprio a
autorização de desrespeitar qualquer lei em
vigor no Brasil — e assim sucessivamente, de
delírio em delírio. Os militantes de esquerda,
os intelectuais e as outras classes desligadas
do sistema de produção vêm construindo há anos a
ficção de que este laboratório do Dr.
Frankenstein fabrica democracia. É óbvio que só
consegue fabricar as aberrações em série que
estão aí. Alexandre de Moraes não é apenas o
causador disso, em companhia da maioria dos
colegas de STF — em benefício de Lula e com a
sua cumplicidade integral. É também o resultado.
Chegou a um ponto, agora, em que só consegue
agir da maneira como está agindo. Vai ter de
engatar o erro de hoje num erro maior amanhã, e
em outro maior ainda em seguida — até onde der.
É uma questão de fatos. O ato seguinte ao
Golpe do Sem-Teto, como acaba de se ver, é a
invenção de um “Centro Integrado de
Enfrentamento à Desinformação e Defesa da
Democracia”, ou CIEDDE (assim mesmo, com um “D”
a menos na sopa de letras), a ser comandado,
justamente, por Alexandre de Moraes. Por que um
país que se apresenta como a democracia mais
avançada do mundo precisaria de mais uma
repartição pública para defender “a democracia”?
Já não chega do jeito que está, com uma polícia
eleitoral que proíbe o político mais popular do
Brasil de se candidatar até o ano de 2030 — ou
que cassa deputados para cumprir um desejo
pessoal de vingança do presidente da República?
Não: o ministro Moraes acha que o TSE não é
suficiente. Esse TSE proíbe dizerem que Lula é a
favor do ditador da Venezuela. Opera as urnas
eletrônicas que não estão sujeitas a nenhum
erro. Conta os votos. Mas o ministro quis, e
levou, uma segunda força policial para as
eleições.
Só faltou incluir na sigla, além de
“enfrentamento”, expressões como “tático-móvel”,
“vigilância” e outras da mesma família. Por que
não chamar isso, logo de uma vez, de “Centro
Nicolás Maduro Para a Defesa da Lisura
Eleitoral”? Mas o que querem, como em todas as
aberrações que vão se empilhando uma em cima das
outras, está na cara de todo o mundo: obrigar o
eleitor brasileiro a votar apenas nos candidatos
que o complexo TSE-CIEDDE considera “certos”.
Isso aí, como tantas outras coisas, pode acabar
não servindo para nada — mas o problema, mais do
que tudo, está na desqualificação moral da
tentativa. O ministro Moraes quer “enfrentar”,
segundo diz, a “desinformação”. Mas para
combater a “desinformação” ele tem de dizer o
que é “desinformação”. Ninguém pode ser obrigado
a fazer ou não fazer nada que não esteja escrito
na lei — e não existe nenhuma lei que defina o
que é “desinformação”. Como fica, então? Fica,
mais uma vez, que é Alexandre de Moraes quem vai
resolver o que pode e o que não pode. É a força,
mais uma vez. Ele não acha que possa haver outra
opção.
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