O resultado final do primeiro turno das eleições legislativas franceses confirmou o favoritismo do partido de direita Rassemblement Nacional, que obteve 33,15% dos votos, seguido da aliança de esquerda Nouveau Front Populaire (NFP), que obteve 27,99% e da coligação presidencial (Ensemble) que ficou apenas na terceira posição com 20,76%. Em seguida vem ainda os Republicanos (LR) com 9,7% e outros vários candidatos de direita com 10,23%.
Na véspera dessas eleições, vi um trecho de vídeo no qual o sociólogo e escritor Demétrio Magnoli comentava sobre a ascensão do partido de Marine Le Pen e sobre a possibilidade do RN chegar ao poder:
“Normalmente, os observadores, comentaristas, a imprensa se referem ao partido de Le Pen, o Rassemblement Nationale ou Reunião Nacional como um partido de extrema-direita. Eu vivo criticando isso, porque é inércia intelectual. Como o partido foi de extrema-direita, continua-se a qualificá-lo como sendo de extrema-direita. Ele deixou de ser um partido de extrema-direita, ele se tornou um partido da direita nacionalista”, comentou Magnoli, descrevendo na sequência as ações de Le Pen que efetivaram essa mudança.
A observação dele é pertinente, por isso me surpreendi um pouco com os inúmeros comentários reprobatórios que acompanhavam o vídeo, compartilhado na rede social X do canal no qual a observação do sociólogo foi feita: “ele é um partido de EXTREMA-DIREITA, mas o Demétrio Magnoli quer saber mais”, escreveu um perfil com a arrogância expressa em letras garrafais; “Como pode essa pessoa ter voz na televisão? De um baixo nível intelectual e flerta demais com o fascismo” registrou outro; “Como vocês não vão demitir, não assistirei mais”, desabafou outra, e assim por diante, provando que a inércia intelectual não é apenas dos jornalistas, mas do telespectador e leitor também.
O que disse na televisão, Magnoli também explicou em texto, no artigo “Le Pen rompe o cordão sanitário”. Como ele lembra, a mudança de nome do Front National para Rassemblement National foi acompanhada de um redirecionamento ideológico expressivo. Quatro anos após assumir o controle do partido, Marine Le Pen expurgou o próprio pai, Jean Marie Le Pen, admirador de Pétain, um general colaboracionista. “Eu tenho vergonha que ela carregue meu nome”, declarou em 2015 Jean Marie Le Pen a propósito de Marine; “Será ele ou eu”, declarou Marine a propósito de seu pai, no mesmo contexto.
“O jornalismo continua a qualificar a RN como ´extrema direita´ ou ´ultradireita´. É um erro analítico grave, que decorre de preguiça intelectual ou vontade de externar um repúdio moral (ou da mistura de ambos), tornando inexplicável sua ascensão eleitoral. Extremistas buscam destruir as instituições políticas. Le Pen ocupa o primeiro lugar nas intenções de voto justamente porque desistiu do extremismo, refundando a RN como partido da direita nacionalista”, explicou o sociólogo no referido artigo.
A desdemonização do partido de Le Pen
Um dos fatores que explicam a ascensão eleitoral do RN é justamente o processo de “desdemonização” iniciado por Le Pen. Partindo de uma base inicialmente homogênea, com eleitores de perfil antissistema que exigem políticas radicais em matéria de segurança e identidade, o RN foi evoluindo por etapas na medida em que se desradicalizava em alguns pontos específicos.
Como Demétrio Magnoli oportunamente destacou em seu texto, Le Pen mudou quase tudo no programa partidário, desistindo do extremismo e refundando o RN como um partido de direita nacionalista.
Nesse processo, ela abrandou as hostilidades em relação à União Europeia, distanciou-se de Putin, deixou de defender a deportação em massa passando a se concentrar nas políticas de controle do ingresso de imigrantes e fez um importante gesto ao homenagear em texto o general e presidente Charles de Gaulle, além de depositar flores na Cruz de Lorraine, na praia da Normandia onde De Gaulle pisou o solo francês em junho de 1944.
Mais recentemente, a duas semanas das eleições europeias, o RN oficializou a ruptura com o partido aliado no Parlamento Europeu, o AfD, após declarações de cunho nazista de um dos representantes do partido alemão.
Tudo isso possibilitou a normalização do partido e uma conquista parcial dos eleitores da direita clássica. Muitos que jamais teriam votado no Front National de Jean Le Pen afirmam que agora é diferente.
Mais correto do que dizer que o eleitor francês se radicalizou para um extremismo à direita seria dizer que o partido que estava no extremo desse espectro se remodelou e ampliou seu eleitorado dando respostas firmes à ideologia política que se fortalecia no extremo do outro espectro político.
Constatar isso não equivale a fechar os olhos para o problema de uma direita nacionalista. O programa do Rassemblement National tem aspectos protecionistas e pontos antiliberais preocupantes, mas fica difícil compreender um fenômeno que não se nomeia bem e é preciso compreender aquilo que se quer confrontar.
O primeiro cuidado para a correta compreensão de um fenômeno é tentar usar conceitos de modo adequado. Se o objetivo é entender por que a direita nacional-populista (Le Pen, Donald Trump, Giorgia Meloni, etc.) está em ascensão, convém, como já sugerimos em artigo anterior, abrir mão do uso de expressões pouco rigorosas e abusivas como “extrema direita” ou “direita fascista”, que servem mais como xingamento de adversários políticos do que como ferramenta de análise.
Mais importante do que rotular ou estigmatizar partidos e eleitores é entender por que cada vez mais pessoas estão optando por votar dessa forma.
Wokismo, islamismo-esquerdismo e a Nova Frente Popular
As questões que, hoje, mais estruturam a opinião na Europa, de modo geral, e na França, em particular, giram em torno de identidade, secularismo, Islã, imigração e segurança. São esses fatores que motivam o francês a ir votar e são esses fatores que dividem e polarizam as posições, cada vez mais radicalizadas, à direita e à esquerda.
Pouco antes da esmagadora derrota, no Parlamento Europeu, das forças centristas de Emmanuel Macron para o partido de direita Rassemblement National, o seu presidente, Jordan Bardella, organizou o seminário “perigos do wokismo”, repetindo o tema do workshop ministrado por ele no ano passado, sedimentando, assim, a ideia de que se trata de um tema de primeira ordem para o RN.
De fato, em 2023, os deputados do RN criaram uma “associação parlamentar transpartidária contra o wokismo” visando combater a “escrita inclusiva” (uso do gênero neutro), a “propaganda LGBT nas escolas”, a “questão transgênero no esporte” e outros pontos polêmicos da agenda identitária de esquerda.
Esse tema, muitas vezes desprezado por analistas, está inegavelmente movimentando o tabuleiro político. Enquanto alguns se contentam em rotular de reacionários e conservadores aqueles que se preocupam com a expansão da chamada “ideologia de gênero”, outros transformam essa preocupação em capital político.
No seu seminário, porém, Jordan Bardella incorre no erro de considerar o wokismo uma “neurose importada.” Como bem destaca Nicholas Vinocur, editor geral do site Politico.eu, foi a própria França que lançou as bases para a ideologia Woke que agora parece liderar uma revolução global. Conforme lembra o articulista, o “wokismo, que os franceses adoram odiar, remonta a sua genealogia intelectual aos intelectuais franceses da década de 1960.”
O “movimento woke” enquanto mobilização por meio da popularização de ideias politicamente progressistas sobre gênero, raça e imigração pode ser remetido aos Estados Unidos, mas há uma ligação direta entre a ideologia woke, tal como incorporada nos campi universitários dos EUA, e a teoria pós-colonial francesa:
“Embora a ideologia woke seja um fenômeno americano, seus ancestrais nos movimentos pós-coloniais e de teoria de gênero – incluindo escritores como Judith Butler e Edward Said – estudaram com intelectuais franceses e foram fortemente influenciados pelas ideias de esquerda da França de década de 1960. Filósofos franceses como Jacques Derrida, Jean-Paul Sartre e Michel Foucault tornaram-se os favoritos do campus nos Estados Unidos”, escreve Vinocur.
O wokismo não se limita à questão de gênero. Trata-se de uma ideologia iliberal que faz parte de um quadro ético maior dentro do qual os sistemas de poder são baseados em identidades opressoras tais como “branquitude”, “patriarcado”, “colonialismo”, “heteronormatividade”, “transfobia”, etc. Essa concepção de que, quer queiramos ou não, somos estruturalmente racistas, sexistas ou transfóbicos é herança do pensamento pós-moderno e, mais especificamente, de Michel Foucault.
Foucault, que idealizava a construção de locais para “orgias de suicídio” onde aqueles que quisessem se matar poderiam se drogar e gozar à vontade antes da “experiência-limite”, Foucault, o hedonista autocentrado que admirava Marquês de Sade e o psicopata Pierre Riviere, foi também um ardoroso defensor da revolução iraniana, cujo êxito significou o estabelecimento de uma teocracia na qual ele como homossexual e bon-vivant seria sumariamente eliminado; uma teocracia que, além de oprimir seu povo (especialmente as mulheres) é uma das maiores ameaças atuais à manutenção da liberdade e da democracia no mundo.
O impulso transgressor desse pensamento paradoxal, rebelde, perturbador e quase demoníaco está presente de modo difuso na sociedade francesa e está se expressando política e partidariamente como aliança entre progressistas woke e fundamentalistas islâmicos, fenômeno que os franceses têm chamado de “islamo-gauchismo” (islamo-esquerdismo).
“O problema do Islã como força política é um problema essencial para nossa época e para os anos que virão”, profetizou Foucault em carta à revista Le Nouvel Observateur, em 1979, após sua segunda e última visita ao Irã.
Não é de estranhar, portanto, que logo após a divulgação do resultado do primeiro turno das eleições legislativas, nesse domingo, 30 de junho, militantes de extrema-esquerda tenham saído às ruas, vandalizando prédios e monumentos e misturando gritos contra o RN com gritos pela intifada, misturando bandeiras do LFI (La France insoumisse) com bandeiras da Palestina.
A Nova Frente Popular é o maior risco
As manchetes dos jornais brasileiros que abordaram as eleições na França continuam com o mantra do perigo da chegada ao poder da “extrema direita” e silenciam sobre o risco da chegada ao poder da extrema-esquerda. Aliás, eu não lembro de ter lido em qualquer veículo a expressão extrema-esquerda. No entanto, ela está aí, dando uma nova roupagem ao antissemitismo, disfarçando-o de antisionismo. Mas lá fora, felizmente, há quem veja as coisas como elas realmente são.
Em artigo assinado em conjunto, Jean-Philippe Feldman, professor de direito e advogado do Tribunal de Paris e Nicolas Lecaussin, diretor do Iref (Instituto de Investigação Econômica e Fiscal), alertaram que a vitória da aliança capitaneada pelo partido do extremista Jean Luc Mélenchon seria mais perigoso para o país do que o programa do RN; em editorial do jornal Le Figaro, Vincent Trémolet de Villers afirma que essa Frente de “indigenistas, arquivos S, apologistas do terrorismo, detratores obsessivos de Israel põe em causa os próprios princípios da República Francesa” e em manifesto intitulado “O arco republicano contra o antissemitismo”, 30 intelectuais, dentre os quais os filósofos Luc Ferry e Michel Onfray apelaram para que os franceses não votem “nesta mentirosa, falaciosa e pseudo ´Nova Frente Popular´”.
Como alguém da área de Filosofia, já um tanto cansada do ranço ideológico autoritário, partidário, mesquinho, intolerante e infantil que grassa há tempos na academia, li esse belo, duro e oportuno manifesto com certa emoção. Senti-me representada e, por isso, concluo meu texto com algumas de suas palavras, que agora faço minhas, recomendando, porém, a leitura do texto integral:
“[…] Unicamente a nossa consciência filosófica e moral, aqui abençoada com a força inalienável de um imperativo categórico na sua mais alta e nobre expressão, dita-nos nesta hora crítica, fora de qualquer espírito partidário ou escolha maniqueísta, contra qualquer interesse particular e pelo bem geral: Jamais faremos pacto com antissemitas, nem racistas de qualquer espécie!
Nunca nos aliaremos aos pró-Hamas, cúmplices sanguinários do terrorismo islâmico, nem aos anti-Israel, a única verdadeira democracia nesta região particularmente instável do mundo, e onde demasiados países, teocracias fanáticas de outra época, praticam novamente, inclusive contra qualquer progresso real pela causa das mulheres, a sharia obscurantista.
Nunca trairemos a nossa consciência como humanistas autenticamente democráticos, nem venderemos covardemente os nossos ideais por cálculos medíocres e vis de cozinha de base eleitoral. […]
O futuro da nossa democracia, da nossa cultura e da nossa civilização, no âmbito do concerto das nações, está em jogo.”
Catarina Rochamonte - colunista
O Antagonista, jornalismo vigilante |