Reynaldo Domingos Ferreira recomenda artigo de
Aylê-Salassié Filgueiras Quintão*: Apropriação
privada e liberdade de expressão De: Reynaldo
Ferreira <reydferreira@gmail.com>
Date: sex., 12 de jul. de 2024
Subject: Fwd: Grafitagem e apropriação das
praias
REPASSANDO: OPORTUNO E BELO ARTIGO DO
JORNALISTA, PROFESSOR E ACADÊMICO
AYLÊ-SALASSIÉQUINTÃO, QUE ABORDA A ABSURDA
POLÊMICA SOBRE A PRIVATIZAÇÃO DAS PRAIAS
BRASILEIRAS - AI DE TI, COPACANA ! - E LIBERDADE
DE EXPRESSÃO, QUE AGORA SOFRE OPRESSÃO NÃO SÓ DA
SUPREMA CORTE DO PAÍS, COMO DA OAB, NO PARANÁ.
LEIAM O ARTIGO, QUE NARRA TAMBÉM A HISTÓRIA DE
UM IDEALISTA, RICARDO SAUNDERS, QUE LUTOU BRAVA
E INUTILMENTE CONTRA ESSA IDEIA, A QUAL,
INFELIZMENTE PROSPEROU EM FLORIANÓPOLIS, SANTA
CATARINA.
Apropriação privada e liberdade de expressão
Aylê-Salassié Filgueiras Quintão* -
Toda essa polêmica aberta pelos políticos, em
tempos pré-eleitorais, sobre a velada intenção
de privatizar as praias brasileiras, espaço de
descanso, diversão e lazer de quase 100 milhões
de brasileiros, provoca uma boa mobilização.
Faz-me lembrar do esquecido artista plástico
Ricardo Saunders, que desencadeou, em
Florianópolis, uma campanha de denúncia contra a
apropriação particular de quase sessenta praias
da Ilha. Foram ocupadas pelas imobiliárias,
entre 1960 e 1970, entusiasmadas com a enorme
atração que exerciam sobre os argentinos . Em
São Paulo já surgiam os primeiros condomínios
privados.
Saunders, de origem paraense, morava em
Brasília, mas casara-se com a pintora
catarinense, Vera Sabino, e vivia agora em
Florianópolis. Era encantado com a paisagem da
Ilha. Durante três anos caminhou solitário pelo
seu entorno, carregando cavaletes, tintas e
pincéis, tentando recompor, em telas, a paisagem
original daquelas belíssimas praias, protegidas
como terrenos de Marinha. Seus quadros
desapareceram rapidamente.
Os incorporadores imobiliários e empresas de
engenharia, que sempre financiavam campanhas
políticas, direcionavam recursos a segmentos e
candidatos locais que melhor se acomodavam aos
seus interesses pouco explícitos, e que chegavam
à população fantasiados pela publicidade.
Isso traz à memória o nome de Ricardo
Saunders. Ninguém se lembra dele em Belém, em
Brasília, no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde
esteve também, em Florianópolis, Goiânia,
finalmente, Pirenópolis, onde morreu, aos 52
anos, por volta de 1998. Foi enterrado, sem
qualquer registro especial, quase como um
anônimo.
Curioso, habilidoso e criativo desenhista,
tinha sangue índio misturado com o de inglês.
Sua mãe era uma missionária que desembarcara na
Amazônia, na baía de Guajará, junto com outros
evangelistas britânicos. Nas suas visitas às
comunidades indígenas, terminou passando a viver
com um caboclo amazonense, seu guia, que vivia
da extração da castanha e do látex. O prolífico
casal gerou três a quatro filhos, entre eles
Ricardo, um menino esperto e virtuoso.
Desde criança, Saunders ouvia as histórias
contadas pelos pais. Nascida em Southampton, de
onde partiam os navios ingleses para o mundo,
ela falava da Inglaterra. O pai, sobre os mitos
e crenças da floresta amazônica. Menino ainda,
aquelas lendas o inspiraram a brincar de fazer
máscaras e esculturas de madeira e cascas de
coco, com expressões meio escatológicas, que
vendia pelas ruas de Belém. Havia terminado o
curso secundário, e ainda não sabia o que fazer.
Certo dia, foi atraído, casualmente, por uma
palestra de Darcy Ribeiro, ao entrar, no cinema
Olympia, em Belém. Na tentativa de atrair
estudantes para a Universidade de Brasília,
Darcy e Anísio Teixeira viajavam pelo País,
falando sobre a nova Universidade: "Pública,
livre, autônoma, laica e gratuita!" . Cursos
superiores no Brasil eram quase todos privados e
pagos. Por onde passava, Darcy fazia um
chamamento aos jovens : "Vão para Brasília! Na
UnB tem mais vagas do que candidato". Além
disso, tem alojamento e restaurante estudantil.
Saunders despertou, e resolveu perguntar a
Darcy se na UnB tinha lugar para ele. Já reitor,
Darcy respondeu afirmativamente. Ele arranjou um
dinheirinho, tomou o ônibus que já fazia o
percurso de Belém a Brasília e, uma semana
depois desembarcava no campus, carregando
algumas tralhas. duas calças de brim e três
batas com desenhos do grafismo marajoara.
Empolgou-se, de imediato, com aquele movimento
de obras e de jovens de todo o Brasil que
chegavam ali. Instalou-se no barracão do
Instituto de Artes, e logo fez amigos: Marcos
Ribas, da Comunicação, e Raquel...., das Artes.
Vez por outra pintavam uma parede por ali e,
eventualmente, deixavam sua marca em muradas
mais expostas do Plano Piloto. Teriam sido eles,
os primeiros grafiteiros de Brasília.
Ganhou uma sala no ICA, mas não tinha sequer
matrícula regular. Ali, ele, o Marquinhos e a
Raquel, desafiados por uma máquina de filmar que
ninguém usava, começaram a produzir desenhos em
quadrinhos, a partir de grafites, traçados sobre
folhas de acetato e celofane barato, apagados,
após serem filmados, para gravar novas histórias
em quadrinhos, que sumiram no meio daquelas
invasões policiais no campus.
Seus desenhos grafitados tinham um estilo
lúdico, debochado e, ao mesmo tempo,
originalíssimos. Foi dele a primeira ideia do "Eixão
do Lazer", em Brasília, que consistia em fechar
o trânsito de automóveis aos domingos e
feriados, destinando-o para o lazer das famílias
que habitavam os prédios aos lados. Ali, ele
fazia desenhos lúdicos para crianças.Achava
Brasília propícia para bicicleta. Chegou a ter
uma. E andava pela cidade procurando paredes
nuas para pintar grandes painéis, mas não tinha
vocação para a clandestinidade. As paredes
internas do shopping Conic eram suas preferidas
imaginárias. Além de proibida, a grafitagem era
vigiada pelos defensores do projeto modernista
(limpo) da Capital. Até tentou, mas foi pego, e
teve de desmanchar tudo com as próprias mãos.
O grafite brasiliense que veio, em seguida,
terminou liberado, após os prédios da avenida
W-3 amanhecerem um dia todos grafitados, sem que
a polícia descobrisse os autores. Separado da
mulher, Ricardo Saunders trocou Brasília por
Pirenópolis(Go) . A Florianópolis nunca mais
voltou depois que tomou conhecimento da
inutilidade dos seus protestos: o ensaio das
imobiliárias tornara-se realidade. Os
condomínios praianos privados terminaram
espalhados pela costa brasileira. Agora querem
mais.
*Jornalista, escritor e professor |