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De: Tereza Lúcia
Halliday
Data: Sat, 15 Apr 2006 21:47:52 -0300 (ART)
Para: Theresa Catharina Góes Campos
Assunto: Encontrado Artigo de Rachel de Queiroz
Querida Theresa Catharina:
Tenho a maior satisfação de partilhar com você o
texto procurado, que, em sua generosidade, você
ajudou a buscar, solicitando-o em seus sites.
Quem o achou foi minha mãe, Lucíola, 85 anos,
depois de revirar seus arquivos de recortes. O
texto, em tipo minúsculo, está muito
envelhecido, porém legível. Se escaneado, seria
de dificílima leitura. Então, mamãe e eu nos
revezamos no computador para digitá-lo, uma
ditando, a outra digitando, e vice-versa. O
resultado está aí no anexo.
É um texto fortíssimo e muito significativo para
ela, que tinha 19 anos quando a Segunda Guerra
Mundial começou. Mesmo no Brasil, "viveu" o
desenrolar do conflito, colada ao rádio,
sofrendo os blackouts no Recife e tendo mesmo de
antecipar seu casamento civil em 1942, para
evitar que papai fosse convocado.
Um carinhoso abraço,
Tereza Lúcia
Tereza Lúcia Halliday, Ph.D
Criação, Análise e Assessoria de Textos
www.terezahalliday.com
"Palavra quando acesa, não queima em vão".
Texto histórico de RACHEL DE QUEIROZ
sobre a Segunda Guerra Mundial
Libelo contra todas as guerras –
atualíssimo.
Publicado no Diário de
Pernambuco, domingo 26 de agosto 1945 e,
possivelmente em outros órgãos dos Diários
Associados. Na reprodução abaixo, digitada em
2006 a partir do recorte de jornal amarelecido e
quebradiço, foram respeitadas a ortografia e a
pontuação do texto original.
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MILHÕES DE BAIXAS
Rachel de Queiroz
(Para os D.A.)
Cinqüenta e cinco milhões de
baixas: foi este o custo da guerra. Cincoenta e
cinco milhões de criaturas que tinham nascido,
se criado, atravessado o mais difícil da vida, a
fim de perecerem de morte violenta ou se
inutilizarem para sempre por ato voluntário e
homicida de um seu semelhante. E nessa tarefa de
se assassinarem uns aos outros, ninguém cuidou
que fazia mal; alguns dos que guerreavam tinham
motivo altruístico ou supunham tê-lo, uns
defendiam interesses sagrados, outros obedeciam
a uma cegueira de amor patriótico ou a uma
cegueira pior do fanatismo por um homem e talvez
muitos outros aproveitaram inconscientemente a
oportunidade, deixando fartar-se o seu instinto
natural de destruir e matar.
Cincoenta e cinco milhões de
baixas: a palavra “baixas” indica em primeiro
lugar homens mortos; mas quer dizer
também feridos, desaparecidos, prisioneiros.
Aquela mulher de cara funda, por exemplo, que
deu para ir à missa e acredita que ainda lhe vai
voltar o filho que as autoridades consideram
desaparecido - aquela mulher é mãe de uma
baixa. O rapaz que se esconde no hospital, com o
rosto escalavrado e disforme, e o outro que nada
mais tem debaixo do lençol, no local onde
deveriam estar as pernas: esses rapazes são duas
baixas. Baixas eram aqueles prisioneiros
esqueléticos dos campos de concentração nazistas
e que correram o mundo em gravuras
horripilantes. Baixas os que ficaram doidos de
medo, baixas os aviadores caídos e que foram
mortos a pauladas, baixas os perdidos nas selvas
de Java, baixas os perdidos no mar, baixas os
cegos, os nevrosados, os mutilados, os incapazes
de toda espécie. E juntando-os a eles todos
temos os nossos cincoenta e cinco milhões.
Cincoenta e cinco
milhões: dois cincos e seis zeros: um número de
oito algarismos. Vivos, excederiam de dez
milhões a população total do Brasil. Se se
fosse alinhar tudo num cemitério quantas léguas
de terra cobririam? Se se amontoasse tudo numa
pira: que serra altíssima de ossos não se
levantava? Dava para fazer um Himalaia de
esqueletos. E se fôssemos reunir num rebanho
todos os vivos que têm o coração preso a essas
baixas – que nação imensa não se formaria com
filhos órfãos de pais e pais órfãos de filhos,
com mulheres sem marido, com noivas sem noivo, e
viúvos com os braços carregados de crianças sem
mãe? Agrupando-se essa gente toda, talvez daí se
pudesse preparar uma raça de homens em verdade
tementes da guerra – ou quem sabe o resultado
seria o oposto? Pode ser que saísse deles uma
raça de feras sem lei, cada um querendo vingar a
ofensa que recebeu na sua carne ou no seu
sangue.
Poder-se-iam também fundar
cidades povoadas só de mutilados – antigos moços
formosos, hoje virados em monstros; pernas
cortadas, braços amputados, olhos vazios,
pulmões furados, corpos cozinhados de
queimaduras, ou pode-se imaginar também uma
terra misteriosa onde se juntaram todos os
desaparecidos, tão inumeráveis que eles sozinhos
seriam quase uma nova humanidade. – Pode-se
imaginar tudo – cincoenta e cinco milhões é
número tão grande que comporta os delírios da
imaginação.
E a evocar mortos ou
semi-mortos, logo se pensa na vida – naquela
energia de vida que começou com o abraço criador
e passou pelo lento e difícil trabalho de
gestação e teve o seu clímax na sangrenta
tragédia do parto. Tanta dor, tanto sangue.
Cincoenta e cinco milhões de mulheres conceberam
e deram à luz no meio do sofrimento, para quê? –
para antes do tempo os seus filhos morrerem e
apodrecerem em terra estranha e lhes arrancarem
os braços e lhes esmagarem as pernas, e lhes
vasarem os olhos e lhes queimarem a pele e lhes
dilacerarem as entranhas. Só para isso os
puseram elas no mundo – esses cincoenta e cinco
milhões de dolorosas parturientes. Pensavam que
estavam fazendo vida e estavam fazendo morte.
Outro dia apareceu no
cinema um retrospecto da guerra; exércitos de
1940, 41, 42, pertencentes a uns e outros
beligerantes – alemães, polacos, franceses,
ingleses, russos – desfilando de fuzil ao ombro
ou carregando bandeiras. A gente via o relevo
dos músculos sob o pano, o brilho dos olhos sob
a pala dos bonés e dos capacetes de aço e,
nítidas como se estivessem vivas, as mãos que
seguravam as coronhas das armas. Pareciam
indestrutíveis. E onde estão agora todos esses
homens? Aquele soldado que errou o passo e se
apressou assustado, onde estará? Que será feito
daquelas pernas, daqueles corpos, daqueles ossos
rijos, Senhor? O aparelho guardou e repete o som
das vozes deles, límpidas, potentes, entoando os
seus hinos e os seus hurras. E em que campo de
neve, em que lama de trincheira, em que
cemitério, em que beirada de praia, em que fundo
de mar apodrecerão os peitos de onde saíram as
vozes que estou ouvindo agora? Coisa horrenda e
diabólica essa arte de dar movimento e voz às
sombras – o morto já morto, já lama ou pó – e a
sua sombra correndo o mundo como um fantasma,
repetindo mecanicamente os gestos da vida, as
falas da vida; e enquanto isso, talvez nem mesmo
a lembrança de muitos deles exista mais no
coração de quem os amou.
Vistos na tela, são
uma torrente de vultos, são um rio formado de
gente como nós; e no entanto, agora não são mais
nada. Por que foram escolhidos eles e não
outros? Por que tiveram exatamente que morrer os
homens de 1917, ou 1914 ou de 1919 e não os de
dez anos para trás ou de dez anos para diante?
Por que coube só a eles essa responsabilidade?
Que mal que eles fizeram, que pecado especial
pecaram? Que dívida tinham a pagar, maior que a
dos outros homens? Pois todos nascemos para
viver e morrer de velhos. Nem outro fim pode ter
a vida senão a velhice – outro fim lógico,
necessário, admissível. Cada um nasce para
cumprir o seu ciclo: e nada mais melancólico que
um caminho interrompido.
Um moço que se vê frustrado de
sua velhice é como a lagarta que jamais pôde
sair do casulo. Porque a única coisa que nos
farta da vida é, exatamente, viver, e cada um
tem, portanto, o direito de viver até enjoar a
vida, até conhecer a velhice e desejar o repouso
– até se sentir maduro para a morte.
Esses, no entanto,
tiveram que sair no meio do espetáculo: e a
ironia pior de tudo é que foram eles justamente
que pagaram para a função a entrada mais alta;
nós os gratuitos é que assistimos o fim. Nós
fomos os que gozamos da apoteose e da música. O
moço que morreu em Dunkerke ou Okinawa foi-se
embora sem conhecer o desenlace da guerra. Caiu
no meio da incerteza e jamais saberá se venceu
ou se foi vencido.
E estão por aí, na
estrada da China, nos campos da Rússia, nas
cidades da Alemanha, nas ilhas do Pacífico.
Pensemos neles,
irmãos. Antes, enquanto a guerra corria, o papel
era não pensar em nada, trincar os dentes e
tocar para frente... Agora, porém, já se pode
ter dó e saudade. Pensemos neles até que todos
nos sintamos bêbados de pensar e ter pena. É só
o que podemos dar aos que morreram: pensar um
pouco neles. Água do Pacífico, água de todos os
mares, dissolve em paz os teus mortos. Peixes e
aves, acabou-se a carne branca e a carne morena,
com gosto de whisky ou de betel, de cigarro ou
de cerveja. – Sereias do mar – é verdade que já
fazeis vossos ninhos nos submarinos imóveis?
Peixes e sereias, deixai dormir os marinheiros.
Volte o mar ao seu mistério, volte a terra à sua
paz. Água tudo encobre depressa e a terra logo
cicatriza. Mas quem irá substituir os cincoenta
e cinco milhões de baixas?
Lá temos que voltar à
velha história do abraço, da gestação e do
parto. São cincoenta e cinco milhões de vivos
que estão faltando. Amai, moços, amai.
(Rachel de Queiroz – Diário de
Pernambuco, 26/08/1945). |
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