Theresa Catharina de Góes Campos

 

 

 
LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO: O COMPROMISSO


De: LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO <luizaccardoso@gmail.com>
Date: seg., 7 de out. de 2024
Subject: Herta
O COMPROMISSO


A primeira frase do livro de Herta Muller, “O Compromisso”, é a seguinte:

“Eu fui convocada. Quinta – feira, dez em ponto.” (p.5). Assim, esclarece ao
leitor que seu livro envolve o regime de terror imposto na Romênia pelo ditador Nicolae Ceausescu durante 15 anos, no período de 1974 a 1989. Entre recordações de sua vida, a protagonista descreve suas relações com a Polícia Secreta, a Securitate. Operária em uma fábrica têxtil colocou bilhetes nos casacos dos

ternos exportados para a Itália. Os bilhetes diziam: “Case comigo”! E o seu endereço. Considerada uma grave infração é obrigada a longos interrogatórios e seu amante é perseguido. Segundo Marcelo Backes, esta Polícia Secreta e seu poder é o zahir borgiano da autora, sua obsessão nunca esquecida. O autor de “O zahir borgiano de Herta Muller” explica que Herta exprime em sua obra literária “a desesperança, sendo pontilhada de metáforas com um lirismo de locução pouco usual.”

Em “O Compromisso” a autora descreve as recordações, as lembranças de vida da protagonista durante as viagens de bonde de mais de uma hora de duração para a cidade, em direção ao prédio da Securitate, onde seria interrogada. Sua vida é descrita durante o percurso, no qual lembra sua infância, o primeiro casamento, a bela amiga Lili, companheira da fábrica, os problemas em seu trabalho e, por fim, o encontro com o atual amor de sua vida, Paul, que é um alcoolista. A autora também utiliza as palavras como forma de combate contra a injustiça do regime político sob o qual vivia. Trazendo para o leitor a falta de liberdade, o rigor da submissão a qual todos estavam limitados e as regras draconianas sobre as mulheres. Além do desconforto, a ansiedade e o medo de viver uma vida cerceada pela Polícia Secreta do ditador.

A autora aborda também as contradições e a degradação do comunismo da época, na patética figura do comunista perfumado. De cujo poder se aproveitava para extorquir cidadãos, fazendo com que perdessem suas casas e outros bens. O pai da protagonista, um velho comunista, se mostrava decepcionado: “Nos últimos tempos há mais aproveitadores no Partido do que lutadores, ele disse. No fundo, o dinheiro arruína o caráter. (P.149)

Em sua vida na Romênia, Herta participou de um grupo de estudantes universitários que lutavam contra o regime, recusou trabalhar para a Polícia Secreta e seu primeiro livro, “Depressões”, foi censurado. Em 1987, aos 24 anos, foi para a Alemanha. Sem conseguir, no entanto, se sentir adaptada ou confortável no novo lar. Na verdade, considerou a mudança de sua aldeia natal Nitzkyforf para estudar em Temesvar, o seu primeiro exílio.

No artigo “A literatura em movimento: desterro na literatura de Herta Muller”, os autores, Gerson Neumann e Monique Cunha de Araújo, citando Pérez Montanhês, apontam o “trauma do exílio refletido na perda de identidade, na dor, na fratura e no estranhamento.” Os sentimentos de desarraigamento, desorientação e deslocamento tão próprios dos exilados.

Ottmar Ette, citado pelos autores acima mencionados, afirma que Herta Muller

“com a densidade da sua poesia e a franqueza da prosa, retrata o universo

dos desapossados”. Os que deixam seus lares por circunstâncias extremas, abandonando tradição, idioma, cultura. Neumann e Araújo esclarecem que esta sensação de não – pertença converte-se nas obras de Muller em melancolia, em nostalgia. Que transpiram nas palavras da protagonista de O Compromisso: “A gente sai para dar uma caminhada e o mundo se abre. E antes que a gente tenha conseguido esticar bem as pernas, mais uma vez ele se fecha. Daqui até ali é só um liga e desliga de uma lanterna, e chamam isso de vida. Nem vale a pena calçar os sapatos.” (p.68). Mais adiante ela diria:

“O fracasso da felicidade transcorre sem erros e nos dobrou. A felicidade se tornara

um encargo, e minha felicidade errada se tornara uma espécie de armadilha”.

A limpidez, a simplicidade das palavras e as metáforas demonstram a força dramática de uma vida encurralada.

A protagonista fala da opressão e do medo. “No interrogatório fico sentada junto da mesinha, mexendo no botão e respondendo com calma, ainda que todos os meus nervos estejam zunindo.” E, mais adiante: “Ficar em casa esperando estica o tempo até quase arrebentar. E aguça o medo ao máximo.``(p.20). Trata-se da clareza de um texto que denuncia o terror da ditadura. E Maria Carolina Maia refere-se às motivações políticas na literatura de Herta, afirmando que elas foram a fonte do seu trabalho literário.

Ainda nas palavras de Marcelo Backes, Herta “não possui pruridos diante de si mesma, sempre se indignou poeticamente,” ao mesmo tempo que demonstra “uma confiança quase tocante no vigor das palavras.” De fato, Herta se desconstrói perante seus leitores, com uma liberdade interior que segue viva, intensa. Diz a protagonista sobre a relação com seu amante: “Quando me afasto dele, ele encosta em mim o seu amor, que chega tão nu que Paul nem precisa mais falar nada. Nem esperar nada. Minha aquiescência está sempre a postos, não há censura na minha língua.” (p.13). Este momento de prazer era como um suspiro de relaxamento e alegria. Dos poucos que encontrava em sua vida. Pois era difícil viver sem objetivos ou sentido. Assim, dizia: “Era mais fácil lidar com a falta de sentido do que com a falta de objetivos, então em vez de mentiras eu agora invento objetivos na cidade”. (p. 34) Ela segue mulheres de sua idade nas ruas e experimenta vestidos. “Continuei provando roupas, esperando ficar bela ao ponto de finalmente existir. Na verdade, não vou encontrar nada nas roupas que desejam comprar, muito menos a mim mesma”. (p. 35)

Creio que a protagonista de “O Compromisso” guardava dentro de si um

exílio emocional. Qual seja, o sentimento de desamparo e tristeza em suas relações familiares, o sentido de perda, a solidão, o distanciamento e a desconfiança. Talvez isso explique o fato de que nós, leitores, nunca soubemos seu nome. “Três pessoas que havia muito tempo mentiam quando falavam de si mesmas como “nós”, e quando diziam “nosso” falando de um copo, uma cadeira ou uma árvore no jardim.” (p.58) Uma família que conhecera os campos de concentração e, portanto, em suas próprias palavras, não eram negligentes, eram tristes. De uma mãe que parecia incapaz de seduzir o pai e que olhava para a filha sempre lembrando o filho que morrera. Como se preferível fosse a morte da filha em lugar do irmão. Com um rosto impassível e uma tendência à solidão. Quando seu pai falece, ela reflete sobre as mudanças em sua mãe. “Na claridade da janela ela me parece tão desconhecida que dava medo de enlouquecer, e diante da louça na pia, parecia tão conhecida que dava vontade de fugir, e assim ela vagava pela casa. Compreendi que essa tendência à solidão é para um período mais tardio da vida, e me atingira cedo demais, eu era moça demais.” (p.126)

Quanto a seu pai, a protagonista conta sobre a descoberta dos últimos pecados. Ocorre que ela sempre o acompanhava na última viagem da noite, no ônibus que ele dirigia. Ao chegar no depósito ele sempre a dispensava, mandando-a para casa. Alegando que precisava preparar o ônibus para o outro dia de trabalho. Uma noite, ao voltar ao depósito porque deixara sua bolsa, ela vê o pai em relação sexual com a amante. “Até nos últimos anos, quando estava coberto de pecados até os ossos, ele foi sempre à igreja. Eu, em seu lugar, teria ficado em casa, com aquele monte de pecados.”. (p.133) E reclamava: “Quantas vezes tive de mentir ou calar a boca para que, exatamente quando não os suportava, as pessoas que eu mais amava não deparassem com alguma desgraça. Quando eu desejava sentir um ódio eterno, a repulsa o atenuava. Entre um sopro de amor e um monte de auto acusações, eu já me entregava ao ódio seguinte. Para poupar os outros eu sempre tive inteligência bastante. Mas nunca quando se tratava da minha própria infelicidade”. (64).

Portanto, ao recordar sua vida e convivência com a família, a protagonista fala de dor, de fratura, de estranhamento, de não se reconhecer e do fracasso de sua felicidade transcorrer sem erros e se transformar em uma armadilha. Os sentimentos de uma exilada de si e dos seus, de uma estranha em relação à vida. No entanto, apesar de seus questionamentos e sofrimento, a protagonista afirma que está viva. Nos raros passeios pelos campos, no êxtase do orgasmo com Paul. E ainda aposta no futuro. Quem sabe, produto da resiliência da família, que enfrentou os campos de concentração e sobreviveu? Tristes, mas fortes. Assim, durante o seu interrogatório com o policial Albu, ela questiona. “Nós sabemos de tudo, diz Albu”. Pode ser, ela pensa. “talvez saibam tudo sobre as cascas dos mortos. Mas nada a respeito de seus segredos, seu cerne..” E completa: “Nada sobre felicidade e razão, que juntas podem causar amanhã algo que eu não consigo prever hoje. E nada sabem o que o acaso pode trazer depois de amanhã; afinal, eu estou viva...” E na continuação do interrogatório ela pensa: “Aqui eu só confio nos objetos, que não se modificam”. (p.33)

Após algum tempo, a protagonista é demitida da fábrica porque descobrem novos bilhetes nos bolsos dos ternos, desta vez contra a ditadura. Ela foi vítima de uma armação. Confiscam as ferramentas de Paul e o convocam também. Ele sofre um acidente criminoso, perde a sua moto e não pode no momento trabalhar. Ele a considera culpada, uma vez que tudo começou com sua convocação por causa dos bilhetes. Ele desce toda a noite com seus lençóis para consertar a moto. Ela se sente muito confusa. “Eu tinha mesmo perdido o juízo, todas as mercadorias se confundiam na minha cabeça. Fui até a quitanda e fiquei contente porque as batatas do caixote não se transformaram em sapatos ou pedras na balança. Levei dois quilos de batata e na cabeça a irrefutabilidade das coisas”. (p.174)

Confesso que o início da leitura me deixou confusa e desanimada. Mas ao retornar e me empenhar em descobrir as riquezas do texto, fiquei deslumbrada com esta autora que decide se desconstruir diante do leitor. Através de uma prosa leve, sofisticada, onde a beleza brota suavemente. Com uma adorável simplicidade ao compartilhar toda a nossa frágil humanidade, ao mesmo tempo que mantém a esperança, apesar da irrefutabilidade das coisas. (09/2024/luiza)
 

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