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" IMPECÁVEL. IRRETOCÁVEL. PERFEITO EM TODOS OS
ASPECTOS. É PARA LER E RELER."
J.R. GUZZO - O golpe impossível
O Supremo Tribunal Federal está impondo ao
Brasil, na base da pura força bruta, um estado
de selvageria legal jamais visto
nos seus 135 anos de existência como República.
Não se trata, infelizmente, de uma opinião.
Opiniões podem estar erradas
— frequentemente estão erradas, aliás. Fatos, ao
contrário, sempre são fatos, e existem porque
existem. Todo mundo tem o direito a acreditar
que dois mais dois são sete, digamos, ou que a
água ferve a 45 graus. É o que está dizendo o
STF.
Mas dois mais dois vão continuar sendo quatro, e
a água vai continuar fervendo a 100 graus
centígrados.
Nada a fazer, certo? Errado. O Supremo faz — e
com isso destrói o país, a lei e a ordem. O
ministro Alexandre de Moraes e
seus acompanhantes no STF querem que você
acredite que um aglomerado de 37 pessoas, a
lotação de um ônibus, quis dar
um golpe de Estado no Brasil. Não faz nenhum
nexo racional — e não vai fazer nunca. Não é
possível, de jeito nenhum, derrubar um governo
sem que pelo menos um soldado se mexa do lugar,
sem tirar um tanque da garagem e sem dar ordens
específicas a nenhuma autoridade. Ninguém,
nunca, deu um golpe militar se o Exército em
peso ficou contra esse golpe. Não dá para dar um
golpe com uma verba de R$ 100 mil. É impossível,
apenas isso.
Qualquer dúvida a respeito pode ser eliminada
com uma leitura rasa das 880 páginas de
acusações que a Polícia Federal acaba de
encaminhar à Procuradoria-Geral da República. A
polícia e o Ministério Público, no caso, são
cumpridores das ordens que recebem há dois anos
seguidos do ministro Moraes — que, por sinal, se
coloca na posição de vítima de uma tentativa de
assassinato, chefe das investigações, promotor e
juiz do processo, coisa que não existe em nenhum
país civilizado do planeta.
O total das provas reunidas pela PF,
objetivamente, está entre o zero e a raiz
quadrada do zero. O que a polícia apresentou,
após quase 700 dias de investigação, fica abaixo
do que fazia o grande Bolinha França, quando
resolvia se fantasiar de toca-discos ou de
Abominável Homem das Neves para investigar,
incógnito, as delinquências que sempre jogava em
cima do pai da Luluzinha, o simpático Sr.
Palhares. O detetive Bolinha estava errado em
100% dos seus casos; nunca acertou uma. O
inquérito do golpe está indo por aí.
Consegue ir da primeira à última palavra sem uma
única acusação lógica, sem qualquer prova que
possa ser levada a sério em qualquer parquet do
mundo democrático e, sobretudo, sem qualquer
ligação coerente com o seu denunciado número 1,
o ex-presidente Jair Bolsonaro. Tudo o que a
polícia conseguiu apresentar em seu relatório,
uma geleia geral escrita em português primitivo
e sem qualquer vestígio de análise lógica ou
vida inteligente, são conversas sem pé nem
cabeça entre um bolo de subordinados que não
tinham autoridade para dar ordens a um
guarda-noturno — nec caput nec pedes, como
diriam os
ministros em seu latinório de curso ginasial.
Eles disseram o que a PF diz que disseram? Podem
ter dito e repetido, mas e daí? Os diálogos são
apenas uma demonstração clara de tumulto mental
agravado, como essas coisas que você lê na
internet garantindo que a China tem uma base
secreta na Lua, que o Brasil precisa de um
“banho de sangue” para “limpar a política” ou
que John Lennon continua vivo em algum lugar do
mundo — é isso, e só isso.
Não há nenhuma menção ao tipo de veneno que
seria usado para matar o presidente — e nem por
que os líderes militares do golpe, todos eles
com acesso legal a armas de fogo, precisariam de
veneno para realizar o seu plano. Um padre de
Osasco
faria parte do “núcleo jurídico” do golpe. Um
padre no “núcleo jurídico”? Por que um padre? O
golpe, aliás, teria “seis núcleos”. Nenhum dos
acusados, em nenhum lugar, fala em núcleo de
coisa nenhuma. Foi a PF que inventou a coisa dos
“núcleos” —
e passou a apresentar a sua criação como prova
do crime.
Não está claro, como nunca esteve desde o começo
dessa história, por que Bolsonaro não deu o
golpe de que é acusado quando era presidente da
República e comandante em chefe das Forças
Armadas. Não há, em nenhum ponto do inquérito,
qualquer indício de que ele tenha tentado dar
alguma ordem nessa direção, nem direta nem
indireta. Se ele tinha algum
desejo real de impedir a posse de Lula e
continuar na Presidência, por que saiu do
governo, até antes da hora certa, foi
para os Estados Unidos e só depois tentou dar o
golpe — sem um único e escasso pelotão de tiro
de guerra, e com uma
turba de motoboys, barbeiros e até um autista,
em vez de generais de Exército, brigadeiros do
ar e almirantes de esquadra?
Vai saber.
A PF não oferece sugestões.
Uma das provas que menos provam alguma coisa,
mas que continua sendo apresentada pela polícia
e pelo ministro como a
jóia de sua coroa, é a extraordinária “minuta do
golpe”. É o rascunho de um pedido ao Congresso
para que fosse autorizado
um “estado de emergência”, ou coisa parecida —
pedido que jamais foi apresentado a ninguém, e
teve tão pouca importância que ficou esquecido
entre a papelada de um ex-ministro de Bolsonaro,
ele mesmo acusado do golpe. A PF também
sustenta, como se estivesse provando o crime da
mala, que os conspiradores imprimiram documentos
no Palácio do Planalto com o registro dos crimes
que iriam praticar — e se esqueceram de se
livrar deles, ou tentaram e não conseguiram. Por
que teriam imprimido provas contra si próprios?
Não há nenhuma pista.
O destino que os golpistas tinham reservado para
o ministro Alexandre de Moraes propriamente dito
permanece em mutação constante na investigação
da PF. A certa altura do inquérito ele seria
enforcado na Praça dos Três Poderes — a primeira
execução pela forca no Brasil desde 1876.
Depois, ou antes, ele seria assassinado na
estrada de Brasília para Goiânia. Na versão
atual, Moraes continua sendo morto, agora sem
maiores detalhes. Na vida real, os únicos mortos
em tentativas de
golpe até agora foram o Unabomber de Brasília,
que se suicidou com rojões de São João em frente
ao STF, e Cleriston da Cunha, o preso do “8 de
janeiro” que morreu no pátio da Papuda por falta
de atendimento hospitalar de urgência — pedido
pelos médicos e pelo próprio MP, e ignorado por
Moraes.
Quanto às vítimas reais de crimes, a única que
se conhece é o próprio Bolsonaro, agredido com
uma facada no estômago
que o levou à beira da morte em 2018.
Olhe para qualquer página do inquérito — só fica
pior. Um dos crimes que mais escandalizam Moraes
e a sua polícia é o “descrédito” nas urnas
eletrônicas do TSE. Segundo diz a maçaroca da
PF, havia até um “núcleo” só para isso, como o
do
padre de Osasco. Havia mesmo descrédito, e
descrédito feio — e continua havendo até agora,
pois milhões de eleitores simplesmente não vão
entender nunca por que seria impossível fazer
algum tipo de melhoria num artefato mecânico,
como sustenta o STF. Virou lei no Brasil jurar
fidelidade às urnas do ministro Moraes, como se
jura à bandeira, mas isso não é lei nenhuma, e
nem envolve crime nenhum — é simplesmente uma
estupidez de 400 talheres.
Que crime é este, na lei brasileira —
desconfiar, ou não gostar, de uma máquina? Não
faz nenhum nexo, mas é a acusação oficial dos
funcionários do sistema eleitoral que proibiram
Bolsonaro de disputar eleições até o ano de
2030. A partir de agora,
faz parte do X-tudo de denúncias com o qual
querem condenar o ex-presidente a um total de 28
anos de cadeia. As eleições
do STF, na verdade, não são sujeitas sequer a
escrutínio público. Os votos, para todos os
efeitos práticos, são apurados em segredo, como
na Venezuela. É humanamente impossível, e muito
perigoso, fiscalizar a apuração.
Nos Estados Unidos, na vitória de Donald Trump,
havia 500 advogados do seu partido ao lado das
urnas e na contagem de votos. Aqui o PL, que
pediu legalmente uma averiguação parcial na
apuração, foi multado automaticamente por Moraes
em
R$ 22 milhões, sem que seus advogados pudessem
abrir a boca, ou tivessem direito a qualquer
processo judicial.
É justiça de tribo africana nos tempos de
Tarzan. “Krig-ha bandolo, tarmangani!”, grita
Moraes do alto de seus inquéritos perpétuos — e
todo mundo tem de obedecer, incluindo seus
colegas de plenário, sob pena de processo por
“atos antidemocráticos” no STF. Também é este,
exatamente, o espírito da coisa, de fio a pavio,
no inquérito da PF sobre o golpe militar que
entrará na história mundial como o golpe que
nunca foi dado. É muito simples, no fim de todas
as contas.
Não existe ali, em quase 900 páginas de
tentativa, a prova de um único crime — e tudo o
que conseguiram provar com um mínimo de
coerência não é crime. Alexandre de Moraes está
longe de ser o único autor nessa opereta de
bulevar.
Ele conduz, mas há toda uma multidão fazendo
questão de ser conduzida. A primeira da fila é a
Procuradoria-Geral da República. A PGR tem tanta
condição de atuar de forma imparcial nesse
processo, como exige a lei, quanto o comandante
da “Mancha Verde” teria para apitar um jogo do
Palmeiras. Obviamente, pela observação estrita
dos fatos, o MP teria de mandar para o arquivo o
inquérito todo do golpe PF-Moraes; um preso por
tráfico de drogas que fosse acusado da forma
como
Bolsonaro e os demais estão sendo acusados seria
solto na hora, por inépcia grave do trabalho de
investigação policial.
Imagine-se, também, a cara que fariam promotores
de algum país sério diante da salada mista
entregue pela PF.
“Que diabo é isto aqui?”, diriam. “Vocês
beberam?” Nada demonstra de maneira mais clara o
verdadeiro papel da PGR nesse episódio quanto o
último surto do subprocurador do Ministério
Público no Tribunal de Contas da União. Você
pode não acreditar, mas é fato: ele foi capaz de
pedir, por escrito, que os salários de todos os
indiciados pagos pelo Estado sejam bloqueados.
Também quer que todos os seus bens fiquem
indisponíveis, em garantia aos R$ 56 milhões em
multas que, segundo os cálculos do alto
Judiciário, os acusados de golpe terão de pagar
pelo prejuízo que teriam causado à nação — soma
que não vem de decisão judicial nenhuma.
Estamos, de novo, na selva de Tarzan.
Como assim, salários bloqueados? Nenhum dos
golpistas do STF foi condenado por nada até
agora; nenhum, aliás, foi sequer denunciado pela
PGR por algum crime. Os desembargadores de Mato
Grosso do Sul acusados de vender sentenças
recebem pontualmente até o último centavo dos
seus salários de R$ 200 mil por mês, ou mais; a
justificativa é que ainda não foram condenados.
Alguém seria capaz de entender por que a PGR
exige o contrário no golpe que não aconteceu? Os
dependentes dos acusados, que precisam dos seus
salários para se manterem vivos, não cometeram
nenhum crime. Como podem ser punidos, se não
fizeram nada? Não podem nem mexer no que já têm
no banco? Dá para entender perfeitamente quando
se vê quem exige o bloqueio: um subprocurador
que nos quatro anos do governo Bolsonaro fez 539
pedidos para barrar atos oficiais do Planalto,
ou um a cada três dias.
É esse o nível de profissionalismo e
imparcialidade da PGR que está aí. Seu chefe,
por sinal, foi nomeado para o cargo, em termos
práticos, por Moraes — ele também é ex-sócio do
ministro Gilmar Mendes no comércio de cursos
particulares de
Direito. Mais ou menos da mesma qualidade são os
juristas-especialistas que correm atrás do
primeiro repórter que passa
ao seu alcance para dar entrevistas puxando o
saco de Moraes e do STF, de olho no faturamento
dos seus escritórios de advocacia. Fazem isso,
em geral, de maneira particularmente abjeta. São
o oposto, chocante, dos advogados que têm a
coragem de defender, muitas vezes de graça, os
que estão nos cárceres do STF. Todos estão
jurados de morte no Supremo
— mas conservam a sua honra.
Talvez ninguém, entre todos os coadjuvantes de
Moraes, tenha chegado a um ponto tão baixo, em
matéria de bajulação, irracionalidade e apoio à
mentira quanto a maioria da imprensa brasileira.
Nem no dia 1º de abril de 1964 apareceu tanto
jornalista desesperado para engolir com casca e
tudo o conto da PF e do ministro, ou para gritar
em favor do mais forte e
atirar nos feridos. Em nenhum momento desta
última versão de golpe militar a mídia que se
acredita “responsável” praticou jornalismo;
houve apenas histeria. Nenhuma afirmação dos
policiais, nem uma que fosse, foi contestada com
alguma pergunta profissional dos jornalistas.
Nenhuma “agência de checagem de fatos” checou
absolutamente nada. Se os editores mandassem
chimpanzés amestrados e equipados com gravadores
para ouvir a PF, sairia a mesma coisa que saiu.
Batom é “substância inflamável”, dizem a PF e o
ministro. Então é substância inflamável, repete
a maior parte da mídia.
Bola de gude é “arma branca”, dizem eles. Então
é arma branca, repetem os jornalistas.
Certificados de vacina estão ligados intimamente
ao golpe; então fica tudo explicado nos jornais,
na televisão e no rádio. É uma histórica pisada
na jaca. Não pode nunca mais ser apagada — está
escrita, gravada e assinada, e ficará como prova
do momento em que a polícia virou imprensa
e a imprensa virou polícia. É o funeral do
Estado de Direito no Brasil.
É também uma humilhação nacional e internacional
inédita para o país e para os brasileiros. Faça
o seguinte teste: reúna uma banca examinadora de
dez países civilizados e entregue a ela o
inquérito do STF, da PGR e da PF. O que você
acha que iria acontecer? Mandariam a coisa toda
para a lata do lixo, por dez a zero.
Talvez chamassem a Interpol — que respeito pode
querer um Brasil no qual empresas corruptas
pagam multas de US$ 3,5 bilhões nos Estados
Unidos por seus crimes e aqui dentro, por
decisão exclusiva do STF, recebem de volta o
dinheiro roubado? Por acaso isso é uma opinião?
Ou um fato?
Eis aí, para resumir, o país que o STF está
socando em cima dos cidadãos brasileiros. A
única segurança jurídica que a “suprema corte”
conseguiu criar é a segurança para os corruptos
e corruptores; os ministros garantem que ninguém
será
punido, jamais, por roubar dinheiro público,
sobretudo se o ladrão for do “campo
progressista”. Em qualquer outra coisa o
STF não garante rigorosamente nada, seja lá o
que digam a lei, a lógica e a moral comum. O que
os processos do ministro Moraes garantem sem
dúvida nenhuma é que os culpados são sempre, e
unicamente, os que ele diz que são culpados; já
estão condenados antes do julgamento e da
sentença. O mundo, provavelmente, vai ficar
sabendo disso tudo em detalhes,
a curto, médio e longo prazo...
Revista Oeste, Edição 245. 29/11/2024. |
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