Theresa Catharina de Góes Campos

 

O ÚLTIMO MITTERRAND

 
   
 
   
   
     
   
     
   
     
   
     
   

Uma longa e bela reflexão sobre a morte, a política, o poder, o amor e a literatura é o que oferece ao espectador o filme “O Último Mitterrand”, de Robert Guédiguian, em exibição na cidade, o qual tem, além disso, como principal trunfo, a atuação genial, magnífica e inesquecível, de Michel Bouquet no papel do ex-presidente da França, François Mitterrand, também o último, como ele diz, da linhagem de De Gaulle.

É preciso advertir, porém, que o filme não faz abordagem do governo Mitterand, deixando de apresentar figuras do seu Conselho de  ministros, como  Jospin,  Balladur, Chirac e Beregovoy, este, de Economia e Finanças, que se suicidou, deprimido pela derrota da esquerda nas últimas eleições parlamentares (1993) ou por ser acusado de corrupção na aquisição de um apartamento em Paris. O filme narra apenas a relação de Mitterrand com seus assessores próximos, o médico, Dr. Jeantot (Philippe Fretun) e o jornalista, Antoine Moreau ( (Jalil Lespert), escolhido, não se sabe por que, para escrever sobre os últimos dias de seu governo e de sua vida, já que estava ciente da morte próxima.

Mas a morte, para Mitterrand, não era uma derrota, pois ele esperava por ela desde há algum tempo, em silêncio, sabendo que os homens de sua família, vinagreiros da região de Provence, produtora de conhaque, nunca passavam dos oitenta anos. O pai morrera da mesma doença que ele sofria – câncer de próstata -  sem se tratar. Criado sob forte influência do catolicismo, leitor de Charles Péguy, cujos versos sobre a magnífica Catedral de Chartres, cita de memória, Mitterrand caminha para a morte, como diria o nosso Aníbal Machado, olhando para a paisagem, a de Provence, onde foi enterrado.

Aliás, uma das seqüências mais belas do filme é justo aquela em que o presidente da França, antecipando-se ao que viria depois, se estende no chão de pedra da capela de sua cidade natal para se sentir como morto, mas observando, com olhar de criança – talvez o momento mais brilhante da atuação de Michel Bouquet, que, como disse um crítico francês, não só interpreta Miterrand, mas faz esquecê-lo - os afrescos da cúpula, esmaecidos pela ação tempo, sem restauração e, ouvindo, pela imaginação, a música de Bach.

De Johann Sebastian Bach, Mitterrand diria também, mais tarde, ao jornalista -  que não o vira deitado no chão de pedra da capela, mas do fato tomara conhecimento por intermédio do segurança, Fleury (Philippe Le Mercier) – que, um dia, regressando à sua cidade natal, Eisenach, na Alemanha, encontrara a mulher e duas filhas mortas, mas que, apesar disso, não se revoltara contra Deus, preferindo, compor “Jesus, Alegria dos Homens”, justo a música que enaltece a cena da capela.

Outro belo momento do filme, é quando Mitterrand, viajando na cabine de um trem de luxo, diz ao jornalista Moreau, ao seu médico Jeantot e aos   assessores, que o acompanham, fazendo referência a Rimbaud, que todos os países têm suas cores características, não necessariamente as de suas bandeiras.  A cor da França é o cinza – acrescenta, enquanto a fotografia, de Renato Berta, assume  a tonalidade da cor  por ele citada para mostrar, através da janela do trem, a paisagem dominada por árvores ressequidas pelo outono, próximo do inverno, prenunciador de sua morte.

Apesar do tema, da dimensão do personagem e de seu excepcional intérprete, o filme se ressente do roteiro – de Gilles Taurenne e Georges-Marc Benamou, autor do livro Le Dernier Mitterrand, em que se baseia -  que joga com  a imprecisão de alguns fatos, principalmente os relacionados com a vida particular do jornalista Moreau, os quais, ao contrário do que ele pensa, estão sob a mira do poder, dada a missão que tem a cumprir junto ao presidente da República, que lhe toma todo o tempo, causando por isso sua separação de Jeanne, grávida de seu filho

Também o ator, Jalil Lespert, a meu ver, frio, distante, não personifica o jornalista que Mitterrand, em suas palavras, identifica, isto é, um tipo emocional, sentimental, ao qual aconselha a permanecer mais indiferente aos acontecimentos, pois, a seu ver, o controle de sentimentos é imprescindível para o desempenho de sua  profissão. Indiferente ele já é, a meu ver. Embora tenha boa estampa e talento, o ator vive  momentos pouco inspirados, como o da cena em que reage à crítica ao governo Mitterrand, feita por pretenso candidato à compra de seu apartamento. Do mesmo modo, Lespert, displicente, mais parecido um turista, não convence na pele de um jornalista, que viaja a Vichy, em sigilo, empenhado em apurar fatos que colocam Mitterrand em dificuldades com a comunidade judaica.

De volta a Paris, Moreau se surpreende ao saber que Mitterrand, como era óbvio, estava a par de sua viagem e o ator tem com ele, nesse momento, sim, boa atuação, quando lhe aponta alguns fatos, contestados firmemente pelo presidente, que lhe diz na maior ênfase:
Eles queriam que a França pedisse desculpas, como o fez Willy Brandt, na Alemanha. Mas é preciso lembrar que a República de Vichy não era a França!...

Esses senões apontados são, contudo, irrelevantes se se considerar a importância do filme de Robert Guédiguian para o cinema francês, não muito afeito por tradição, como observam alguns críticos, a abordar fatos e personagens da história recente do país, como o faz, com autoridade, o cinema americano, que por sinal, antes da exibição de “O Último Mitterrand”, apresenta, em nossos cinemas, dois trailers de filmes sobre os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.

Do ponto de vista político, é importante notar que o diretor Guédiguian não deixa de imprimir sua posição em defesa da esquerda – tão desmoralizada pela corrupção desenfreada que promove principalmente aqui na América Latina -  quando Mitterrand diz que, após seu governo, de postura digna, não poderia mais a direita dizer que a França não tinha condições de ter alternância de poder. Ou então, quando, dias antes de transmitir o governo, num discurso para operários, ele, muito mal, afirma que a partir do momento em que se verifica que dinheiro só produz dinheiro, volta, com força, a luta de classes. Enfim, “O Último Mitterrand”, de Robert Guédiguian, é filme que precisa ser visto.

REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, Revista
www.noticiasculturais.com
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www.theresacatharinacampos.com

FICHA TÉCNICA
O ÚLTIMO MITTERRAND
LE PROMENEUR DU CHAMP DE MARS

França, 2005
Duração – 116 min.
Direção – Robert Guédiguian
Roteiro – Georges-Marc Benamou e Gilles Taurenne, baseado no livro do primeiro, “Le Dernier Mitterrand
Produção – Frank Le Wita, Marc de Bayser, Robert Guédiguian
Edição – Bernard Sasia

Elenco – Michel Bouquet (François Mitterrand), Antoine Moreau (Jalil Lespert), Dr. Jeantot (Philippe Fretun), Fleury ( Philippe Le Mercier), Anne Canturreau (Jeanne), Sarah Grappin (Judith), Genéviève Casile (Simone Picard)

 

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