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MAIS ESTRANHO QUE
A FICÇÃO
A comédia "Mais estranho que a
Ficção", de Marc Forster, aborda,
com base num roteiro criativo de
Zach Helmer, o problema do
desdobramento da personalidade,
recorrente na literatura, mas
apresentado desta feita sob a forma
de uma luta fantástica entre um
personagem e sua autora imaginária
que trama a sua morte ao final do
livro que escreve sobre a vida dele.
O personagem é Harold Click (Will
Ferrel), que acorda certo dia,
ouvindo a voz de uma mulher a narrar
tudo o que ele faz na sua medíocre
vida de servidor público, solitário,
de tempo rigidamente cronometrado,
obediente a todas as limitações que
lhe impõem as regras funcionais de
auditor da Receita Federal.
Por causa disso, Harold consulta um
analista, que se julga, porém,
incompetente para resolver o
problema, aconselhando-o a procurar
um teórico de literatura, Dr. Jules
Hulbert, (Dustin Hoffman), o qual
depois de muitas indagações,
identifica quem na realidade o
persegue. Trata-se de uma autora ,
Karen Effiel (Emma Thompson), que
escreve uma novela sobre um
personagem de vida muito semelhante
à de burocrata que Harold leva, sem
saber, entretanto, que na realidade
ele existe.
O problema grave, segundo Hulbert, é
que Effiel é especialista em dramas,
envolvendo questões tributárias e
todos os seus personagens acabam
morrendo, parecendo-lhe ser também
esse o provável destino de Harold.
Este então parte alucinado à procura
da escritora porque não deseja
morrer naquele momento em que sua
vida parece que vai tomar outro
rumo, pois, se apaixonara por uma
fraudadora do IR, a empresária Ana
Pascal (Maggie Gyllenhaal), cujas
contas ele investiga com toda a
acuidade que a função de fiscal lhe
exige.
Do ponto de vista literário, há
muitos personagens como Harold,
sendo o mais famoso deles Dorian
Gray, de Oscar Wilde, que transfere
a torpeza de sua vida para o retrato
que ostenta na parede, o qual, como
qualquer indivíduo, vai envelhecendo
e envilecendo aos poucos. Mas o
modelo mais próximo de Harold me
parece ser o sr. Goliádkin, de
Dostoiévski, na novela "O Duplo",
também um burocrata, identificação
essa que coincide com algumas
insinuações feitas pelo teórico de
literatura que, além de citar outra
obra do escritor, "Crime e Castigo",
pergunta a seu cliente se ele não
estaria querendo salvar a Rússia.
Do ponto de vista cinematográfico,
Harold, quando se insurge contra a
autora, desejando evitar a sua morte
- já descrita por Effiel no final da
novela, tida por Hulbert como sua
obra-prima - se identifica, a meu
ver, com a personagem de "Rosa
Púrpura do Cairo", de Woody Allen, a
qual também quer se libertar da
ficção, isto é, ter uma vida
própria, independente, a ponto de
sair fora da tela do cinema, onde o
seu filme está sendo exibido. Então
o que se tem é um roteiro de
qualidade, bem elaborado que é, sem
dúvida, muito melhor por exemplo do
que o de " A Pequena Miss Sunshine",
indicado para receber o Globo de
Ouro como o mais original, uma
extravagância, a meu ver, que acabou
não acontecendo.
Da direção do alemão radicado nos
EUA, Marc Forster, pode-se dizer que
é boa principalmente no que diz
respeito à condução do elenco, mas
seria melhor se ele imprimisse linha
mais irônica à sua linguagem cênica,
perseguindo a definição de comédia
sofisticada para tirar ilações
avançadas, como a da inutilidade de
se sacrificar uma vida, como a de
Harold, em funções burocráticas,
iguais a de auditor de tributos, os
quais depois de recolhidos, vão dar
no que dão, isto é, em gastos
militares, guerras, prisões,
torturas, nos EUA e aqui, na mais
desbragada e pura corrupção.
Por jogar com a indefinição de
linguagem cênica, Forster coloca o
espectador na dúvida se está vendo
uma comédia, um drama ou uma
tragédia. E isso faz com que ele
próprio às vezes perca o ritmo na
condução do argumento. Os atores,
porém, sustentam o tom da comédia,
optando, no geral, por um
distanciamento critico em relação
aos personagens e, neste sentido,
obtêm excelentes resultados, como
Emma Thompson – também escritora na
vida real - Dustin Hoffman, Queen
Latifah, no papel de Penny,
assessora de Effiel e Maggie
Ghillenhaal, esta crescendo a cada
interpretação.
Mas o filme é inegavelmente de Will
Ferrell que, obediente à linha da
direção, consegue criar a expressão
adequada e dar complexidade ao
personagem de Harold, medroso de
avançar um milímetro além da sua
programada vidinha de burocrata em
que não há imprevistos e tudo
aparentemente corre bem, mesmo que
nela não habitem o afeto e o amor.
As cenas dele com Maggie Ghillenhaal
são excelentes. Ferrel, que havia
aparecido antes num papel
coadjuvante em "Melinda & Melinda",
de Woody Allen, demonstra ter, nesse
filme, fôlego suficiente para se
tornar um comediante de primeira
linha, na trilha por exemplo de um
Jimmy Carrey.
Quanto ao comentário musical – a
cargo de Britt Daniel e Brian
Reitzell – há de se observar que uma
das seqüências mais importantes do
filme é sublinhada por um arranjo
melódico calcado num dos grandes
sucessos de Nelson Gonçalves, "Fica
comigo esta noite", de Adelino
Moreira, que, entretanto, sequer é
mencionado nos créditos finais da
película. Seria por lapso ou por
plágio mesmo? Uma pena!...
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, Revista
www.arteculturanews.com
www.noticiasculturais.com
www.theresacatharinacampos.com
FICHA TÉCNICA
MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO
STRANGER THAN FICTION
EUA/2006
Duração – 113 minutos
Direção - Marc Forster
Roteiro - Zach Helmer
Produção – Lindsay Doran
Fotografia – Robert Schraefer
Edição – Matt Chessé
Elenco – Will Farrell (Harold Click),
Maggie Ghillenhaal (Ana Pascal),
Karen Effiel (Emma Thompson), Dr.
Jules Hulbert (Dustin Hoffman),
Queen Latifah (Penny)
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