Theresa Catharina de Góes Campos

 
MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

A comédia "Mais estranho que a Ficção", de Marc Forster, aborda, com base num roteiro criativo de Zach Helmer, o problema do desdobramento da personalidade, recorrente na literatura, mas apresentado desta feita sob a forma de uma luta fantástica entre um personagem e sua autora imaginária que trama a sua morte ao final do livro que escreve sobre a vida dele.

O personagem é Harold Click (Will Ferrel), que acorda certo dia, ouvindo a voz de uma mulher a narrar tudo o que ele faz na sua medíocre vida de servidor público, solitário, de tempo rigidamente cronometrado, obediente a todas as limitações que lhe impõem as regras funcionais de auditor da Receita Federal.

Por causa disso, Harold consulta um analista, que se julga, porém, incompetente para resolver o problema, aconselhando-o a procurar um teórico de literatura, Dr. Jules Hulbert, (Dustin Hoffman), o qual depois de muitas indagações, identifica quem na realidade o persegue. Trata-se de uma autora , Karen Effiel (Emma Thompson), que escreve uma novela sobre um personagem de vida muito semelhante à de burocrata que Harold leva, sem saber, entretanto, que na realidade ele existe.

O problema grave, segundo Hulbert, é que Effiel é especialista em dramas, envolvendo questões tributárias e todos os seus personagens acabam morrendo, parecendo-lhe ser também esse o provável destino de Harold. Este então parte alucinado à procura da  escritora porque não deseja morrer naquele momento em que sua vida parece que vai tomar outro rumo, pois, se apaixonara por uma fraudadora do IR, a empresária Ana Pascal (Maggie Gyllenhaal), cujas contas ele investiga com toda a acuidade que a função de fiscal lhe exige.

Do ponto de vista literário, há muitos personagens como Harold, sendo o mais famoso deles Dorian Gray, de Oscar Wilde, que transfere a torpeza de sua vida para o retrato que ostenta na parede, o qual, como qualquer indivíduo, vai envelhecendo e envilecendo aos poucos. Mas o modelo mais próximo de Harold me parece ser o sr. Goliádkin, de Dostoiévski, na novela "O Duplo", também um burocrata, identificação essa que coincide com algumas insinuações feitas pelo teórico de literatura que, além de citar outra obra do escritor, "Crime e Castigo", pergunta a seu cliente se ele não estaria querendo salvar a Rússia.

Do ponto de vista cinematográfico, Harold, quando se insurge contra a autora, desejando evitar a sua morte - já descrita por Effiel no final da novela, tida por Hulbert como sua obra-prima -  se identifica, a meu ver, com a personagem de "Rosa Púrpura do Cairo", de Woody Allen, a qual também quer se libertar da ficção, isto é, ter uma vida própria, independente, a ponto de sair fora da tela do cinema, onde o seu filme está sendo exibido. Então o que se tem é um roteiro de qualidade, bem elaborado que é, sem dúvida, muito melhor por exemplo do que o de " A Pequena Miss Sunshine", indicado para receber o Globo de Ouro como o mais original, uma extravagância, a meu ver, que acabou não acontecendo.

Da direção do alemão radicado nos EUA, Marc Forster, pode-se dizer que é boa principalmente no que diz respeito à condução do elenco, mas seria melhor se ele imprimisse linha mais irônica à sua linguagem cênica, perseguindo a definição de comédia sofisticada para tirar ilações avançadas, como a da inutilidade de se sacrificar uma vida, como a de Harold, em funções burocráticas, iguais a de auditor de tributos, os quais depois de recolhidos, vão dar no que dão, isto é, em gastos militares, guerras, prisões, torturas, nos EUA e aqui, na mais desbragada e pura corrupção.

Por jogar com a indefinição de linguagem cênica, Forster coloca o espectador na dúvida se está vendo uma comédia, um drama ou uma tragédia. E isso faz com que ele próprio às vezes perca o ritmo na condução do argumento. Os atores, porém, sustentam o tom da comédia, optando, no geral, por um distanciamento critico em relação aos personagens e, neste sentido, obtêm excelentes resultados, como Emma Thompson – também escritora na vida real - Dustin Hoffman, Queen Latifah, no papel de Penny, assessora de Effiel e Maggie Ghillenhaal, esta crescendo a cada interpretação.

Mas o filme é inegavelmente de Will Ferrell que, obediente à linha da direção, consegue criar a expressão adequada e dar complexidade ao personagem de Harold, medroso de avançar um milímetro além da sua programada vidinha de burocrata em que não há imprevistos e tudo aparentemente corre bem, mesmo que nela não habitem o afeto e o amor. As cenas dele com Maggie Ghillenhaal são excelentes. Ferrel, que havia aparecido antes num papel coadjuvante em "Melinda & Melinda", de Woody Allen, demonstra ter, nesse filme, fôlego suficiente para se tornar um comediante de primeira linha, na trilha por exemplo de um Jimmy Carrey.

Quanto ao comentário musical – a cargo de Britt Daniel e Brian Reitzell – há de se observar que uma das seqüências mais importantes do filme é sublinhada por um arranjo melódico calcado num dos grandes sucessos de Nelson Gonçalves, "Fica comigo esta noite", de Adelino Moreira, que, entretanto, sequer é  mencionado nos créditos finais da película. Seria por lapso ou por plágio mesmo?  Uma pena!...

REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, Revista
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FICHA TÉCNICA
MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO
STRANGER THAN FICTION
EUA/2006
Duração – 113 minutos
Direção - Marc Forster
Roteiro - Zach Helmer
Produção – Lindsay Doran
Fotografia – Robert Schraefer
Edição – Matt Chessé
Elenco – Will Farrell (Harold Click), Maggie Ghillenhaal (Ana Pascal), Karen Effiel (Emma Thompson), Dr. Jules Hulbert (Dustin Hoffman), Queen Latifah (Penny)
 

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