Theresa Catharina de Góes Campos

 
BATISMO DE SANGUE

O episódio do nada louvável envolvimento dos frades dominicanos com a luta armada durante o regime militar brasileiro é o tema do filme “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratton, que se baseou no relato de um deles, Frei Betto, figura honorável do atual governo, feito em livro pouco confiável porque, lançado em 1983, vem sendo ao longo do tempo alterado com a inclusão de fatos inéditos que o autor por acaso “esquecera” ou por conveniência deixara de mencionar.

Em vista disso, o roteiro do filme, assinado por Dani Patarra e Helvécio Ratton, que segue a linha maniqueísta da esquerda, é precário, em termos de verdade histórica. Além disso, abusa de frases de efeito e panfletárias, de estereótipos e até de cartões postais – houve maciça injeção de recursos da União e de Minas Gerais na produção -, o que dilui bastante, a meu ver, a ação dramática, que tem inicio e termina, com a cena de um suicídio, o de Frei Tito Alencar de Lima, no mosteiro La Tourette, em Lyon, na França.

O filme se passa ao final dos anos sessenta, quando o convento dos dominicanos, no Alto das Perdizes, em São Paulo, se tornou uma trincheira de resistência ao regime, tema agora em alta na aceitação do povo brasileiro, de pouco discernimento, que, na época aplaudia os militares e tinha até uma canção emblemática: Eu te amo, meu Brasil/ Eu te amo!... Embora a narrativa queira fazer crer que se tratava do envolvimento de apenas um grupelho de frades – faltam alguns no filme - com Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional, a verdade histórica, que um dia emergirá, pode não ser bem essa.

Pois houve, ao que se sabe, muita vocação sacerdotal frustrada de jovens que deixaram a batina, naquela fase, por não aceitarem a imposição da Ordem de aderirem à luta armada, já que a Igreja precisa de mártires, como o título do filme sugere. Tanto assim que há uma cena em que Frei Tito assegura a Marighella apoio à guerrilha, em Goiás, do posto dos dominicanos em Porto Nacional, que fica às margens do Tocantins. Da mesma forma pode não ser verdade histórica a assertiva de um daqueles “santos” frades, feita ao “ingênuo” Prior da Província de São Paulo, de que eles não pegavam em armas.

Quando Frei Betto decidir completar o seu depoimento - que vem sendo servido a conta-gotas a cada nova edição do livro em que se baseia o filme - ele revelará certamente a identidade do banqueiro paulista que financiava a “ousadia” dos dominicanos e lhes cedia sua propriedade, na periferia de São Paulo, para treinamento de jovens em práticas de guerrilha, que pegavam, sim, em armas, conforme poderiam dizer muitos deles. Isto porque, segundo Frei Betto, “a verdade é filha do tempo” (Bertolt Brecht) ou da conveniência de alguns naturalmente.

Por sinal, o filme levanta indagações sobre a atuação do personagem Frei Betto (Daniel Oliveira) no movimento porque ele está sempre bem protegido por pessoas que de repente aparecem, dão-lhe quantias em dinheiro e dificultam sua prisão, levando-o para São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, para tomar chimarrão... Quando preso, tem ele, na cadeia, tratamento preferencial, não sofre tortura, ao contrário de todos os demais frades e conversa de igual para igual, citando o Evangelho, com o Delegado Sérgio Fleury – interpretado na base do estereótipo de vilão de novela pelo ator Cássio Gabus Mendes – que logo o despede e manda que fique tranqüilo no seu canto...

Não resistindo a todo tipo de tortura que sofrem no pau-de-arara, Frei Fernando (Léo Quintão) e Frei Ivo (Odilon Esteves) acabam por revelar o endereço da gráfica que os atende, também freqüentada por Carlos Marighella, prestes a partir para Goiás com uma mala cheia de dinheiro – qualquer semelhança com ilustres personagens da cena moderna brasileira não é mera coincidência – obtido num assalto a banco, que não é o  BMG, nem o do banqueiro que os ajuda. Os agentes de segurança montam um esquema na livraria dos dominicanos à espera de uma informação sobre a ida de Marighella à gráfica.  Os telefones são grampeados e a informação logo chega aos agentes de Fleury, que comemoram.

A reconstituição da morte de Carlos Marighella é um dos raros bons momentos do filme de Ratton, que tendo dirigido antes coisas do tipo “A Dança dos Bonecos”, “Uma Onda no ar” e “Menino Maluquinho” parece não ter muito pulso para uma abordagem política séria como a que o tema estaria a exigir. De qualquer forma a seqüência funciona graças ao bom trabalho de câmara de Lauro Escorel, com adequada distribuição de planos e marcação eficiente dos atores na alameda, onde se deram os acontecimentos. Há de se ressaltar também que o ator, Marku Ribas, intérprete de Marighella, além de apresentar semelhança física com o personagem, tem desempenho sóbrio, discreto, que o distingue de todos os demais do elenco.

Porque, no geral, os atores, todos muito jovens, inexperientes, denotam pouco saber dos personagens que interpretam e muito menos dos acontecimentos históricos de que eles participam. Para usar expressão em voga na época em que se passa o filme, os atores estão mais por fora do que umbigo de vedete. Alguns dão até pena. Não interiorizam nada. Com certeza não viram eles os trabalhos dos atores argentinos, em “Crônica de uma Fuga”, de Adrián Caetano. Esses, sim, apresentaram, no gênero, excelentes desempenhos que lhes exigiram além de muito estudo, disciplina, expressão corporal e até rigorosos regimes alimentares para mostrarem diante da câmara seus corpos débeis, exangues e duramente atingidos pelas consecutivas sessões de tortura que sofreram na chamada Mansão Seré, na periferia de Buenos Aires.

Enfim, “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratton, que relata o envolvimento dos frades dominicanos com a luta armada, nos anos sessenta, durante o regime militar, com base em depoimento de um deles, Frei Betto, é precário do ponto de vista histórico, pois omite fatos, personagens, segue linha maniqueísta e abusa de frases de efeito, panfletárias, de estereótipos e de cartões postais. A direção é fraca, a fotografia é boa e os atores, com raras exceções, não convencem. Como o título sugere, o objetivo do filme é o de fazer crer que Frei Tito Alencar de Lima, que traiu os desígnios de São Domingos, como ele próprio admite, seria um mártir, o que esbarraria, penso eu, com a oposição da Igreja, que não tolera os suicidas como ele o foi.... Acabou até com o limbo para eles não ficarem lá. É filme, portanto, de poucas, pouquíssimas qualidades.
 

REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, BRASILA, Revista
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FICHA TÉCNICA
BATISMO DE SANGUE
França/Brasil/2006
Duração – 110 minutos
Direção – Helvécio Ratton
Roteiro – Dani Patarra e Helvécio Ratton, com base no livro de Frei Betto, de l983
Fotografia – Lauro Escorel
Direção de Arte – Adrian Cooper
Edição – Mair Tavares
Elenco – Caio Blat (Frei Tito), Daniel de Oliveira (Frei Betto), Cássio Gabus Mendes (Delegado Fleury), Ângelo Antonio (Frei Oswaldo), Léo Quintão (Frei Fernando), Odilon Esteves (Frei Ivo), Marcélia Cartaxo (Nildes), Marku Ribas (Carlos Marighella), Murilo Grossi (Policial Raul Careca), Renato Parara ( Policial Pudim), Jorge Emil (Prior dos dominicanos)


NOTAS  DA  EDITORA:

1. Frase pronunciada por autoridade religiosa da Igreja Católica, em "Batismo de Sangue":
"Mas os Srs. não  foram  presos  rezando  Missa."

2. Com propostas cinematográficas bem diferentes, recomendo os filmes anteriores do diretor Helvécio Ratton:

"A dança dos bonecos", "Menino Maluquinho" e "Uma onda no ar."
Theresa Catharina

 

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