From:
REYNALDO
FERREIRA
Date: 12/04/2007 21:38
Subject: A Ética e o Espelho da Cultura
To: Theresa Catharina Campos
Repassando,
Prefácio do livro A Ética e o Espelho da
Cultura, de Jurandir Freire Costa, da
Editora Rocco.
A ética e o espelho da cultura*
José Castello
Quatro atributos, todos detestáveis, compõem
o perfil da cultura brasileira hoje: o
cinismo, a delinqüência, a violência e o
narcisismo. Não é fácil, antes é muito
doloroso, admitir que eles se tornaram a
confusa imagem de nosso país. O cotidiano
brasileiro nos leva, sempre, a deparar com
cínicos, delinqüentes, homens violentos e
lamentáveis narcisistas com a pose de homens
de bem. Heróis de tempos obscuros, eles
estão por toda parte - e um pouco dentro
de nós mesmos. Não é fácil defrontar com
essa imagem no espelho. Guardamos uma ponta
de desconfiança, tentamos nos proteger, mas
preferimos não pensar muito, e ver apenas
o indispensável para seguir em frente.
O psicanalista Jurandir Freire Costa, ao
contrário, quer fitar essa imagem
frontalmente. Não é simples acaso que um
psicanalista, e não um sociólogo, um
cientista político, um antropólogo, tome
essa decisão. Foi relendo Freud, com atenção
voltada para a realidade do país, que
Jurandir Freire Costa formulou seu esboço de
teoria do Brasil. Em textos de alguns
psicanalistas pragmáticos e contaminados de
religiosidade científica preferem encarar
como ficções freudianas em vez de teoria
psicanalítica - casos de "Mal-estar na
civilização", "Moisés e o monoteísmo" e
"Psicologia de massas" - Freud mostrou que,
sem um olhar que transcenda a realidade, sem
um vôo sobre o real, o homem cai na agonia,
na atomização, no pânico. E perde a própria
humanidade.
Desprovidos de ideais que produzam alguma
ordenação no mundo concreto, homens
desnorteados se afogam no temor. Não há
homem, portanto, sem um ideal. "Somos nós,
indivíduos, que inventamos os universos de
valores que nos permitem viver em
comunidade, ou seja,
assumindo compromissos", diz o psicanalista.
"Só com valores nos tornamos capazes de
prometer. De prometer e de cumprir". O homem
se diferencia do animal justamente porque
seu destino não está traçado no
autoritarismo do instinto. A sociedade
humana, fundada sobre um caos, precisa de
artifícios culturais para sobreviver. "É em
resposta à vulnerabilidade do corpo à
potência esmagadora da natureza, à
mortalidade que os homens inventam as
civilizações", realça.
Quando o homem destrói este equipamento de
segurança que o protege do perecimento, da evanescência,
e retarda a morte, ele cai na mais absoluta
desproteção. Torna-se, então, capaz de tudo,
porque não é um animal cujos passos estão
delimitados pelas regras de um
impulso espontâneo e alheio à razão. Sem a
cultura, o homem se tornaria mais
desprotegido que o mais desprotegido dos
animais. "A natureza não tem compromissos",
lembra Jurandir Costa. "para processos
naturais, não existe valor. Tanto faz morrer
ou viver, porque tudo entra no mesmo ciclo
da eternidade. Os homens é que são capazes
de construir um espaço humano
de permanência". A cultura não é, portanto,
como querem crer os ideólogos da indústria
cultural, um simples artefato de
revestimento que retoca as aparências do
universo humano. Não é uma "superestrutura",
como os marxistas fizeram crer por décadas;
não é um luxo, uma pausa entre dois momentos
de seriedade, como faz crer a indústria da
diversão e do lazer. Ao contrário, ela é a
própria condição de sobrevivência do homem
no Planeta. "Se você ataca sistematicamente
o equilíbrio cultural de um povo, você
retira dos indivíduos seu único dispositivo
de proteção para enfrentar a desordem e o
vazio", enfatiza o psicanalista, você se
torna, então, um suicida.
Toda essa digressão é indispensável para se
entender a vigorosa teoria do Brasil
esboçada nos ensaios de Jurandir Freire
Costa. Estamos, hoje, no país da desgraça.
"Os indivíduos no Brasil tornaram-se moral e
socialmente supérfluos", pensa o autor. Eles
nada valem como cidadãos, pessoas que têm
responsabilidades. Ao contrário, são postos
em situação de desqualificação e de tutela.
Pessoas lançadas neste fosso moral passam a
descrer das leis. Valores, regras, ética,
compromissos passam a ser entendidos apenas
como racionalizações que encobrem a
violência. Cidadãos amargos preenchem o
vazio produzido por esta descrença com uma
moral cínica. "O que vigora hoje, no Brasil,
é uma razão cínica", identifica Jurandir
Costa, tomando emprestado um conceito de
Peter Sloterdijk. "No lugar da indignação,
produziu-se um discurso desmoralizante que
diz que toda lei é convencionalismo,
formalismo, idealismo, conservadorismo".
Torpedeada a lei, é todo um universo
simbólico que desmorona. Por isso esta
sensação nacional de que nada mais tem
valor: de que tudo "termina em pizza".
Tornamo-nos, todos, homens sem pudor. Não
são apenas os marginais organizados em
falanges para o que der e vier, nem
os políticos destilados na malversação e na
corrupção renitente que se deixam dirigir
por essa razão cínica. "Existe um elo
indissolúvel entre o político que lesa o
erário público, o cidadão que ultrapassa o
sinal vermelho e o assaltante que mata",
aponta o psicanalista. "Todos deixaram de
levar em conta a lei". Mas nos parece muito
sensato, quase sempre, ultrapassar o sinal
vermelho, enquanto reclamamos do deputado
corrupto, ou falsificar um
recibo médico para o imposto de renda
enquanto lamentamos o aumento da violência
nas cidades. Realizamos uma cisão entre as
duas esferas de valor, uma indignada e
furiosa, outra generosa e condescendente, e
acreditamos com isso salvar a própria pele.
Exercitamos, assim, nosso cinismo.
Nada mais ilusório. Ora, o que é a lei senão
esta convenção sem a qual não podemos
sobreviver à desordem da natureza? A
aniquilação da lei é, então, um ato suicida.
Um exercício de auto-agressão. O motorista
que estaciona na faixa de pedestres é, em
certo sentido, tão violento quanto uma
assaltante que metralha sua vítima. Ambos se
julgam acima da lei e estão se destruindo.
"A cultura da delinqüência é uma cultura
suicida, por que nós, homens, enquanto
espécie, não temos o instinto de
sobrevivência para nos proteger", adverte
Jurandir Costa. Mas cidadãos que atuam
embriagados pela cultura da delinqüência têm
os olhos vedados pela ilusão de que podem
escapar impunemente da dissolução social.
Não podem, e aqui começa a nossa tragédia
brasileira.
O cidadão que estaciona em fila tripla para
esperar o filho em porta de colégio age,
ainda que em proporções diferentes, com a
mesma arrogância delinqüente do marginal que
fuzila um caixa de um banco ou a gangue que
executa o motorista de um carro-forte. Todos
atuam munidos da ilusão de que, apesar de
tudo, irão escapar. Esta desclassificação da
lei inclui, em seu extremo, um ataque à
política. Vivemos num país em que a política
está quase identificada com a delinqüência.
Disso, se conclui que, se políticos no fim
das contas agem movidos por razões
inconfessáveis, todos devemos fazer o mesmo,
ou seremos ingênuos e fracos. "No Brasil,
você começa a ter uma desvalorização da
política em favor de uma cultura marginal,
de delinqüência, e dos interesses
particulares de cada um", aponta o autor. Se
a política deixa de ser o espaço próprio ao
exercício da liberdade para se tornar o
lugar privilegiado da delinqüência, os
cidadãos intimidados retraem-se nos
mecanismos cegos de sobrevivência que
o pensador americano Cristopher Lasch chamou
de "mínimo eu". Estamos em um país
fragmentado em pequenos e cínicos seus. O
país de anões, com suas almas toscas e seus
desejo perverso de invisibilidade.
Mas eis a serpente enroscada sobre si mesma:
na cultura da sobrevivência em que os
indivíduos investem todas as energias na
defesa de um terreno mínimo de
sobrevivência, a conduta social de regra é a
própria delinqüência. "O que a razão cínica
faz é dizer que não existe mundo de valores,
porque qualquer valor é produto da
violência", mostra Jurandir Costa.
Chegamos, assim, à terra do "salve-se quem
puder", e escalamos os pescoços, uns dos
outros hipnotizados pela utopia da redenção
individual. "Mas, se não existe mundo de
valores, qualquer situação é válida.
Desaparece, então, qualquer possibilidade de
reflexão ética". Se tudo é possível, nada é
impossível: restam apenas a indiferenciação
e a escuridão.
Estamos em um país que pensa assim: ou você
explora, ou você engana, ou você é calhorda,
ou você é escroque, ou não há saída. Por
quê? Porque quem faz a lei é quem manda,
quem se beneficia da lei são os amigos, e
quem legisla está comprometido unicamente
com seus interesses pessoais. Uma lei que
fosse igual para todos é, portanto, mentira.
Num país que pensa nesses termos, quem age
dentro da lei cai no ridículo. Parece agir
contra si mesmo, parece buscar a derrota. "É
esse cinismo aplicado à vida cotidiana que
se torna o mais perigoso", diz o
psicanalista.
Os cidadãos brasileiros parecem, hoje,
condenados a um destes dois terríveis
destinos: ou se tornam burocratas
obedientes, indivíduos rotineiros que fazem
da anulação de si uma maneira de ser, ou
reagem tomados pela arrogância delinqüente,
atributo extremo de uma cultura regida pelo
narcisismo. Os obedientes enfileiram-se na
legião de provadores daquilo que Hannah Arendt
chamou de "banalidade do mal", porque até o
mais enlouquecido torturador é, antes
de tudo, um burocrata dobrado pelo desejo de
obedecer. Os que optam por delinqüir,
perdendo a noção de prêmios e sanção, de
permissão e interdição, afundam-se na
cultura do narcisismo e do cinismo. O
burocrata servil é, na aparência, o oposto
do delinqüente arrogante, mas ambos fazem o
mesmo tipo de jogo: desmerecem a importância
de um ideal.
Aqui voltamos a Freud. Sem um ideal que
caucione a vida social, o homem se torna um
ente que viaja na escuridão. Passa a sofrer,
então, de um "pânico narcísico", expressão
pescada por Freud num romance de segunda
classe inglês chamado When it was dark, que
descreve a desordem provocada por uma
suposta descoberta científica de que Jesus
Cristo não foi, de fato, imortal. O "pânico
narcísico" é um efeito avassalador de
situações e que o homem perde
suas referências de equilíbrio. Diante dele,
a opção é a fruição imediata do mundo. O
espelho de Narciso é o presente tornado
destino. O futuro se transforma apenas numa
quimera, estúpida, que esfarela em suas
mãos. O sentimento dominante, então, é o de
"fim de festa". Estamos próximos, é preciso
dar nome, da psicopatia. "O que é psicopata
senão aquele que, dentro de uma cultura que
funciona adequadamente, é cego em relação a
valores?", pergunta Jurandir Costa. "Se
todos passam a agir à revelia da lei,
entramos de fato numa cultura
de psicopatas". Mas o autor, prudente em
relação aos estigmas de hábito acoplados à
noção psiquiátrica de psicopatia, prefere
falar mesmo em delinqüência. O que
desnorteia o país hoje é, mais do que uma
doença, o sentimento de que fomos lançados
de volta a um tempo primitivo e disforme,
anterior a toda lei.
Em tempos sombrios, o narcisismo aparenta
ser a única capaz de garantir ao homem um
mínimo de imunidade. Só provido da cápsula
narcísica ele ainda pode sentir confiança
para navegar pelos desvãos de um país que
exterminou a lei. Mas aqui é preciso fazer
uma distinção: a cultura do narcisismo e da
delinqüência não é um atributo necessário da
cultura da violência. Mas o que parece um
alívio é um perigo. "Em regimes
totalitários, regidos pela violência,
leis draconianas podem manter a sociedade
funcionando, porque ainda resta a lei da
obediência a um só líder", distingue o
psicanalista. Mas é uma coesão mecânica,
produzida pela dissuasão, pelo medo, pela
intimidação. A cultura do narcisismo
formou-se no Brasil, cabe lembrar, após a
queda do autoritarismo. "Foi a incapacidade
dos políticos de catalisar o desejo de
mudança que produziu a descrença e
justificou a delinqüência", diz o autor. Por
isso parece fazer sentido, hoje, o
sentimento irresponsável de que nos tempos
do regime autoritário, ao menos, o país
tinha alguma lei. Aqui Jurandir Costa nos
deixa diante de uma grave advertência:
num país em que a lei foi posta em
descrédito, qualquer promessa de lei, por
mais draconiana que seja, ou talvez quanto
mais draconiana for, pode comportar um poder
de sedução irresistível. Surge uma ilusão: a
do "eu era feliz e não sabia". Podemos estar
montados na cegueira de nosso pânico, sobre
o ovo da serpente. A cultura narcísica é, em
algum grau de possibilidade, uma cultura
pré-fascista. Justiceiros moralistas, seitas
fanáticas e skinheads espocando aqui e ali
nos fornecem, hoje, indícios desse risco.
A análise afiada de Jurandir Freire Costa,
desenvolvida em ensaios esparsos mas
contundentes publicados na imprensa e
reunidos nesta coletânea, coloca-nos cara a
cara com um perigo: o da paralisia social. O
sintoma da doença brasileira pode ser, hoje,
a incapacidade de reação. Ou
o sentimento generalizado de que qualquer
reação se transforma, inevitavelmente,
em frustração. Mesmo aqueles que conservam
um mínimo de responsabilidade para com o
país não escapam dessa sensação de
impotência. "Enfatizo isso porque não tenho
uma visão idílica do que pode vir a
acontecer", admoesta o psicanalista. E,
desmontando a hipótese de
qualquer falsificação de seu pensamento em
catecismo idealista, adverte: "Eu acho que o
Brasil pode não dar certo, acho que a
catástrofe pode chegar. Nada assegura que as
coisas tenham solução. Há coisas que se
encaminham para um ponto em que não há mais
solução possível".
Jurandir Costa não faz essa dura advertência
movido pelo pessimismo, mas pelo realismo
e desejo de reação. O desencanto pode, de
fato, destruir o país - e é contra ele que
se deve agora lutar. As classes médias
passam a sentir, ultimamente, o mesmo vazio
de perspectiva que sempre foi sentido pelas
populações marginalizadas", aponta. "Elas
nunca tiveram qualquer universo de
esperança. Só que isso, que antes era
sentido apenas no gueto, passa agora a
ser comum a todos nós". O cinismo aparece,
na verdade, para encobrir o sofrimento. O
amargor, a ironia encobrem a tristeza e a
desesperança. E nunca é bom fugir do
sofrimento e da infelicidade. A saída
narcísica leva os cidadãos a buscar a
felicidade na proteção de suas casas,
munidos de artefatos de consumo cada vez
mais sofisticados, mas cada vez
mais descrentes de qualquer saída coletiva.
Jurandir Costa pensa que o que está em jogo,
por fim, é a liberdade, "A liberdade, no
sentido clássico, é a liberdade de sair à
rua, de participar de convívio comum. Era
isso o que o escravo não tinha, e era por
isso que ele não era livre". Intimidados
pela violência, desconfiados até dos amigos
e enclausurados em nossa vida privada,
tornamo-nos escravos do medo. Tornamo-nos
nossos próprios carcereiros.
Cidadãos reclusos em seu narcisismo, armados
de cinismo até a alma, convictos de que
atuar socialmente é o mesmo que delinqüir,
vivemos da ilusão de que podemos escapar
solitários da catástrofe. "Não vamos
escapar", enfatiza Jurandir Costa. "A
espécie humana não tem instinto de
sobrevivência. Ela pode explodir o planeta
de uma hora para outra, pode fazer da
própria vida um verdadeiro inferno. " O que
a protege de si mesma é, nunca é demais
insistir, a cultura. Este mundo de leis e
ideais que transcende cada desejo individual
e nos faz empenhar a palavra e depois
cumpri-la. Sem os limites ditados por esta
lei, o país permanecerá
enjaulado nas pequenas miríades do
narcisismo. É ele que nos enlouquece.
Os artigos e entrevistas de Jurandir Freire
Costa reunidos nesse livro servem,
seguramente, como um poderoso antídoto
contra o pessimismo e a desilusão. Suas
idéias, cruas e difíceis, a princípio fazem
estremecer, mas logo, passado o susto, nos
levam a pensar. Não há, hoje, caminho fácil
para os que desejam formular uma saída para
o Brasil. Não existem atalhos floridos, nem
passagens secretas mágicas, ou vias
expressas de segurança máxima. O caminho que
temos pela frente é longo, tortuoso e
inseguro. Nada garante, além disso,
que encontraremos a luz em seu fim. Mas
nossa única chance é lutar.
José Castello é jornalista.
* Prefácio do livro A Ética e o Espelho da
Cultura, de Jurandir Freire Costa, da
Editora Rocco.