Serva de Deus Irmã Dulce
28 Fev 2007
A trajetória de Irmã Dulce,
que tem na dimensão e
sobrevivência de suas obras
sociais sua face mais
visível, revela uma
personalidade muito mais
complexa do que a da freira
que foi declarada Serva de
Deus pelo papa João Paulo II
e se encontra em processo de
beatificação pelo Vaticano.
A abnegação e a coragem com
que se dedicou aos pobres,
doentes, oprimidos e
excluídos foi radical e não
se restringiu ao
acolhimento.
Ao lado da fama de
santidade persiste na
memória dos que acompanharam
sua história, a mulher que
aliava o idealismo e a Fé a
uma determinação e firmeza
incansáveis, que não se
detinha frente a nenhum
obstáculo e superava
dificuldades e
incompreensões para
salvaguardar a ação
caritativa.
O destemor e o senso de
justiça, traços marcantes
revelados quando ainda era
menina e costumava atender
aos mendigos em frente à sua
casa – que passou a ser
conhecida como ‘A Portaria
de São Francisco’ – a
ajudaram a enfrentar
críticas e oposições. Sua
personalidade somada à
identidade com o carisma
franciscano, alimentado pela
devoção a Santo Antônio,
levou a jovem Maria Rita
(nome de batismo) a realizar
peregrinações à invasão de
palafitas dos Alagados. A
assistência aos que eram
tratados como parias pela
sociedade fez com que
passasse a ser chamada de
"Anjo dos Alagados". Irmã
Dulce tinha um carinho
especial pelos excluídos.
Amparada por sua missão,
enfrentou a censura da
conservadora sociedade
baiana dos anos 50 quando
decidiu fazer visitas aos
detentos do presídio da
Coréia (que ganhou esse nome
por conta da guerra travada
na época no país asiático),
que só cessaram quando ela
foi proibida de levar
conforto espiritual,
alimentos e remédios aos
presidiários. A proibição
gerou protestos da imprensa
liberal baiana, que estampou
sua indignação em manchetes
como a da edição do jornal A
Tarde de 21 de junho de
1954: "Irmã Dulce não pode
entrar na Coréia: onde os
presos não têm direito à
caridade".
Muitas das mais de 50 mil
pessoas que compareceram a
seu funeral no dia 15 de
março de 1992, dois dias
após seu falecimento, foram
prestar homenagem àquela que
consideravam santa e também
à corajosa visionária que
foi pioneira em áreas como a
ação social voltada para as
classes trabalhadoras: Irmã
Dulce, com apenas 22 anos,
foi responsável pela criação
em 1936 do primeiro
movimento operário cristão
da Bahia, décadas antes da
eclosão, na era pós Vargas,
dos movimentos trabalhistas.
Seu senso prático e
administrativo, que
concentrava habilidades de
engenharia, planejamento e
contabilidade, raramente
exercidas por mulheres na
época, são características
também pouco conhecidas.
Para subsidiar as ações de
assistência à classe
operária e aos pobres e
doentes, ainda na década de
30 fundou três cinemas, os
Cines São Caetano, Roma e
Plataforma, e em 1939,
inaugurou o Colégio Santo
Antônio, escola pública
voltada para os operários e
seus filhos, no bairro
popular de Massaranduba.
Nesse mesmo ano, Irmã
Dulce invadiu cinco casas na
Ilha dos Ratos, área
localizada na Cidade Baixa,
para abrigar doentes que
recolhia nas ruas. A
expulsão do local pelas
autoridades fez com que a
freira peregrinasse por dez
anos com seus doentes,
pobres e excluídos até
abrigá-los em 1949 no
galinheiro do Convento Santo
Antônio, onde improvisou em
albergue. O lugar deu origem
ao Hospital Santo Antonio,
um dos núcleos de suas Obras
Sociais que em 2003
realizaram mais de 2 milhões
de atendimentos em saúde,
assistência social e
educação.
Amizade e Devoção
A perseverança com que
defendeu o direito à saúde,
educação e dignidade aos
miseráveis angariou ao longo
de seus 78 anos de vida a
amizade e a admiração da
gente simples e de
poderosos. Depois do susto
de ter a comitiva paralisada
pela interposição de Irmã
Dulce à frente de seu carro
durante uma visita oficial a
Salvador, o presidente
Eurico Gaspar Dutra sanou as
dívidas com a União e
forneceu a ajuda oficial
para que ela inaugurasse o
Círculo Operário em 1948;
Juscelino Kubistcheck e José
Sarney também foram
admiradores da freira. Em
1988, Sarney a indicou para
o Nobel da Paz, com o apoio
da Rainha Sílvia, da Suécia.
Oito anos antes, no dia 7 de
julho de 1980, Irmã Dulce
ouviu do Papa João Paulo II,
na sua primeira visita ao
país, o incentivo para
prosseguir com a sua obra.
Os dois voltariam a se
encontrar em 20 de outubro
de 1991, na segunda visita
do Sumo Pontífice ao Brasil.
João Paulo II fez questão de
quebrar o rigor da sua
agenda e foi ao Convento
Santo Antônio visitar Irmã
Dulce, já bastante
debilitada, no seu leito de
enferma. Cinco meses depois
da visita do Papa, os
baianos chorariam a morte da
'Mãe dos Pobres'.
Ação e Fé
Segundo o teólogo e
consultor da Congregação
para a Causa dos Santos do
Vaticano, Gaetano Passarelli,
autor da biografia de Irmã
Dulce, a marca da iluminação
da freira baiana se mostra
na potência de sua fé,
caracterizada pela firmeza
em não se desviar de seus
objetivos frente a
obstáculos tão grandes. "Ela
não enxergava muros, era
completamente tomada e
sustentada por sua fé, que a
encaminhava para o outro,
para o objetivo de servir ao
próximo enxergando nele
Deus”, diz. “Ela estava só e
sua evangelização se deu de
forma ativa, ela levou a
palavra aos necessitados
estendendo a mão à sua
miséria”.