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Percorrendo as Várias
Veredas do Sertão Humano
Raquel F. Souza
A obra “Grande Sertão: veredas”,
de Guimarães Rosa, apresenta um diálogo submerso
às palavras, entre a construção dos
protagonistas (Riobaldo e Diadorim) e as
filosofias moderna e clássica.
Tal diálogo faz-se presente
através de vários elementos constituintes da
narrativa; tais como: pensamentos dos
personagens, monólogos interiores, traços de
personalidade, questionamentos feitos no
decorrer da “estória”, outros.
A obra referida mostra-se rica,
pois constrói personagens que dialogam com
teorias filosóficas platônicas, socráticas,
aristotélicas, agostinianas, cartesianas,
sarthrianas, entre outras, ou seja, uma viagem
em meio aos saberes filosóficos de todos os
tempos, depositada em duas personagens capazes
de dizerem muito, mesmo, às vezes, permanecendo
mudas.
As personagens protagonistas, no
desencadear da “estória”, levantam discussões
válidas a todos os tempos e a todo ser humano
pensante, tais como: bem e o mal; Deus e o Diabo
(que representam o mundo bipartido bem descrito
por Agostinho); raciocínio sobre o próprio
pensamento; (...); é onde fica perceptível o
valor e a genialidade de Guimarães Rosa, ao
passo que não coloca tais características em
personagens cultos ou letrados; coloca-as em
sertanejos: pessoas brutas e incompreensivas,
com sede de vingança, mas ao mesmo tempo,
sublimes, pois são capazes de sentir amor um
pelo outro, mesmo que a princípio sem aceitação
ou racionalidade.
Tal obra convida-nos à reflexão,
ao trazer a expressão “no nada” como ponto de
partida do enredo que se desencadeará. Todos os
discursos filosóficos iniciam-se a partir de
“negativas”; neste não seria diferente.
O desafio é apresentado ao leitor
através da adoção de um discurso enganador, que
não passa de ilusão ou metafísica;
aparentemente, uma obra inocente e simples, mas
totalmente filosófica; que mistura personagens
sertanejos ao discurso de grandes pensadores, o
que pode ser percebido na construção e
constituição dos personagens- protagonistas. O
exemplo mais claro a ser citado aqui é o
personagem Riobaldo, um jagunço que desenvolve
monólogos interiores; questionamentos; críticas;
perguntas que envolvem a existência humana,
jamais respondidas; passa por mudanças
comportamentais; não as aceita; se posiciona,
ora como um “ pensador”, ora como um humano rês.
Nosso intuito aqui é o de ligar
os discursos filosóficos aos literários, que há
na obra “Grande Sertão: veredas”, a fim
de identificar a ficção e o humano que há na
construção das personagens principais, tal como
encontrar nos discursos intelectuais
“filosóficos” o que liga tais personagens ao
lugar da verossimilhança, capaz de fazer-nos
aceitar o convite de Rosa à reflexão e
aproximá-los da realidade; da nossa realidade;
num processo constitutivo. “ A linguagem
constitui a realidade” (Wittgeinsten).
Ao inserir características
humanas nos personagens (tão humanos) como: medo
do desconhecido; medo do mal; personalidade;
falsidade (representação); maldade e amor, ao
mesmo tempo, outras; João Guimarães Rosa
consegue mexer com o senso intelectual do
leitor/ ser humano, ao passo que constrói os
personagens Diadorim e Riobaldo tão sábios e
reflexivos e ao mesmo tempo tão finitos e
limitados, a ponto de não conhecerem a si
mesmos, apresentando assim um diálogo contrário
ao socrático: “Conheça-te a ti mesmo”,
caindo na eterna contradição humana: conhecer os
outros, mas não conhecer a si mesmos.
É fato que não conseguiremos
aqui identificar todos os discursos filosóficos
presentes nas personagens protagonistas de
“Grande Sertão: veredas”, mas buscamos
identificar ícones das filosofias clássica e
moderna, presentes no discurso de tais
personagens.
Como bem dizia Guimarães Rosa:
“ o sertão está dentro de nós”, logo
desvendar os enigmas existentes nas entrelinhas
da obra é regar a paisagem árida do sertão com
“possibilidades” de leitura, de pensamentos, de
conhecimentos. Sendo o “pensamento” a prova de
nossa existência, como fora dito por Descartes:
“penso, logo existo” , a busca do mesmo,
instigada pela leitura da obra em estudo, faz do
leitor uma real e participativa existência:
parte fundamental também na composição do
enredo.
Como todo conhecimento passa pela
subjetividade, nada melhor do que representá-lo
em meio à subjetividade humana, que é fonte de
grande parte do conhecimento universal, trazendo
assim a representação de um “ eu- identidade”,
que a princípio não mudaria, mas através da
percepção da realidade, aceita as mudanças,
atendendo a uma das funções principais da
Filosofia, que é a busca de um mundo harmônico,
com pessoas que mesmo que tenham naturezas
diversas, aceitam as diferenças e se propõem a
mudar, ou seja, que julguem o que é bom e o que
é mal (se isto for possível) e utilizem seu
grau de liberdade para fazerem a melhor
escolha, como defendia Rousseau: pensamento bem
representado em Grande Sertão:
veredas.
O que temos em mãos
para análise é uma obra que lança a “doxa” e
deixa para o leitor a construção da “episteme”,
obedecendo à noção de que todo conhecimento é
narrativo, mas respeitando a liberdade de
leitura e interpretação do todo-textual, que é
maior que as partes constituintes, como diria
Sarthe. Uma obra que leva o leitor ao estágio do
espelho, à fragilidade humana, à imagem
dilacerada que busca uma reconstrução através
dos ditos ou dos interditos.
Deixo o convite ao mundo das
leituras e dos devaneios apresentado
em Grande Sertão: veredas.
Construa sua leitura!
24 de janeiro de 2007.
REFERÊNCIAS:
I - ROSA,
Guimarães. Grande Sertão: veredas.
Cia das Letras: São Paulo, 2000.
II - NIETZSCHE,
Friedrich. Além do bem e do mal:
prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo:
Cia das Letras, 1992.
III - KOCH,
I. G. Villaça. Desvendando os
segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2003 –
p. 21-33.
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