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SANTIAGO
Em Santiago, João Moreira
Salles busca, numa linguagem
documental, reconstituir seus tempos
de infância, elegendo, como ponto de
referência, um mordomo, de origem
italiana ( piemontês ), de vasta
cultura e memória prodigiosa, que
assegurava o brilho das recepções
oferecidas pelo pai do realizador,
Embaixador Walter Moreira Salles, em
sua casa da Gávea, no Rio, durante
os governos de Getúlio Vargas,
Juscelino Kubitschek, João Goulart e
Jânio Quadros.
A peculiaridade dessa nostálgica
reconstituição dos tempos de
infância de João Moreira Salles é a
de que ela foi feita em duas épocas
diferentes, isto é, com o intervalo
de quase 14 anos, quando se acentuou
na consciência do realizador o
sentido de perda ou, em suas
palavras, a compreensão de que as
coisas um dia acabam. Pois as
imagens rodadas em 1992, após a
morte de sua mãe, as quais
permaneceram intocadas, se
mostraram, como é óbvio, de maior
interesse anos mais tarde, em 2005,
depois de ocorridos os óbitos do
mordomo e de seu pai, quando então
foram editadas.
O elo afetivo que o realizador
mantém em relação aos três
personagens é por assim dizer o fio
condutor da narrativa, feita na
primeira pessoa que lembra, por
exemplo, quando a mãe lhe dizia de
sua admiração pelos arranjos florais
que Santiago preparava para as
recepções da casa da Gávea,
atendidas por vinte garçons. Nas
imagens da entrevista com Santiago,
rodadas em preto e branco, no seu
exíguo apartamento do Leblon, João
lhe pede que fale sobre esses
arranjos florais – que talvez
fossem, penso eu, como os enormes
centros de mesa da Renascença -, os
quais, segundo o mordomo, eram
confeccionados sob a inspiração dos
movimentos de peças musicais de
Beethoven, de Wagner e de Bach.
O realizador conta que certa noite
– reconstituída no documentário,
malgrado sua vontade, à luz do dia
-, na ausência de seus pais, tendo
sido acordado ao som de um piano,
correu ao salão e a surpresa lhe
veio, não por ser Santiago o
executante, o que era comum, mas
pelo fato de ele estar vestido de
fraque, como um concertista.
Perguntado sobre a indumentária,
Santiago prontamente respondeu que
ela se tornava necessária para que
ele pudesse realmente interpretar
Beethoven.
Outra noite, como lembra Santiago,
estava programada sua folga por ser
a data de seu aniversário, quando,
de forma inesperada, ele se viu
forçado a organizar uma recepção.
Antes de se iniciar o jantar, porém,
o Embaixador – que aqui vale lembrar
foi negociador de um dos melhores
acordos da dívida externa brasileira
durante o governo de Jânio Quadros
- e seus convivas, para surpresa do
mordomo, o brindaram com
champanhe!... Sim, com champanhe –
diz ele envaidecido. Dos homens
públicos brasileiros que lá iam à
casa da Gávea, Santiago cita apenas
Juscelino e João Goulart.
Há um momento no filme em que se
conjugam as intenções do realizador
com as do personagem em reconstituir
seus tempos de infância, um,
portanto, complementando o outro. É
quando Santiago rememora, mais
eufórico do que o realizador, suas
impressões de viagem a Gênova e, em
seguida, fala de seus primeiros
tempos na Argentina, onde descobriu
sua paixão pelas lutas de boxe e
mais que tudo pela ópera –
principalmente pela de Giuseppe
Verdi - , no Teatro Colón, de Buenos
Aires, onde conheceu os cantores
mais famosos da época, como
Beniamino Gigli, em La Traviata.
Além da paixão pelo boxe e pela
ópera, Santiago gostava também de
fazer suas preces em latim ou no
dialeto piemontês e de dançar,
tocando às vezes castanholas não
como acompanhamento de música do
repertório flamenco como é usual,
mas de outra de andamento lírico.
Por isso, ele se tornara grande
admirador de Fred Astaire e de Cyd
Charisse, intérpretes de A Roda
da Fortuna, de Vincente Minelli
(1953), que tem uma seqüência
reproduzida no filme. O seu cineasta
preferido, porém, parecia ser, como
ele diz, o sueco Ingmar Bergman, de
quem cita, com propriedade, em
seqüência repetida intencionalmente
por três vezes, a frase: Somos
mortos insepultos, apodrecendo
debaixo de um céu cruento e vazio.
Mas a grande realização de
Santiago, que por certo lhe fez a
existência apetecida, como diria
Machado de Assis, e não uma
decepção, como sugere o realizador
no pós-escrito, foi um repositório
de mais de trinta mil laudas
copiadas ao longo dos anos de livros
por ele lidos em diversas
bibliotecas. Essa documentação,
cujo destino era motivo de
preocupação de Santiago, narra a
vida das grandes dinastias do mundo
inteiro em especial as dos Médicis,
as dos Malatestas, a dos Borgias, as
dos Viscontis – que descobriram o
pannetone -, às margens da qual ele
escrevia, numa antiga máquina de
escrever, suas observações, como por
exemplo a defesa veemente que faz de
Lucrezia Borgia, casada, em 1502,
com Alfonso, filho do governante de
Ferrara, tida pelos historiadores
como mulher cruenta, má e
envenenadora de maridos.
Eram essas figuras históricas, bem
como cinco Madonas da Renascença,
que serviam de companhia a Santiago,
como ele afirma em suas entrevistas
- às quais chama de embalsamamento -
pouco antes de sua grande partida,
segundo suas próprias palavras:
Eu vivo aqui só, mas nunca estou
sozinho, pois tenho a companhia
dessas figuras maravilhosas da
aristocracia mundial!... São elas as
minhas eternas companheiras.
Enfim, a um país, como o nosso, que
despreza a cultura, Santiago, com
humildade, ensina que a cultura
sozinha pode preencher toda uma
vida. E como pode!...
Quanto ao documentário de João
Moreira Salles, é tecnicamente bem
realizado com uma bela composição de
planos calcada – segundo ele próprio
esclarece - no filme Viagem a
Tóquio, obra-prima de Yasujiro
Ozu (1953), que tem seqüências
reproduzidas sobre os créditos
finais. Esses planos são
naturalmente valorizados pela
expressividade da fotografia em
preto e branco de Walter Carvalho e
por uma primorosa trilha musical. Em
suma, Santiago, de João
Moreira Salles, é um filme
inteligente, de muita sensibilidade
e poesia, que dignifica o cinema
brasileiro. Vale a pena, portanto,
vê-lo e admirá-lo!...
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, Brasília, Revista
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FICHA TÉCNICA
SANTIAGO
Brasil/2006
Duração – 80 minutos
Direção – João Moreira Salles
Produtor – Maurício Andrade Ramos
Diretor de Fotografia – Walter
Carvalho
Edição – Eduardo Escorel e Lívia
Serpa
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