AS LEIS DE FAMÍLIA
Em As Leis de Família, Daniel
Burman, um dos mais importantes
cineastas latino-americanos da
atualidade, volta, uma vez mais, a
tratar de questões familiares, como já o
fizera antes em Esperando o Messias
e O Abraço Partido, destacando,
numa linguagem poética em que os fatos
às vezes contradizem em muito a
narrativa, a figura paterna como
determinante na construção da identidade
do filho.
Como o próprio Burman revela, a idéia do
roteiro lhe surgiu ao ler uma declaração
de François Truffaut – com o qual por
sinal guarda muita semelhança de estilo
-, para quem o momento mais definidor na
vida de um homem se dá quando descobre
que seus filhos são, para ele, mais
importantes do que foram seus pais.
Isso, segundo o cineasta argentino, é
bastante significativo na busca da
identidade influenciada pela compreensão
que temos de nós mesmos.
O filme, portanto, trata das convenções
de família – não propriamente das leis
- de acordo com a cultura judaica que
Burman procura sempre ressaltar. Talvez
seja por isso que, além de o título
parecer equivocado, alguns aspectos dos
relacionamentos, tanto entre pai e
filho, como entre marido e mulher, podem
também suscitar dúvidas no espectador
menos avisado. Principalmente porque o
cineasta, sem querer tomar partido,
narrando os fatos sob a ótica do filho,
Ariel Perelman (Daniel Hendler), cria
personagens que vivem em mundos
isolados, os quais não se comunicam e
por isso também não se conflitam.
Assim, evitando o conflito dramático,
Burman ganha oportunidade de realizar
uma bela e poética narrativa,
explorando, à maneira de Thechov, o
cotidiano das personagens, com muitas
nuanças e detalhes. O advogado Perelman,
pai (Arturo Goetz), pratica a profissão,
de acordo com a moda antiga, isto é, a
de atender clientes em lugares públicos,
como restaurantes e lanchonetes, apesar
de ter um escritório antiquado e uma
secretária também, como ele, já idosa,
Norita (Adriana Aizemberg).
Embora seja Perelman, pai, um causídico
de pequenos clientes – aqui conhecido
vulgarmente como "advogado de porta de
cadeia" - , ele tem um bom círculo de
amizades, tanto no Fórum, onde chega
cedo, todos os dias, com presentinhos
para os servidores dos cartórios, como
em bares e restaurantes que também
freqüenta, nos quais encontra amigos e
parentes. Por sua vez, Ariel Perelman
também seguiu a carreira do pai, mas se
mantém à distância dele, pois, querendo
evitar certamente as incertezas da
profissão, no que diz respeito a
recebimento de honorários, tornou-se
defensor público e professor
universitário, recebendo o dinheiro
pingado todo mês. Em vista disso, se
julga superior.
Mas a diferença que se impõe entre pai e
filho é, na verdade, a de que o primeiro
é alegre, amado e respeitado por todos
que o conhecem, enquanto o segundo,
presunçoso, arrogante, leva vida
solitária, sem atrativos. Isso perdura
até que ele se interesse por uma
ex-aluna, Sandra ( Julieta Diaz), que,
tendo deixado a faculdade, abriu uma
academia, na qual faz sessões de
massagens pelo método Pilates sem
respeitar, porém, o direito de
exclusividade de outrem, o que vai ser
mais tarde decidido na justiça por
intercessão de Perelman, pai.
Casado com Sandra – que se mantém um
tanto indiferente ao marido, isolada no
seu mundo profissional - e pai de Gastón
(Eloy Burman, filho do diretor), Ariel
Perelman começa a perceber aos poucos,
não sem relutância e certa apreensão,
que os caminhos que vai trilhando na
vida se identificam muito com os do pai.
É a busca da identidade, tema que Burman
desenvolvera em O Abraço Partido,
no qual, ao contrário do que ocorre em
Leis de Família, o filho sentia a
ausência do pai.
Como Truffaut, que tinha Jean-Pierre
Léaud como seu ator quase que exclusivo,
Burman tem Daniel Hendler, com quem já
fez quatro filmes. Os dois se entendem
maravilhosamente bem. Também como o
cineasta de O Domicilio Conjugal,
Burman arquiteta e ensaia as cenas nos
seus mínimos detalhes para depois
registrá-las, como a que mostra, por
exemplo, pai e filho, conversando sobre
o desenho da calçada de uma praça que
indica uma encruzilhada, representativa
de duas vidas distintas. Ou então a que
focaliza ambos tomando sorvete, quando
Perelman, pai estranha que o filho seja
canhoto.
As imagens, captadas pela câmara de
Ramiro Civita, contrastam, porém com a
narrativa. Há nítida contradição, como
se observa, entre o que diz o narrador
em off e a forma pela qual comporta
Ariel Perelman na realidade objetiva dos
fatos, o que dá certa ironia ao filme e,
ao mesmo tempo, o torna cativante. Os
diálogos são poucos porque, para Burman,
entre familiares, a comunicação passa
menos por palavras do que por sensações,
gestos corporais e silêncios, como ele o
demonstra bem no filme.
Além de Daniel Hendler, que tem
excelente atuação – observe-se, por
exemplo, o close no rosto do
ator, de muita expressividade, ao final
do filme - todo o elenco está perfeito.
É digna de nota, entretanto, a
interpretação de Arturo Goetz, como
Perelman, pai, que explora o silêncio
com extraordinária competência. É a sua
imagem que fica. E o comentário musical
de César Lerner por meio de um suave
solo de piano se constitui em outro
grande atributo desse novo trabalho de
Daniel Burman, que, a meu ver, merece
ser visto.
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, Brasília, Revista
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FICHA TÉCNICA
LEIS DE FAMÍLIA
DERECHO DE FAMILIA
Argentina, Itália, Espanha e
França/2006
Duração – 102 minutos
Direção – Daniel Burman
Roteiro – Daniel Burman e Mônica Brbero
Produção - Diego Dubcovsky, Marc
Sillam e José Maria Morales
Fotografia – Ramiro Civita
Direção de Arte – Maria Eugenia Sueiros
Música – César Lerner
Edição – Alejandro Paryson
Elenco – Daniel Hendler (Ariel Perelman),
Arturo Goetz ( Perelman, pai), Julieta
Diaz ( Sandra), Eloy Burman (Gastón
Perelman), Adriana Aizemberg (Norita),
Jean-Pierre Reguerraz (Tio Eduardo
Perelman).