A VIDA DOS OUTROS
A Vida dos Outros, escrito e
dirigido pelo cineasta estreante,
Florian Henckel Von Donnesmarck, Oscar
de Melhor Filme de Língua Estrangeira de
2007, além de outras inúmeras
premiações, mostra, numa linguagem
contundente, mas de excepcional
qualidade, como um governo autoritário
- o da extinta República Democrática
Alemã - procurava assegurar o poder
mediante cruel sistema de controle e
vigilância sobre seus cidadãos,
principalmente os da classe artística.
Diferentemente do que ocorria em
Adeus, Lênin, de Wolfgang Becker, o
filme de Florian Donnesmarck reconstitui
Berlim Oriental, em 1984 – cinco anos
antes da queda do muro - como de fato
era, para quem a conheceu, uma cidade
sombria e misteriosa. Por isso, há de se
destacar, em primeiro lugar, a qualidade
da fotografia, monocromática, de Hagen
Bodanski, pela qual o cineasta estreante
compõe planos com a maestria e o estilo
de um competente veterano.
Também o roteiro, elaborado por
Donnesmarck com apoio em pesquisas
feitas nos arquivos públicos e nas
bibliotecas, é perfeito nos mínimos
detalhes, uma vez que sabe caracterizar,
desde o início, como thriller político,
um argumento que trata, na verdade, da
evolução de um indivíduo, de uma
personalidade, num meio adverso. Pois de
fato o núcleo dramático está centrado
na figura do agente da Stasi ( polícia
secreta da Alemanha Oriental), Gerd
Wiesler (Ulrich Mühe), o qual, já no
prólogo, explica aos seus alunos, o
infalível método de inquirição por ele
desenvolvido para obter confissões de
pessoas que conspiram contra o regime.
Por sua dedicação à profissão, o nome de
Wiesler é lembrado pelo capitão Anton
Grubitz (Ulrich Tukur), quando ele,
ansioso por se promover, recebe do
ministro da Cultura, Bruno Hempf (Tomas
Thieme), a missão de investigar a vida
de Georg Dreyman (Sebastian Koch), único
dramaturgo em atividade no país porque
afinado com a linha política da RDA. Da
parte de Hempf – é bom frisar - não há
propriamente desconfiança quanto à
postura política de Dreyman. Há, sim,
desejo de envolvê-lo em alguma situação
difícil para afastá-lo da namorada, a
atriz Christa-Maria Sieland (Martina
Gedeck), de prestígio também no estado
socialista, a qual ele, por sua vez,
deseja conquistar.
Ao procurar Wiesler para incumbi-lo de
investigar Dreyman, nem mesmo Grubitz
acredita que o dramaturgo não esteja
"limpo", isto é, que possa vir a ser
suspeito de alguma atividade contrária
ao regime. Para sua surpresa, contudo,
Wiesler pensa diferente. E começa, de
imediato, a montar o esquema pelo qual
será ele capaz de não só investigar a
vida do dramaturgo, mas também de
participar dela, na intimidade,
relatando-a vinte e quatro horas por
dia. E é aí que, para Wiesler, reside o
perigo, uma vez que, vivendo na
mediocridade, no subterrâneo, na
solidão, ele se deixa fácil levar pelo
fascínio que lhe causa a vida do autor
dramático.
É importante observar, a propósito, que
a mudança que se vai operar no íntimo
de Wiesler começa realmente a se dar no
momento em que ele, de forma
clandestina, entra no apartamento de
Dreyman e lhe rouba a obra de Brecht,
dedicando-se a ler principalmente seus
poemas. A poesia de Brecht o faz então
descortinar um mundo novo a que ele,
burocrata medíocre, nunca tivera acesso.
E mais: o erotismo e a sensualidade dos
versos de Brecht - um mulherengo -
fazem com que Wiesler se influencie pela
vida dos outros, mais especificamente,
que seu coração empedernido se
enterneça, de repente, em relação a
Christa-Maria, que, para se manter no
palco, namora o dramaturgo de maior
prestígio no país, torna-se amante do
ministro da Cultura e se droga
freqüentemente.
Na cena em que Wiesler encontra
casualmente Christa-Maria num café e,
sem ser convidado ou autorizado,
senta–se à sua mesa, procurando
abordá-la, o ator Ulrich Mühe
complementa o que eventualmente possa
ter faltado no roteiro para fixar em
definitivo o perfil psicológico do seu
personagem, dando sinais da evolução que
então se opera em sua personalidade. É
uma atuação realmente memorável, a
última do ator, falecido aos 53 anos de
idade, em julho último, na cidade de
Walbech, vitimado por câncer no
estômago. Aliás, ao que se infere, o
trabalho de Mühe deve ter sido para ele
duro desafio porque, ao iniciar a
rodagem do filme, já sabia que não
teria mais muito tempo de vida, uma vez
que sua primeira mulher, a atriz Jenny
Groellman, se findara alguns meses
antes, vitimada pelo mesmo mal de que
ele sofria.
Mas o rigor que Ulrich Mühe ainda assim
impôs à sua composição é notável, o qual
deve ser observado e admirado
principalmente em cenas de duas
caminhadas empreendidas por Wiesler : a
primeira, quando ele deixa o edifício,
de onde faz escuta e relato das
atividades diárias de Dreyman, com medo
da própria sombra e, a segunda, quando,
nos tempos atuais, após a queda do muro,
ele, conduzindo o carrinho de
correspondências por uma avenida de
Berlim, leva o personagem à expiação.
Mas um lampejo de esperança lhe vem
certamente ao ver na vitrina de uma
livraria o anúncio do novo livro de
Dreyman ao lado de uma grande fotografia
do dramaturgo. Ele compra o livro e, de
repente, tem uma surpresa ao
folheá-lo... É, sem dúvida, a mais
genial interpretação que nos vem da
Alemanha desde a também memorável
atuação de Bruno Ganz no papel de
Hitler, em A Queda, de Oliver
Hirschbiegel.
Todo o elenco, porém, apresenta trabalho
irrepreensível sob a orientação de
Florian Donnesmark que, em sua
composição de planos, sabe valorizar a
interpretação dos atores. A atriz
Martina Gedeck, por exemplo, que, levada
aos poucos ao limite da resistência de
sua personagem, rumo à degradação, ganha
evidência principalmente pelo
enquadramento quase constante de seu
rosto gasto, murcho e cansado. Mas é
inegável que os atores tiram proveito
também das sábias marcações, idealizadas
pela direção, como as das batidas
policiais no apartamento de Dreyman à
procura da máquina em que foi escrito o
artigo para ser publicado na revista
Der Spiegel. Para completar, a
trilha sonora de Gabriel Yared e
Stéphane Moucha, com trechos da Sinfonia
Apassionata, de Beethoven, a
preferida de Lênin, dá ao filme de
Florian Donnesmark a categoria de uma
verdadeira obra de arte.
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, Brasília, Revista
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FICHA TÉCNICA
VIDA DOS OUTROS
DAS LEBEN DER ANDEREN
Alemanha/2006
Duração – 137 minutos
Direção e Roteiro – Florian Henckel Von
Donnesmark
Produção – Quirin Berg e Max Widerman
Fotografia – Hagan Bodanski
Trilha Sonora – Gabriel Yared e Stéphane
Moucha
Edição – Patrícia Rommel
Elenco – Ulrich Mühe (Gerd Wiesler),
Martina Gedeck (Christa-Maria Sieland),
Sebastian Koch (Georg Dreyman), Ulrich
Tukur (capitão Anton Grubitz), Thomas
Thiem (ministro Bruno Hempf), Volkmar
Kleinert (Albert Jerska)