Theresa Catharina de Góes Campos

 

SANTOS E DEMÔNIOS

Em Santos e Demônios, o cantor Dito Montiel – estreando, no filme, como roteirista e diretor - faz relato, carregado de sentido de culpa kafkiana pelo fato de haver se ausentado por mais de quinze anos dos pais e dos amigos que o viram crescer num dos bairros periféricos de maior miséria e violência de Nova York, o Astória, no Queens, habitado em sua grande parte por latino-americanos.

O roteiro foi escrito com base no livro intitulado A Guide to recognizing Your Saints, lançado em Los Angeles, na Califórnia, em que Dito (Robert Downey Jr), com 38 anos, narra sua própria história, que se inicia com o telefonema da mãe, Flori (Dianne Wiest ), chamando-o de volta a Nova York, pois, o pai dele, Monty (Chazz Palminteri), muito doente, se recusa a consultar um médico.

Flori se animara a telefonar ao filho depois que lera em seu livro a manifestação do amor que ele ainda sentia pelo pai, com quem sempre se desentendera nos tempos de jovem (Shia LaBoeuf), principalmente por obrigá-lo – a lembrar certamente o pai de Kafka, de quem Montiel, como escritor, sofre influência -  a ser amigo e companheiro de Antônio (Channing Tatum), indivíduo abrutalhado, de péssimos antecedentes morais.

Ao decidir viajar de avião, cobrindo a distância de  cinco mil quilômetros, Montiel, em sucessivos flashbacks, recorda seus tempos de juventude no bairro Astoria, cercado de amigos – como Nerf (Peter Anthony Tambakis), que prometera apanhá-lo no aeroporto -, os quais caminhavam celeremente para as drogas e a marginalidade.

Como a história não tem evidentemente muita originalidade, a questão que se pôs para Montiel foi a de adequar – o que ele conseguiu, a meu ver, da melhor maneira possível - a linguagem literária com a cinematográfica que assim, escapando do realismo ortodoxo, mais sugere do que mostra, forçando a reflexão do espectador principalmente nas cenas de maior violência.

Para conseguir isso, Montiel – que contou com produção executiva do cantor Sting e do ator Robert Downey Jr. -  optou por marcações teatrais nas cenas de interiores em que a câmara de Eric Goutier funciona como incômoda testemunha e, nas externas, usou e abusou de uma movimentação dos personagens, liderados por Antônio, quase coreográfica que a aproxima bastante da coreografia idealizada por Jerome Robbins para o clássico West Side Story, de Robert Wise.

Mas a influência do musical de Wise – que narra a história de Romeu e Julieta, tendo como pano de fundo a guerra de gangues nos bairros pobres de Nova York – não fica só nisso, pois Montiel também faz em seu Santos e Demônios a cena do balcão, ou melhor, a da escada de incêndio, na qual Dito vai à janela do quarto de Laurie (Melonie Diaz), enquanto se ouve pela excelente trilha sonora de Jonathan Elias e outros, não Maria, de Leonard Bernstein, mas My Maria, de Daniel Moore, interpretada por B.W. Stevenson.

É bom observar ainda que o sonho de mudança de vida começa a nascer para Dito, quando ele conhece o garoto irlandês, Mike O´Shea ( Martin Compston), com o qual faz longas viagens de metrô a fim de conseguir algum dinheiro num emprego de pajem de cachorros. É dessas viagens que Montiel tira proveito não só para alimentar a esperança dos dois garotos de mudar de paisagem, como para mostrar, como poucos o fizeram, a fria e enigmática geografia suburbana de Nova York.

Outro atributo do diretor estreante Montiel é o de saber lidar com o elenco, pois, sob sua orientação, todos os atores se mostram irrepreensíveis em suas atuações. A primeira imagem que surge na tela é a da atriz Dianne Wiest, que impressiona, falando ao telefone com o filho, em Los Angeles, após muito tempo de separação. Quando ele chega, porém, a conversa reservada que ambos têm, fora de casa, na esquina, é memorável pelo embate interpretativo. Wiest está soberba ao explicar a Dito a diferença de idade que existe entre o pai e ele: - Quando você era criança e saía com seu pai à rua, muitos indagavam se ele era seu avô!... E Downey Jr., trabalhando especificamente com os músculos da face e um tique nos lábios, tem um dos melhores momentos de sua carreira.

Por sua vez, Shia LaBeouf  demonstra no filme o motivo pelo qual tanto se investe nele atualmente como um dos atores mais promissores do cinema americano. Ele não é dos que vão apenas pela intuição, confiantes no talento, pois tem personalidade forte para conduzir sua carreira de ator. Como Dito, na juventude, o ator tem excelentes momentos principalmente nos que contracena com seu opositor principal, o pai, Chazz Palminteri, que tem também uma atuação memorável. São dignas de nota ainda as interpretações de Channing Tatum, Rosário Dawson e Eric Roberts, os dois últimos, contudo, em rápidas aparições.

Em suma, Santos e Demônios, que ganhou dois prêmios nos Festival de Veneza, dois no Festival de Sundance, três no Independent Spirits Award, além de muitos outros em variados certames, é prova eloqüente do talento de um roteirista e diretor estreante, Dito Montiel, que é também escritor, compositor e cantor. Eis um filme, portanto, que merece e precisa ser visto.

REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, Brasília, Revista
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FICHA TÉCNICA
SANTOS E DEMÔNIOS

A Guide to Recognizing Your Saints
EUA/2006
Duração – 98 minutos
Direção e Roteiro – Dito Montiel
Produção – Charlie Corvin, Travis Swords, Clare Markowicz
Fotografia – Eric Goutier
Trilha Sonora – Jonathan Elias, Jimmy Hann, David Whitman

Elenco – Dianne Wiest (Flori), Robert Downey Jr. (Dito), Shia LaBeouf (Dito jovem), Channing Tatum (Antonio jovem), Chazz Palminteri (Monty), Rosario Dawson (Laurie), Eric Roberts (Antonio), Melonie Diaz (Laurie jovem), Julia Garro (Diane)

 

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