Entre
o azul
e o cor-de-rosa
Especialistas
da Unicamp
lançam livro
único no País
sobre
ambigüidade
sexual
LUIZ SUGIMOTO
É
uma situação
esdrúxula, mas
factível e nem
tão rara: na
maternidade, os
médicos olham
para o
recém-nascido
sem conseguir
identificar se é
um menino ou uma
menina; os
funcionários do
berçário,
tampouco; então
o bebê recebe
uma fitinha azul
no pulso
esquerdo e outra
cor-de-rosa no
pulso direito. E
os pais, com a
criança nos
braços, voltam
para casa sem
saber a resposta
para aquela
primeira
pergunta, óbvia,
que parentes e
amigos sempre
fazem...
Menino ou
menina? – Os
distúrbios da
diferenciação do
sexo é um livro
inédito no
Brasil,
organizado pelos
professores
Andréa Trevas
Maciel-Guerra e
Gil Guerra
Júnior, onde se
relata a
experiência e
embasamento
teórico dos
profissionais do
Grupo
Interdisciplinar
de Estudos da
Determinação e
Diferenciação do
Sexo (Giedds) da
Unicamp. É uma
obra impar
porque reúne,
num único
volume,
informações que
antes precisavam
ser buscadas na
literatura de
diversas áreas –
embriologia,
cirurgia
pediátrica,
endocrinologia,
genética,
anatomia
patológica,
psicologia e
medicina legal,
entre outras. O
livro será
lançado durante
o I Simpósio de
Endocrinologia
Pediátrica da
Unicamp, que se
realiza nos dias
9 e 10 de agosto
próximo (veja
matéria na
página 5).
Em 12 anos de
trabalho, o
Giedds atendeu a
800 pacientes da
região.
Ultimamente, a
média subiu para
100 casos ao
ano, embora nem
todos de sexo
indefinido. "É
importante
esclarecer que o
livro, assim
como nosso
Grupo, trata de
crianças com
alteração na
genitália, tanto
na parte externa
quanto interna,
ou de problemas
que levem a
isso. E não de
quem tenha
distúrbio do
sexo psicológico
na vida adulta",
ressalta Gil
Guerra, chefe do
Departamento de
Pediatria da
Faculdade de
Ciências
Médicas.
Andréa
Maciel-Guerra,
chefe do
Departamento de
Genética Médica
da FCM, explica
que o sistema
reprodutor pode
ser dividido em
três setores.
Primeiramente
temos as
gônadas, que
produzem os
gametas – o
ovário na
mulher, o
testículo no
homem. Depois
vêm os genitais
internos: útero
e trompa na
mulher e, no
homem, um
conjunto de
canais que levam
o espermatozóide
do testículo até
ser ejaculado. E
os genitais
externos,
utilizados no
ato sexual para
promover o
encontro de
gametas. "O
objetivo do
sistema, em
qualquer ser
vivo, é fazer
com que
aconteçam esse
encontro e a
reprodução da
espécie", resume
a médica.
No entanto, o
belo sistema
reprodutor é
sujeito a
anomalias, que
podem se
apresentar nos
genitais
externos ou
internos, ou em
ambos, ou nos
ovários e
testículos. São
distúrbios que
muitas vezes
impedem a
própria
definição do
sexo. "Quando o
bebê nasce, a
primeira coisa
que se faz é
olhar para a
genitália. Ou é
um órgão
feminino ou
masculino. Mas
existem
situações em que
a ambigüidade
genital não
permite sequer
um palpite",
afirma Andréa.
Gil Guerra cita,
como exemplo
extremo de
ambigüidade, a
criança que
nasce com um
pênis mas sem os
testículos na
bolsa escrotal.
"Na maioria são
meninos cujos
testículos
demoram a descer
e que precisam
de ajuda para
isso. Em outros
os testículos
não desceram
simplesmente
porque não
existem, pois
são dois ovários
– parece um
menino, quando
na verdade é uma
menina
virilizada, com
excesso de
hormônios
masculinos".
Os grupos – São
quatro grandes
grupos. O
primeiro, da
diferenciação
gonadal, em que
os problemas
começam já na
formação das
gônadas –
ovários ou
testículos
anormais ou
mesmo uma
mistura de
ovário e
testículo (o
hermafrodita,
abordado mais a
seguir). Tais
problemas
geralmente se
prolongam para
os genitais
internos e
externos. O
segundo grupo,
do
pseudo-hermafroditismo
feminino, onde a
criança é de
sexo genético
feminino, tem
ovários, útero e
trompa e sofre
uma virilização
externa, com
aumento do falo
– que deixa de
ter a aparência
de um clitóris e
assume a de um
pênis – e sem a
presença de
orifícios
uretral e
vaginal
distintos. No
terceiro grupo
estão os
pseudo-hermafroditas
masculinos, que
são de sexo
genético
masculino, mas
deixam de
virilizar. E,
por último,
outros casos que
não cabem nas
classificações
anteriores.
Bem mais
preocupantes que
os distúrbios
visíveis são
aqueles
discretos,
diagnosticáveis
somente por meio
de exames
sofisticados.
Isso justifica a
concentração do
atendimento no
HC da Unicamp.
"É uma
investigação
complexa e cara.
Dificilmente um
único
profissional
terá condições
de detectar a
doença em seu
consultório ou
clínica. Ele
pode até
solicitar todos
os exames, mas
será incapaz de
interpretá-los.
Por isso criamos
um grupo
interdisciplinar",
afirma Guerra.
Um diagnóstico
pode demorar
cerca de 30 dias
para o
pseudo-hermafroditismo
feminino e até
seis meses para
o masculino.
A definição – Na
opinião do
professor, a
principal
abordagem no
livro se refere
à definição do
sexo de criação.
"Colocamos a
importância de o
médico ou
pediatra
verificar a
alteração
genital
precocemente,
antes do
registro civil
da criança.
Conhecida a
doença, pode-se
definir o sexo
mais adequado, o
que não inclui
apenas o aspecto
genético:
importa mais a
vida sexual que
a pessoa possa
ter", ressalta.
O ideal é que o
diagnóstico seja
feito até o
segundo ano de
vida, quando o
sexo psicológico
ainda não está
cristalizado. "É
quase impossível
receber um
menino de oito
anos de idade e
dizer que ele
vai virar uma
menina", observa
Guerra. O Giedds
guarda exemplos
de pessoas que
não deixavam
dúvidas sobre
sua genitália
feminina, mas
que eram de sexo
genético
masculino, ou
exatamente o
contrário. "A
manifestação vai
se dar mais
tarde, em geral
a partir da
adolescência,
quando o
indivíduo deixa
de desenvolver
características
puberais
adequadas para
aquele sexo",
esclarece
Andréa.
A família e o
tratamento
A definição do
sexo nos casos
de ambigüidade é
um processo
difícil. Não
havendo a
certeza pelo
simples exame da
genitália
externa, o
Giedds orienta
médicos,
pediatras e
alunos a
deixarem claro
para os pais que
não sabem o sexo
do bebê e que
exames precisam
ser feitos. "Às
vezes, acho que
o pai prefere
anunciar aos
parentes que o
filho tem um
problema
cardíaco grave,
ao invés de
confessar que
não sabe se é um
menino ou
menina. Mas a
família acaba
percebendo que
seria mais
constrangedor
dizer a todos,
dois meses
depois,
tratar-se de uma
filha e não de
um filho",
pondera Andréa
Guerra.
O contato entre
profissionais e
pais é intenso,
pois a definição
do sexo se dá em
conjunto,
pesando-se
vantagens e
desvantagens.
"Numa genitália
completamente
ambígua, a
cirurgia
feminilizante é
mais simples,
com uma única
etapa e menos
risco de
insucessos.
Extrair um órgão
é muito mais
fácil do que
construí-lo do
nada. E para a
criança será bem
menos
traumatizante,
já que a alta é
dada em dois ou
três dias",
explica Andréa.
Por outro lado,
construir um
genital
masculino
implica pelo
menos quatro
cirurgias, com
intervalo mínimo
de um ano e meio
entre elas, e
com risco de
infecções e de
se refazer uma
delas. "A
criança passará
um bom tempo da
vida com
hospitalizações
e o resultado
estético e
funcional, no
final, pode não
ser tão bom",
diz a médica. "O
pênis deve ter
tamanho adequado
e estar
funcionando bem,
não há porque
masculinizá-lo
se o menino não
for beneficiado
com a atividade
sexual",
acrescenta Gil
Guerra.
De acordo com
Andréa, a vida
reprodutiva é
normal em quase
todos os casos
de
pseudo-hermafroditismo
feminino, mas
isso é menos
provável no
masculino. Em
hermafroditas
criados no sexo
feminino também
há possibilidade
de fertilidade.
A fantasia sobre
o hermafrodita e
outros
preconceitos
Há muita
fantasia em
torno do
hermafroditismo.
Andréa Guerra
ressalta que
hermafrodita é
um termo técnico
da medicina,
nada pejorativo,
designando a
pessoa que
possui dois
sexos. "A
imprensa leiga
taxa de
hermafrodita
todo aquele que
possui algum
problema sexual,
às vezes nem
físico, apenas
psicológico.
Para definir um
hermafrodita é
preciso lâmina e
microscópio,
provando que ele
carrega tecido
ovariano e
tecido
testicular",
ensina. O
hermafroditismo
insere-se nos
casos de
ambigüidade
genital, mas é
um dos mais
raros: entre 400
registros pelo
Giedds, apenas
10 ou 12 são de
hermafroditas.
"Ainda quanto à
fantasia que
cerca pessoas
com ambigüidade
genital, os
profissionais
também precisam
aprender a lidar
com os pais
dessas crianças
quando pequenas.
Automaticamente
os pais pensam
que, porque o
filho tem um
problema
genital, no
futuro vai
apresentar um
desvio
psicológico,
para o
homossexualismo,
por exemplo. Por
isso nosso grupo
sempre teve um
psicólogo para
eliminar esta
noção", finaliza
Andréa.
Serviço
Menino ou
Menina? – Os
distúrbios da
diferenciação
sexual
Andréa Trevas
Maciel-Guerra e
Gil Guerra
Júnior (Orgs.)
gileandrea@uol.com.br
352 páginas
Editora Manole
(11) 4196-6000 |
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