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Publicado no Diário de
Pernambuco, Recife, quarta-feira 27/02/2008,
p.A-11:
AGUENTAMOS. AGORA É NOSSA VEZ
Tereza Halliday
Artesã de Textos
Por anos e anos, fomos uma minoria oprimida
que suportava calada níveis de desconforto
inadmissíveis, porém admitidos como naturais.
Nossas necessidades de ar sem fumaça de cigarro,
cachimbo e charuto (o mais fedegoso dos três),
eram ignoradas, porque fumar em qualquer lugar
era o hábito da maioria. Agüentávamos o fedor e
a fumarada por toda parte. Aturávamos,
resignados, o desconforto, a poluição, a catinga
espalhada em nossas roupas e cabelos.
Por algum tempo, nem sabíamos - como o sabemos
hoje - que ser fumante passivo faz mal à saúde e
pode até matar. Ainda não havíamos aprendido que
era tão perigoso inalar o produto da excreção
respiratória dos fumantes ativos. Mas a
convivência em ambientes empestados de fumo já
causava dores de cabeça, ardor nos olhos,
coriza, náusea e dificuldades de respiração. Na
redação deste jornal, anos atrás, meus poucos
colegas não-fumantes e eu enfrentávamos esses
sintomas e aturávamos docilmente as baforadas
dos demais. Nas festas, também. O sufoco
prosseguia nos aviões, com aquela divisão fajuta
de fumantes e não-fumantes, dentro do mesmo
recinto confinado. Sobrava principalmente para
os passageiros nas áreas limítrofes. E o mesmo
acontecia nos restaurantes.
Não tínhamos coragem de revelar nossos
verdadeiros sentimentos: aspirar catinga de
cigarro é tão ruim quanto aturar halitose,
inhaca de falta de banho e desodorante vencido!
Fumar só não incomoda os não-fumantes num
descampado sem multidão.
Nos tempos da opressão sofrida pelos
não-fumantes, na vida familiar, profissional e
social, alguns poucos fumantes demonstravam
empatia: antes de acender o cigarro, perguntavam
se incomodava. E nós mentíamos. Mentíamos
deslavadamente, por amor, delicadeza,
diplomacia, constrangimento. Afinal de contas,
entre os fumantes, estavam pessoas queridas,
chefes, amigos, parentes. Respondíamos que não,
com um sorriso contrafeito, nossa comunicação
não-verbal contradizendo a nossa mentira. Mas os
fumantes não percebiam essas sutilezas. Com
raras e honrosas exceções, não tomavam chá de
Simancol. Fumar era a regra e nós, os
incomodados, as vítimas da tabacorragia
prevalecente, é que fugíamos à norma.
Fomos nos tornando maioria e continuávamos
oprimidos e sofredores do cigarro alheio. Alguns
fumantes passaram a não suportar o efeito das
câmaras de gás nas quais as salas com ar
condicionado se transformavam, em horas e horas
de trabalho ou lazer, engolindo fumaça e fedor.
Começaram a ir fumar lá fora. Progresso. Pouco a
pouco, passou-se a não permitir fumo em alguns
ambientes: salas de aula, aviões, salas de
espera, shopping centers... ai, que alívio!
A nova lei que torna livres de fumo quase todos
os ambientes gera em nós, não-fumantes, uma
sensação de justiça, de reparação pelos
sofrimentos passados. Discriminados e
estigmatizados fomos nós, anos a fio, engolindo
em seco e no silêncio o mau cheiro dos lugares
com fumantes e a péssima qualidade do ar que
respirávamos todos.
Democracia é fazer valer o desejo da maioria,
agora composta de não fumantes. Democracia
esmerada é acomodar os direitos das minorias,
dos portadores de necessidades especiais, como
os dependentes do fumo. Eis o desafio dos
mantenedores do ideal democrático. Que os
fumantes possam encontrar seu espaço sem jamais
nos impingirem de novo os sofrimentos de
outrora. Finalmente podemos comemorar: nós, os
não-fumantes, agüentamos e muito. Agora é nossa
vez.
A autora foi repórter,
redatora e colunista do Diário de Pernambuco por
muitos anos. Foi docente/pesquisadora da
Universidade Federal Rural de Pernambuco, na
área de discurso organizacional. Hoje trabalha
com editoração de textos.
terezahalliday@yahoo.com |
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