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Federação Nacional dos Jornalistas
16 de Novembro de 2008
Mídia & Sociedade 11/11/2008 | 12:52
Por que ética é tão importante para o
jornalismo?
*Rogério Christofoletti
Em Guernica, Pablo Picasso pintou em traços
fortes o horror da guerra.
A tela é imensa, um painel angustiante e
perturbador. Os olhos
arregalados do cavalo não saem da nossa cabeça.
As mãos pedindo ajuda
parecem se mover. A dor, o medo, a guerra estão
ali, emoldurados. A
arte conta, registra a história.
Algumas imagens povoam com tanta força nossa
memória que mais parecem
tatuadas em nossas mentes. Com Guernica, é
assim. Mas já foi a época
em que a pintura representava o mundo. Hoje, há
outros instrumentos.
Mesmo assim, algumas imagens parecem gravadas em
nossos cérebros.
O rapaz que enfrenta sozinho a fila de tanques
de guerra em Pequim é a
ilustração da coragem. A menina vietnamita que
foge nua num campo
arrasado é a estampa da guerra. Há uma criança
esquálida agachada na
savana. Ela é observada pelo abutre a poucos
metros de distância: é
uma presa, mas também é a projeção do abandono,
da fragilidade, do
descaso.
As três cenas são bastante conhecidas não apenas
pela carga emotiva
que as diferencia, mas também pelo fato de que
as reconhecemos porque
muito circularam por nossas sociedades.
Assistimos pela TV ao jovem
chinês enfrentar o exército em meio ao massacre
da Praça da Paz
Celestial, em 1989, assim como vimos a menina
com as costas queimadas
pelo napalm, no final da Guerra do Vietnã. A
fotografia da criança
anônima sudanesa - espreitada pelo abutre - foi
carimbada em jornais e
revistas e ainda se repete por sites na
internet.
Afinal, o que essas imagens têm de especial? Por
que não nos
esquecemos delas? O que nos faz lembrar essas
cenas arrebatadoras é o
fato de que os meios de comunicação
multiplicaram as condições para
que essas imagens circulassem sem fronteiras,
causando grande impacto.
A mídia facilitou nosso acesso a esses fatos; o
jornalismo permitiu
que soubéssemos deles e que os guardássemos
conosco.
O jornalismo e a realidade que nos cerca
Não é exagero dizer que grande parte do que
chamamos de realidade nos
chega pelos meios de comunicação. Seja o tsunami
que varre a
Indonésia, seja o assalto na esquina de casa.
Atualmente, a mídia
ocupa lugar central na vida de todos. Ajuda a
moldar nosso imaginário,
estabelecer prioridades, decidir e descartar
opções. Essa onipresença
não comporta apenas um poder avassalador de
formação de opiniões, de
registro da história recente ou de definição de
relevâncias sociais. O
poder dessa centralidade traz também muitas
preocupações de natureza
moral e ética. Onde ficam os limites, afinal?
Foi correto o repórter fotográfico Kevin Carter
congelar a imagem da
criança negra vulnerável ao abutre? O que ele
deveria fazer naquele
momento: espantar a ave predadora ou clicar e
denunciar a miséria
humana ao mundo?
Em nome do que os jornalistas podem se apossar
da imagem de alguém em
situação de tanta fragilidade quanto à da
refugiada que corre das
bombas? Por que é importante flagrar o cidadão
comum que se contrapõe
ao arbítrio, mesmo que não se saiba o nome dele?
Essas e outras
perguntas estão diretamente ligadas às condutas
dos profissionais
envolvidos nessas coberturas. Referem-se ao
questionamento dos limites
morais do jornalismo e da mídia em geral. Aqui,
o nome do jogo é
ética.
Porque ostentam um magnífico poder, os meios de
comunicação têm uma
responsabilidade igualmente gigantesca. É a
contrapartida.
Os meios de comunicação reúnem diversão,
entretenimento e informação.
Os compromissos éticos de quem apresenta um
programa de auditório na
TV são distintos de quem está na bancada do
telejornal. Por isso, os
debates em torno da conduta dos jornalistas e o
próprio papel do
jornalismo no imaginário social assumem
proporções mais preocupantes,
já que o estatuto de verdade de seus produtos e
serviços é mais
ambicioso que o dos programas que alegram as
tardes de domingo. Claro
que animadores de auditório também precisam ter
responsabilidade sobre
o que veiculam em seus programas, mas com
jornalismo não se brinca.
Um assunto para todos, jornalistas ou não
No jornalismo, a ética é mais que rótulo, que
acessório. No exercício
cotidiano da cobertura dos fatos que interessam
à sociedade, a conduta
ética se mistura com a própria qualidade técnica
de produção do
trabalho. Repórteres, redatores e editores
precisam dominar
equipamentos e linguagens, mas não devem se
descolar de seus
comprometimentos e valores. Podem tentar
suspender suas opiniões em
certos momentos, mas, se por acaso esquecerem
suas funções e suas
relações com o público, vão colocar tudo a
perder.
Nas redações, há quem diga que o jornalismo se
define por uma ética.
Se é exagero ou não, o que temos é que o
jornalismo é uma atividade
humana que se planta e se espalha na relação
entre os humanos. A ética
é algo que só existe nesse entremeio, na
distância entre as pessoas. É
uma exclusividade humana, mas isso não é nem
rima nem solução. Quer
ver? Mentir a um paciente pode não ser um
problema para um médico, mas
uma forma de poupá-lo no estágio terminal. Para
um jornalista,
abandonar o compromisso com a verdade não é um
deslize, é uma falha
ética e grave. Então, há especificidades no
campo da ação humana, da
conduta ética. O jornalismo - a exemplo de
outras profissões - tem
suas particularidades, e não só é necessário
conhecê-las como também
refletir sobre elas, atualizando-as diariamente.
Como se faz nas
páginas dos jornais com as notícias.
Isso não interessa só a quem vive dos fatos.
Importa a todos. As
sociedades, os governos, as organizações, todos
são afetados pela
mídia. Os estilhaços de realidade que nos
bombardeiam pelos meios de
comunicação beneficiam (ou prejudicam) a todos.
Ninguém está imune e é
por essa presença que a ética no campo do
jornalismo deve preocupar
não só quem produz informação, mas também quem a
consome.
Historicamente, as sociedades tornaram-se mais
complexas e as
atividades profissionais - entre elas, o
jornalismo - precisaram
acompanhar esse compasso. Consumimos notícias
com cores fortes e tons
pastéis, com traços rápidos e contornos suaves.
Os retratos da vida e
da morte são lançados diante de nossos sentidos.
Com velocidade e
força. Alguns relatos se prendem à nossa memória
e passam a fazer
parte de nós mesmos, como se fossem uma porção
de nossa ótica ou de
nossa ética. Isso não é pouco.
É claro que Picasso não fez jornalismo com
Guernica. Fez arte. Mas
também fez denúncia social. Jornalismo não é
arte, mas sim trabalho
duro, responsável e imprescindível para o
desenvolvimento das
sociedades. Apesar de retratar o horror em preto
e branco, Picasso
sabia que o mundo tinha mais cores na sua
palheta. No jornalismo, a
ética ajuda a lembrar o profissional de que há
mais matizes entre o
fato e o seu relato.
* Professor e pesquisador da Universidade do
Vale do Itajaí (Univali),
onde atua no curso de Jornalismo e no Mestrado
em Educação. Doutor em
Ciências da Comunicação pela USP, é membro do
Conselho Administrativo
da Associação Brasileira de Pesquisadores em
Jornalismo (SBPJor).
Entre 2002 e 2005, foi vice-presidente do
Sindicato dos Jornalistas de
Santa Catarina.
Introdução do livro Ética no Jornalismo, 128
pp., Editora Contexto,
São Paulo, 2008. Publicado no Observatório da
Imprensa em 04/11/2008 |
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