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Publicado no Diário de Pernambuco,
9/02/2009, p.A-13:
DOM HELDER NO GELO E NA FLAMA
Tereza Halliday –
Artesã de Textos
Depois da missa de 30o dia, o nome do falecido
ilustre
desaparece dos espaços da mídia. Tramitam
propostas para estátua e
nome de rua. Murcham declarações de apreço de
políticos que antes,
torciam o nariz para ele mas o elogiaram post
mortem, senão ficaria
feio junto ao eleitorado. Outros fizeram bonito
(e talvez, semearam
votos) evocando que sempre estiveram ao seu
lado. Gratas lembranças
permanecem nos corações dos que podem alegar
"fui seu amigo", sem que
lhes cresça o nariz. E persistem na memória de
muitos que o admiravam
de longe. Para mim, bastou ter a palavra cassada
para merecer empatia.
Bastou ser compassivo com quem estivesse "na
pior", para granjear
respeito, Bastou ser irmão de Mohandas Gândhi na
rota minoritária da
não-violência, para ser digno de apoio. Em sua
memória, forneço estes
modestos subsídios para futuras biografias.
Nos idos de 1965-67, eu trabalhava e estudava na
Alliance
Française do Recife, à rua Gervásio Pires, 435.
Estavam abertas as
matrículas para o famoso Curso Intensivo de
Francês Fundamental
(Método Licari), cuja didática exigia turmas de
número rigorosamente
limitado. Nosso queridíssimo professor
Christophe Buresi ofereceu-se
para ajudar na secretaria devido ao grande
afluxo de candidatos. Chega
Zezita para se inscrever. O único horário que
lhe era possível
freqüentar estava lotado. Christophe foi
taxativo: impossível estourar
o limite máximo de alunos. Ela argumentou, em
vão, que precisava
urgentemente daquele curso por ser secretária do
arcebispo. Saiu
aparentemente resignada, voltando meia hora
depois escoltada pelo
sorridente patrão que viera, em pessoa,
apadrinhá-la. Não precisou
dizer uma só palavra. Profundo admirador de D.
Hélder, Buresi
levantou-se para apertar-lhe a mão, emocionado.
Gaguejou e matriculou
Zezita na turma de lotação esgotada, na
esperança de que outro aluno
desistisse. Passamos a tirar onda com ele
referindo-nos àquela ocasião
como "o dia em que um francês aprendeu a dar o
jeitinho brasileiro".
No dia 4 de julho de 1976, a recepção oficial do
Bicentenário da
Independência dos Estados Unidos foi oferecida
pelo cônsul Richard C.
Brown, que se despedia da sociedade
pernambucana. Sussurrava-se que
fora transferido para um "posto de penitência"
em minúsculo e
longínquo país, porque tinha se tornado persona
non grata dos
governantes militares brasileiros, o que era
facílimo de acontecer.
Durante a solenidade na qual o protocolo manda
cantar os hinos dos
dois países, o anfitrião prestou calorosa
homenagem a D. Helder
Câmara, que ali estava como a mais alta
autoridade eclesiástica.
Muitos outros convidados não podiam compreender
nem aceitar que o
Arcebispo Vermelho fosse pública e solenemente
honrado pelos
americanos. Para eles, a CIA devia estar
piradona. Terminada a bela
homenagem, o dono da casa precisava circular
entre todos os convivas e
D. Hélder ficou sozinho num canto da sala,
isolado, botado "no gelo"
pela quase totalidade dos presentes. Preferiram
engrossar o círculo de
conversa de coquetel em torno do escritor
Gilberto Freyre ou
distanciar-se em mini-grupos fechados. Somente
quatro pessoas foram
cumprimentar o arcebispo e trocar algumas
palavras com ele.
Sem nos conhecermos, Dom Helder e eu fomos
"vizinhos" por pura
configuração geográfica - moradores do mesmo
quarteirão circundado
pelas ruas Henrique Dias, Miguel Couto, Luiz
Barbalho e av. Agamenon
Magalhães. Esta proximidade fez ocasiões em que
meu marido lhe deu
caronas, como sempre acontecia quando algum
motorista atento o
flagrava caminhando pelas ruas - lépido, simples
batina clara,
simplíssima cruz ao peito. Dentro do carro, eu
notava o que os
cartunistas captaram tão bem: o sorriso do Dom
ia de orelha a orelha.
Tinha um jeito de estar em paz com os homens e à
vontade com Deus.
Dos que o botaram no gelo naquela festa, nada de
significativo
parece ter ficado depois do uísque e da marcha
dos anos. Mas a flama
deixada por D.Helder continua a luzir em muitos
cantos e nestas suas
palavras:
"Queres trabalhar na missão sagrada de amorizar
o mundo? Sai de
ti mesmo ao encontro dos irmãos, sem excluir
ninguém. Não guardes em
teu coração nem sombra de travo. Convence-te
para sempre, de que,
neste mundo, há muito mais fraqueza do que
maldade! Convence-te de
que, se é verdade que bondade não resolve tudo,
não é a violência que
vai resolver. Convence-te de que o egoísmo torna
impossível a
felicidade. Queres ser feliz e semear
felicidade? Amoriza-te!".
Receita forte e oportuna para os continuadores
de sua obra e todos
quantos desejem um mundo melhor.
(Publicado por ocasião das comemorações pelo
centenário de nascimento
de D. Helder Câmara, ocorrido em 7 de fevereiro
2009). |
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