Theresa Catharina de Góes Campos

  From: Tereza Lúcia Halliday
Date: 2009/7/14
Subject: COTAS NA UNIVERSIDADE - CONHEÇA MELHOR


Amigos:

Tenho o gosto de encaminhar em anexo (publicado abaixo)  texto de um respeitado jurista sobre o sistema de cotas na universidade, seus equívocos e consequências.
Sereno, profundo e de linguagem accessível, este trabalho muito me ensinou.

Um abraço,
Tereza

COTAS NAS UNIVERSIDADES

 Análise de

Gabriel Lucena Cavalcanti (*)

enviada a políticos e educadores 2008/2009)

            Está para ser apreciado pelo Senado Projeto de Lei, aprovado pela Câmara dos Deputados, que obriga as instituições federais de educação superior a reservarem, na seleção para o ingresso nos cursos de graduação, um mínimo de vagas para os candidatos que se declararem negros, pardos ou índios e que tenham feito o curso médio em escolas públicas.

Rogo permitir apresentar algumas considerações a respeito do referido Projeto de Lei, o que não envolve nenhum interesse pessoal.

          É bem sabido, mesmo pelos defensores das cotas, que o problema, que se quer sanar com a criação da cotas, tem sua origem na má qualidade do ensino das escolas públicas, o que geralmente acontece. Assim, proporcionar, o poder público, a todos, um bom ensino básico e médio, é a única forma de permitir a todos, concorrerem ao ensino superior. Esse, o direito de todos, e dever do Estado, que não pode se negar a reconhecer e cumprir.

Qualificação Intelectual

          O ensino superior não é obrigatório.  Poder-se-ia acrescentar que não só profissões que exijam o diploma universitário, mas muitas outras de nível médio e de essencial necessidade para a Economia do país, podem proporcionar vida digna aos cidadãos. Não há, assim, razão para sacrificar a qualidade do ensino superior em favor do que parece ser eqüidade. Além do que, a posse de um diploma de curso superior não é garantia de êxito na profissão, o que somente poderá ser proporcionado por uma boa qualificação intelectual, obtida com o estudo.

Os próprios defensores das cotas reconhecem que, pela má qualidade do ensino nas escolas públicas, os seus alunos não têm essa boa qualificação intelectual para disputarem o ingresso nas Universidades com os alunos oriundos das escolas particulares. Pelas cotas, entrarão, nas Universidades, alunos confessadamente muito menos preparados para os estudos que tiverem escolhido, comprometendo, assim, a qualidade dos serviços dos futuros profissionais.

Equívoco semântico

 

Merece ser realçado o fato de que ser pequeno o número de estudantes pobres nas Universidades não se deve a qualquer espécie de discriminação, como é alegado em defesa da instituição das cotas. “Discriminação” é o ato de “discriminar”. “Discriminar” é “diferençar”, “distinguir”, “separar” (Aurélio, “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, 1a. Ed., pág. 482).

Não há norma (Lei, Decreto, Regulamento, Portaria, Provimento, ou qualquer outro diploma normativo) que proíba, ou limite, o ingresso, nos cursos superiores, de alunos oriundos das escolas públicas (valendo, também, a observação, para os alunos de cor negra ou de qualquer outro grupo). Igualmente, não se conhece nenhum ato de autoridade pública ou de direção de escola particular, ostensivo ou não, que, contrariando as normas legais e constitucionais vigentes, haja impedido, ou limitado, tal ingresso por ser, oriundo de escola pública o candidato. Não há, assim, no acesso às Universidades, discriminação quanto à origem, raça, credo, sexo ou cor da pele. A solução para o problema é, repita-se, a melhoria do ensino nas escolas públicas.

Por que os pobres são poucos nas universidades?

Com muita clareza e precisão, Mônica Sifuentes, Juíza Federal em Brasília, tratou do problema dos poucos negros nas Universidades (razões que valem para o problema de poucos pobres nos cursos superiores):

   “Ora, parece-me fora de dúvida que o problema a abalar a raiz é anterior: a falta de acesso a um ensino fundamental (e  médio) público, de boa qualidade, que habilite qualquer dos excluídos, sejam negros, indígenas, pobres ou trabalhadores vindos das classes sociais menos favorecidas a concorrer, em paridade com os “bem nascidos”, a uma vaga nas universidades.

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Não resolve o problema da discriminação a garantia de acesso à universidade aos que não tiverem assegurado o ensino básico em escolas públicas, com a mesma qualidade do que é oferecido na maioria das escolas particulares ou confessionais.

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   O problema tem, na verdade, raiz na desigualdade e forçoso é convir que também o descendente de branco, mas pobre, não ingressa nas universidades, especialmente nas públicas. O afro-descendente, se não tem acesso ao ensino superior, não é por ser negro, mas porque é, em geral, pobre. Sendo pobre, continuará freqüentando escolas públicas que não lhe darão condições para uma posterior formação universitária.

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   Somente com a educação básica, com a efetivação do direito de acesso de todos à escola, poder-se-á construir uma sociedade realmente democrática, onde o ingresso na universidade não dependa de quotas, mas do próprio mérito da cada um.”(“Correio Brasiliense”, ed. de 18 de fevereiro de 2002, séc. “Direito e  Justiça”, pág. 4).

Desprezo a dispositivos constitucionais

A propósito do tema, é bom considerar, como premissas, alguns dispositivos da Constituição, os quais, à evidência, estão sendo desprezados.

         No seu artigo 3º, a Constituição Federal diz quais os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

Art. 3o. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

“I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra forma de discriminação.

Norma, a Constituição:

    Art. 5o. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos;

I – Todos são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

Ainda, sobre aquelas garantias, acrescenta, a Constituição:

 Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - ......

II - .....

III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

          

A RESERVA DE VAGAS CONTRARIA A CONSTITUIÇÃO

Com a reserva de vagas, estará sendo frustrado um dos objetivos fundamentais da República.

Impedindo, o Estado, que cidadãos, por não haverem estudado em escolas públicas, concorram a todas as vagas existentes nos cursos superiores, a sociedade que se constrói não será uma sociedade livre e justa. (Art. 3o, I, da Constituição).      

Diz, a Constituição, ser o desenvolvimento nacional, um dos objetivos fundamentais do Brasil (Art. 3 o, II). O desenvolvimento, em qualquer campo da atividade humana, poderá ser obtido pelo trabalho das pessoas melhor preparadas para o exercício da atividade específica. Somente pelo estudo bem conduzido serão obtidos os conhecimentos indispensáveis ao bom desempenho de qualquer atividade. Quanto melhor preparado intelectualmente o agente, melhor será o seu desempenho na atividade que ele exercer, de melhor qualidade o trabalho realizado e, conseqüentemente, maior e melhor o desenvolvimento nacional.

Ora, como já se viu, a desejada reserva de vagas é defendida com o argumento de que, por ser deficiente o ensino nos cursos básico e médio ministrados nas escolas públicas, não têm, os seus alunos, beneficiários da reserva de vagas, condições de, na admissão aos cursos superiores, concorrerem com os demais candidatos, que fizeram seus estudos em escolas particulares. Estarão, assim, esses últimos, melhor preparados para prestarem as provas do vestibular.  Logo, com a reserva de vagas, estaria assegurado o ingresso, nas Universidades, a pessoas com menor preparo escolar para os estudos superiores, impedidos a com elas concorrerem os demais candidatos, embora reconhecidos de melhor qualificação intelectual e desprezado o mérito.

A reserva de vagas ofende à Constituição, frustra a consecução de um dos objetivos fundamentais do Brasil, o do desenvolvimento nacional, que passaria a depender de pessoas de menor qualificação. A menos que se demonstre que, melhor para o almejado desenvolvimento seja o aproveitamento das pessoas de inferior qualificação intelectual, com o sacrifício das de melhor qualificação, coisa a que ninguém se propôs demonstrar.

Posse de diploma e mérito intelectual

O Projeto de Lei reserva vagas, nas Universidades, para os alunos que estudaram em escolas públicas, que se declarem negros, pardos, índios, ou pobres.

A reserva de vagas nas Universidades para os que estudaram nas escolas públicas revela a ingênua crença de que a só posse de um diploma de curso superior, com desprezo ao indispensável mérito intelectual, será suficiente para retirar os pobres da pobreza e afastá-los da marginalidade.

Se a posse de um diploma universitário for a chave mágica para retirar alguém da pobreza e da marginalidade, a reserva de vagas excluirá, de antemão, os demais pobres não incluídos nos beneficiados pelo Projeto; 

Por último, é evidente que a reserva de vagas para candidatos que se declarem negros, índios ou pardos, sem considerar a situação econômica e social de cada um, não contribui para realizar o objetivo do inc. III. Pelo contrário, na medida em que cria privilégio em favor de alguns, não considerando o mérito pessoal, mas a origem de um estabelecimento de ensino de má qualidade ou a cor da pele, reduz, nos cursos superiores, o número de lugares, que poderiam ser disputados por pessoas pobres e de humilde classe social, as quais, com sacrifícios, conseguem concorrer, com êxito, ao ingresso na Universidade, exercendo, com sucesso, quando diplomados, suas carreiras profissionais.

Inconstitucionalidade

         Reservar vagas, no universo dos estabelecimentos de ensino superior, para um grupo de pessoas (negros, índios etc), sem considerar, de forma isonômica, o mérito intelectual de todos os candidatos, fere, de forma inquestionável  o disposto no inc. IV, do art. 3º, da Constituição.

Consagrada a reserva de vagas do Projeto, configurar-se-á a inconstitucional discriminação daqueles que hajam estudado em escola particular (pela origem) e que sejam brancos (pela  raça).

A pretendida reserva de vagas contraria o, com toda razão, o mais louvado dos preceitos constitucionais: aquele que consagra o princípio da isonomia, como está dito no Art. 5o, da Constituição. No Brasil, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, preceito repetido no inciso III, do Art. 19, da Constituição.

Dispensável demonstrar que a reserva de vagas nas Universidades em favor de quaisquer pessoas ou grupos sociais, seja qual for a razão, contraria o princípio da isonomia. Essa ofensa à Constituição se revela por si mesma, eis que, a lei, que assim dispuser, criará uma desigualdade entre as pessoas.

 MAIS OFENSAS À CONSTITUIÇÃO

 A reserva de vagas é inconstitucional, porque a Constituição quer que a educação seja direito de todos e dever do Estado e da família, a ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação profissional (Art. 205) e que seja um dos seus princípios básicos a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (Art. 206, I). Coerente com o princípio básico indicado no inciso I, do Art. 206, e levando o seu respeito aos estudos mais altos, o Art. 208, V, faz ser dever do Estado garantir o acesso aos níveis mais elevados do ensino, pesquisa e da criação artística segundo a capacidade de cada um.

O ENSINO PÚBLICO NO BRASIL

Por todos é reconhecido ser mau o ensino proporcionado pelas escolas públicas, freqüentadas pelos pobres. Creio que nada se poderá objetar às medidas que visem torná-lo um ensino eficiente, o que ninguém a isso se oporia.

Embora por todos conhecida essa deficiência, apenas para ilustrar o assunto refiro a opinião de uma técnica na matéria, a Senhora Azuete Fogaça, Professora de Sociologia da Educação, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Após dizer que, “o que há na nossa rede pública de ensino, é um processo de analfabetização das crianças”, explica o que seja isso:

   “Uma situação na qual o garoto vai ao colégio e chega ao fim da quarta série, com dez anos, sem saber ler, analfabeto. Na rede pública, 30% dos meninos e meninas da quarta série não sabem ler. Isso compromete todo o desempenho desses estudantes. Eles não aprendem Matemática porque não entendem os problemas. Esses números são velhos e públicos.” (Entrevista, in “Jornal do Commercio” do Recife, ed. de 10 de maio de 2003)

         É geral o sentimento de que a educação é da maior importância para o desenvolvimento da pessoa, o que resulta no desenvolvimento do País, indispensável para assegurar o bem comum. Como o diz a ilustre jornalista Miriam Leitão.

Em comentário às perspectivas que se abriram ao Brasil com a posse do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, diz a colunista:

   O Governo terá que superar seus constrangimentos e o País terá que entender seus limites. Lula-símbolo terá que passar duas mensagens: o otimismo de quem conquistou a mobilidade social, mas o incentivo para que os demais brasileiros se dediquem mais à educação formal do que ele mesmo se dedicou. Cinco anos de estudo incompletos é pouco; pouquíssimo. O Brasil também estudou pouco; pouquíssimo. O Presidente não pode deixar que se firme a idéia de que é possível abandonar o estudo formal e vencer.

   Tem que ser o maior incentivador da presença dos brasileiros, de qualquer idade, na escola. É lá que o Brasil vencerá a batalha do futuro.” (“Diário de Pernambuco” ed. de 1o. de janeiro de 2003, secção B, pág. 6).

         Poucos dias após, a propósito dos discursos pronunciados na posse do Presidente Lula, a jornalista voltou ao tema:

   As fartas e belas palavras ditas nos últimos dias nas posses não são suficientes para se entender exatamente o que está propondo o novo governo. Não há quem seja contra o combate implacável à fome, à pobreza, às desigualdades. O problema é como desmontar as estruturas que têm reproduzido as desigualdades geração após geração. Um dos caminhos é investir mais na educação fundamental, na mesma linha do governo anterior.” (Diário de Pernambuco, ed. de 03 de janeiro de 2003, secção B, pág. 4)”.

         A Coréia do Sul é sempre indicada como o exemplo de que a educação é indispensável ao desenvolvimento de uma sociedade. Na sua edição de 27 de agosto deste ano de 2003, a Revista “VEJA” publicou reportagem em que mostra os efeitos da educação com positivos reflexos no progresso econômico do País. (Revista “Veja”, ed. de 27 de agosto de 2003, págs. 104/107)

O DIREITO DOS EXCLUIDOS

Todos aceitam que o Estado deve empenhar-se em erradicar a pobreza, a marginalização, em promover o bem comum, razão da sua criação. Entre os meios essenciais a permitirem uma vida digna, representada pelo pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, está a educação. Isso o diz, hoje, a Constituição Federal (Art. 205).

         A integração dos pobres à sociedade não se dará, como alguns pensam, em conceder (a poucos deles) o privilégio de contarem com vagas reservadas nos cursos superiores, evitando, assim, que concorram com candidatos intelectualmente melhor preparados. Ela somente se dará pela educação, cujo alicerce é um ensino fundamental e médio de qualidade, o que, nunca será demais repetir, é dever do Estado e direito de todos (CF, Arts. 205 e 207, I e parágrafo 1º).

A educação, dever do Estado, é a única forma de proporcionar “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” A esse dever, foge o Estado, com a reserva de vagas nas Universidades, destinadas a algumas poucas pessoas, pela razão de ser deficiente o ensino nas escolas dele Estado, freqüentadas pelos beneficiários do privilégio da reserva, e, por isso, sem condições de disputarem a matrícula com os candidatos que freqüentaram escolas particulares.

Para os governantes, será muito cômodo, pela reserva de vagas, simular o pagamento da divida social: para isso, bastarão uma caneta e uma folha de papel. Ignorada a dívida do Estado em dar a necessária boa educação para todos. E, sobre aqueles que acreditaram na Constituição e na ordem jurídica por ela criada, que prescreve critérios de valorização do mérito a serem respeitados na admissão aos cursos superiores, aqueles que, não poucas vezes com sacrifício, buscaram adquirir os conhecimentos exigidos para o ingresso nas Universidades, agora preteridos pela discricionária reserva de vagas, sobre eles ficará o real peso do “pagamento” daquela dívida.

Com tal omissão, o Estado destina a outras atividades, que não são constitucional ou legalmente obrigatórias, os recursos financeiros que, a ser cumprida a Constituição, deveriam ser destinados à educação.

Cumprindo o seu dever constitucional de promover eficiente educação, estará, o Estado, com respeito ao sistema jurídico criado pela Constituição Federal e com o atendimento ao bem comum, proporcionando, aos pobres, negros, pardos e índios, com um eficiente ensino básico, os necessários meios ao seu pleno desenvolvimento, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho (CF, Art. 205).

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(*) Gabriel Lucena Cavalcanti é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de Pernambuco e professor aposentado da Faculdade de Direito da UFPe. (Direito Administrativo). Foi presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco de 1981 a 1983 e presidente do Tribunal Regional Eleitoral-Pe, de 1986-1988.

 

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