Theresa Catharina de Góes Campos

  HOMILIAS - DEZEMBRO de 2009

Reflexões Homiléticas para Dezembro de 2009

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SEGUNDO DOMINGO DO ADVENTO (06.12.09)

Mc 1, 1-8

“Começo do Evangelho de Jesus, o Messias, o Filho de Deus”

O Evangelho de Marcos foi o primeiro dos quatro evangelhos
canônicos a ser escrito, provavelmente pelo ano 70, talvez na Síria.
Marcos tem o grande mérito de ser o criador desse gênero literário,
hoje tão conhecido, chamado “Evangelho”, o que literalmente significa
“Boa Nova” ou “Boa Notícia”. Porém, quando no primeiro versículo da
sua obra ele se refere ao “começo do Evangelho”, ele não se refere ao
gênero literário, mas à própria Boa Nova, que é a mensagem de salvação
em Jesus, “o Messias, o Filho de Deus”. Pois, o escrito é somente uma
das maneiras viáveis para comunicar a experiência dessa Boa Notícia, -
tanto que Paulo, que nunca leu um dos quatro Evangelhos (pois morreu
pelo ano 66), pôde falar aos Gálatas do “Evangelho por mim anunciado”
(Gl 1, 11).

Como parte da nossa preparação para o Natal, o texto de
hoje nos apresenta a pessoa e mensagem de um dos grandes personagens
do Advento - João Batista. Usando uma mistura de citações do Antigo
Testamento, tiradas do profeta Malaquias 3, 20, Isaías 40, 3 e Êxodo
23, 20, Marcos enfatiza o papel de João como Precursor - aquele que
prepara o caminho do Senhor. O fato de João estar vestido com pele de
camelo faz uma ligação entre ele e o “pai do profetismo”, Elias.
Assim, João é a última voz profética da Antiga Aliança, anunciando a
chegada da Boa Nova na pessoa e atividade de Jesus de Nazaré.

O batismo de João era um rito conhecido naquele tempo.
Significava o reconhecimento dos pecados e a conversão aos caminhos de
Deus. Embora o Advento não seja primariamente tempo de penitência, mas
de preparação, o texto nos lembra que não será possível uma preparação
adequada para a vinda do Senhor no Natal, sem que passemos pelo
processo de arrependimento, conversão e experiência da gratuidade de
Deus no perdão dos pecados.

A ênfase mesmo está na aceitação não somente do batismo de
João, mas de quem viria depois dele, literalmente “atrás de mim”. A
expressão, que denota a dignidade da pessoa que há de vir, como num
cortejo, põe toda a importância nela - pois tirar as sandálias era
serviço de um escravo. Jesus é o mais importante, pois com a vinda
d’Ele inaugura-se o tempo de salvação, esperado naquele tempo por
muitas pessoas e grupos somente para o fim dos tempos.

A voz de João ressoa de novo hoje, convidando a todos nós,
não somente pessoalmente, mas também como comunidade, Igreja e
sociedade, a prepararmos os caminhos do Senhor, endireitando as suas
veredas! A preparação para o Natal implica o empenho de todos para que
os males, individuais e sociais, sejam tirados, para que o Natal seja
experiência real da vinda do Salvador e não somente uma festinha,
vazia de sentido.

A crise econômica e social em que o mundo se encontra
atualmente mergulhado, deve nos levar a refletir sobre os valores e
destinos da nossa sociedade consumista e excludente. Centenas de
bilhões de dólares já foram gastos para escorar um sistema que mostra
graves sinais de falência. Mais uma vez, são os menos favorecidos que
vão pagar pelos erros dos especuladores financeiros. O Natal, muitas
vezes “sequestrado” como festa de compras e gastos, pode ser para nós
um novo começo, uma redescoberta dos verdadeiros valores familiares,
religiosos e de solidariedade. Mas, isso exige a conversão de uma
mentalidade consumista para uma de partilha, em que o que vale é o
“ser” e não o “ter”. Mais do que nunca, a mensagem de João, o Batista,
torna-se atual e desafiante.

TERCEIRO DOMINGO DE ADVENTO (13.12.09)

Jo 1, 6-8. 19-28

“Aplainai o caminho do Senhor”

Novamente, a figura central do evangelho de um domingo do
Advento é o Precursor, João Batista. Essa vez, em um texto tirado do
Evangelho de João, o Batista é apresentado como testemunha de Jesus.
Ele assume a identidade de quem veio gritar “Aplainai o caminho do
Senhor”, usando uma frase tirada de Isaías 40, 3. No texto de Isaías,
essa frase é usada para preparar o Novo Êxodo, a volta dos exilados do
cativeiro na Babilônia, no início do tal chamado “Livro da Consolação
de Israel” (Is 40-55). A mensagem de João Batista também prepara o
povo para um evento de grande alegria - a vinda do Messias, Jesus de
Nazaré!

Nesse texto, já no primeiro capítulo do Quarto Evangelho,
entram em cena os que serão mais tarde os adversários de Jesus - as
autoridades dos judeus. Embora às vezes nesse Evangelho o termo “os
judeus” designe o povo de Israel em geral (Jo 3, 25; 4, 9.22 etc),
aqui, como na maioria das vezes, o termo significa os representantes
de um mundo que não compreende, e eventualmente hostiliza, Jesus.
Nesse sentido, ele caracteriza especialmente as autoridades
religioso-políticas do judaísmo da época, ou seja, os sumos
sacerdotes, os fariseus e os escribas, ou doutores da Lei.

Atrás do texto também dá para entrever a tensão que
existia dentro da comunidade do Discípulo Amado, nas décadas depois de
Jesus, entre os seguidores de João Batista e os de Jesus. Por isso, a
insistência no texto em informar que João “não era o Cristo”, mas
testemunha do fato de que Jesus era o enviado de Deus.

No mais, o evangelho retoma a mensagem do domingo passado
(Mc 1, 1-8) - um convite para que todos nós preparemos o caminho do
Senhor. “Aplainai o caminho do Senhor” significa facilitar a sua
chegada entre nós, tirando das nossas vidas tudo que possa impedir um
encontro real com Jesus. No nível individual, aqui há um convite para
uma conversão pessoal, que é um processo contínuo na vida de todos
nós. Mas, também, há o desafio para que nos empenhemos na luta contra
tudo que possa diminuir a vida humana - tudo que causa sofrimento aos
nossos irmãos e irmãs. Pois, o pecado que existe no mundo não é
somente pessoal, mas também social - e muito mais do que a soma dos
erros individuais.

O pecado social se manifesta nas estruturas sociais injustas e
opressoras, que tiram de tanta gente a dignidade dos filhos e filhas
de Deus. Basta lembrar das estatísticas publicadas há pouco que
demonstram que atualmente mais de um bilhão de pessoas na terra passam
fome - num mundo que esbanja! A voz do precursor, como a de Isaías
quinhentos anos antes dele, nos desafia para que a nossa conversão
pessoal também se manifeste no esforço para a construção de um mundo
mais digno, justo, humano e fraterno - o mundo que Deus sonhava, o
Povo de Deus vislumbrava e Jesus veio estabelecer, a concretização do
Reinado de Deus entre nós.


QUARTO DOMINGO DO ADVENTO (20.12.09)

Lc 1, 26-38

“Faça-se em mim segundo a tua palavra”

Maria de Nazaré, junto com o Batista e o profeta
Segundo-Isaías, é figura importante nas leituras do tempo do Advento.
O texto de hoje é riquíssimo e mereceria um tratamento muito mais
pormenorizado. É essencial para entendermos a figura de Maria que as
Escrituras nos apresentam.

No esquema de Lucas, a anunciação à Maria se contrapõe
àquela feita a Zacarias (Lc 1, 5-22). Entre os dois relatos há um
paralelismo claro. Naquele relato, quem recebe o anúncio é um
sacerdote, idoso, no Templo judaico. No texto de hoje, é uma moça,
jovem, no dia-a-dia de um lugarejo, Nazaré. O sacerdote não acreditou,
e ficou mudo... simbolizando que os ritos do Templo não tem mais nada
a dizer! Maria acredita e é proclamada “bendita entre as mulheres” (1,
42).

Infelizmente ,muitas vezes esse trecho é interpretado de
maneira a nos apresentar uma Maria totalmente passiva, sem expressão -
é ideologicamente usado para insistir que as mulheres, no mundo e na
Igreja, devem ficar passivas e sem expressão! Tal interpretação
distorce totalmente o que Lucas quer nos dizer!

Maria, embora não entenda plenamente (Lc 1, 29; 2, 19; 2,
50s), aceita não somente ser instrumento da vontade de Deus, mas, ser
protagonista da realização desse plano divino. A frase “faça-se em
mim” não deve ser interpretada de uma maneira passiva, mas como o
grito de entusiasmo de quem quer ser colaboradora na realização do
plano de Deus o mundo. Não se refere somente ao fato de engravidar -
isso seria muito pouco - mas à grande visão de Deus para os seus
filhos e filhas. Um pouco adiante, Lucas vai mostrar o alcance dessa
frase, quando na boca de Maria ele coloca o grande canto de
libertação, que é o Magnificat. Não é possível entender a profundidade
da frase de Maria na anunciação sem ler também o Magnificat (Lc 1,
46-55). O que é que Maria quer quando ela pede que seja feita a
vontade de Deus n’Ela? Ela quer a realização da viravolta no mundo que
é o Advento do Reino de Deus, quando Deus vai “dispersar os homens de
pensamento orgulhoso; precipitar os poderosos dos seus tronos e
exaltar os humildes; cobrir de bens os famintos e despedir os ricos de
mãos vazias” (Lc 1 ,51-53).

Num mundo onde a realidade é a prepotência e a violência
dos poderosos contra pobres e indefesos, e onde as mulheres muitas
vezes estão na liderança da resistência, Lucas nos apresenta Maria
como protagonista da concretização do Reino. Como ela, quem realmente
quer receber o Salvador no Natal, tem que se comprometer de uma
maneira concreta na construção de um mundo novo, de justiça e
fraternidade, tão contrário ao que vivemos hoje, e que Maria canta no
primeiro capítulo de Lucas.


NATAL: MISSA DA VIGÍLIA DO NATAL - 24 dezembro 2009

Lucas 2, 1-20

Esta passagem é típica do estilo de Lucas e contém muito
material peculiar a ele. Ele toma as tradições de que Maria e José
eram de Nazaré e que Jesus nasceu em Belém, liga-as com as figuras de
Augusto, Herodes o Grande e o Governador Quirino, e através dessas
figuras tece um texto que une oito dos seus temas favoritos: “comida”,
“graça”, “alegria”, “pequenez”, “paz”, “salvação”, “hoje”, e
“universalismo”. Lucas é um verdadeiro artista das palavras
evangélicas! Este trecho pode ser subdivido assim:

1) O contexto histórico e o nascimento de Jesus – Lc 2, 1-7

2) Pronunciamentos angélicos explicando o sentido de Jesus – Lc 2, 8-14

3) Respostas aos pronunciamentos dos anjos – Lc 2, 15-20

A chave para a compreensão do texto se acha nos versículos
Lc 11-14. Aqui Lucas apresenta Jesus como o Messias davídico que trará
o dom escatológico de paz, o Shalom de Deus. Assim ele faz contraste
com a figura de César Augusto. Na impotência da sua infância, Jesus é
o Salvador que traz a verdadeira paz, em contraste com o poderoso
Augusto, que era celebrado no culto oficial imperial como o fundador
de um reino de paz, a “Pax Romana”. O “Shalom” é, na verdade, o
contrário da “Pax Romana” como hoje seria o oposto da pretensa “paz”
imposta pelos canhões e bombardeiros da força militar prepotente - a
“Pax Americana!”. Essa revelação da parte dos anjos é recebida e
aceita pelos humildes pastores e meditada por Maria, modelo de fé, e
os discípulos, que terão que meditar e aprofundar o sentido de Jesus
para eles, sem cessar!

Desde a Idade Média, o presépio tem mantido o seu lugar
como um dos símbolos mais caros aos cristãos. Porém, é bom não deixar
que a cena do nascimento de Jesus se torne uma cena somente
sentimental, com lembranças saudosas da nossa infância! O relato quer
sublinhar a opção de Deus que se encarnou como pobre, sem as mínimas
condições para um parto digno. Em nossos presépios, até o boi e o asno
tomaram banho! A realidade de nascer numa gruta ou estrebaria era
diferente! Jesus nasce em condições semelhantes a milhões de pobres e
excluídos pelo mundo afora, nos dias de hoje! É mais uma manifestação
da fraqueza de Deus, que é mais forte do que os homens! (I Cor 1, 25).

Diferente de Mateus - que tem outros interesses teológicos
- os protagonistas dessa cena são os pastores. Na época, eles eram
considerados pessoas desqualificadas, marginais, sujas, ritualmente
impuras. Mas, é para essa gente que os anjos revelam o sentido do
acontecido e são eles os primeiros a encontrar Jesus recém-nascido.
Assim, em Lucas, são pessoas à margem da sociedade que testemunham o
nascimento de Jesus e igualmente são pessoas desqualificadas que são
as testemunhas da Ressurreição - as mulheres! Lucas não perde uma
oportunidade para destacar a opção preferencial de Deus pelos pobres e
humilhados!

O trecho continua com mais três ênfases tipicamente
lucanas - “não ter medo”, “sentir e expressar alegria” e o termo
“hoje”. Os ouvintes poderão ter coragem e alegria, porque a salvação
de Deus irrompe no mundo “hoje” - não numa data futura distante. Esta
idéia volta diversas vezes - na sinagoga, depois de fazer a leitura de
Isaías, Jesus dirá que “hoje cumpriu-se essa passagem” (4, 21); a
Zaqueu, Jesus afirma que “hoje a salvação entrou nessa casa” (18, 9);
ao condenado na cruz, Jesus garante que “hoje estarás comigo no
paraíso” (23, 43). O Reino da Salvação está sendo inaugurado, e por
Jesus, na fraqueza da exclusão social, e não por César, com toda a
pompa da corte e das armas! Numa manjedoura e não num palácio
imperial! Por parte de quem carece de força e prestígio, e não pelos
poderosos e fortes do mundo!

Os pastores não somente testemunham a presença do
recém-nascido em Belém, mas anunciam o que disseram os anjos (v. 17).
Essa Boa-Notícia complementa o que foi já anunciado à Maria em Lc 1,
31-33, por Maria em 1, 46-45, e por Zacarias em 1, 68-79. É muito
significativo o termo que Lucas emprega para descrever a reação de
Maria: “Maria, porém, conservava todos esses fatos, e meditava sobre
eles em seu coração” (v. 19). Aqui Lucas retrata, através de Maria, a
atitude do/a discípulo/a diante dos mistérios de Deus, revelados em
Jesus - Maria não capta o significado pleno dos eventos e os rumina no
seu íntimo. A idéia volta de novo em Lc 2, 51: “Sua mãe conservava no
coração todas essas coisas”. É uma maneira de apontar para a caminhada
de fé que Maria trilhou - e que todos nós, que não captamos o sentido
pleno da ação de Deus em nossas vidas, teremos que andar.

O texto encerra afirmando que os pobres e marginalizados -
personificados nos pastores: “voltaram, glorificando e louvando a Deus
por tudo o que haviam visto e ouvido” (v. 20). Qualquer celebração de
Natal que não dê para os oprimidos motivos de alegria, coragem e
louvor a Deus, pode ser tudo, menos uma celebração cristã!



Missa da Aurora: Lc 2, 15-20

Apesar da sua mensagem ser quase abafada pela euforia do consumismo e
materialismo que transforma a grande festa cristã do Natal do Senhor
numa verdadeira orgia pagã de esbanjamento e exclusão, a história do
nascimento do Senhor, contada nas palavras singelas de Lucas, perdura
ainda hoje com a sua mensagem profunda de paz, união, solidariedade e
amor, que o néo-paganismo pós-moderno da nossa sociedade é incapaz de
ofuscar.

As Missas da vigília e da aurora usam dois textos contínuos de Lucas,
que realmente formam um mosaico teológico de grande beleza, através da
sua habilidade literária. Lucas pega as tradições que põem a origem de
Maria e José em Nazaré e junto-as às que colocam o nascimento de Jesus
em Belém, e as insere na história humana e universal, através das suas
referências a grandes figuras históricas da época, César Augusto,
Herodes o Grande e o governador da Síria, Quirino. Nesse contexto ele
tece uma rede que contem oito dos seus temas preferidos - alimento,
graça, alegria, pequenez, paz, salvação, “hoje”, e universalismo, para
trazer à humanidade de todos os tempos “uma boa notícia, uma alegria
para todo o povo” (Lc 2, 10).

Embora haja uma confusão sobre as referências cronológicos em Lucas,
pois Quirino não foi governador no tempo de Herodes e não se tem
informações extra-bíblicas sobre um recenseamento feito por Augusto, a
finalidade de Lucas é situar o nascimento do Salvador bem dentro da
história humana - e especialmente a história humana dos pobres e
excluídos. Jesus nasce filho de viajantes, forçados a sair da sua casa
pela força opressora do império, pois a finalidade de um recenseamento
era alistar todos para a cobrança de impostos. Assim o Messias nasce
em condições subumanas e indignas - como nascem e se criam milhões de
crianças todos os anos na nossa sociedade atual. Como não teve lugar
para eles na “hospedaria” (um tipo de albergue para viajantes, onde os
animais ficavam no pátio, no primeiro andar tinha cozinha comunitária
e no segundo andar dormitórios, algo ainda comum em certas regiões do
Oriente hoje), Maria dá à luz numa gruta ou estrebaria e deita Jesus
numa manjedoura.

Logo Lucas introduz mais personagens tirados dos excluídos da religião
e sociedade de então - os pastores. No tempo de Jesus eram
considerados como delinquentes, dispostos sempre ao roubo e à
pilhagem, por isso não mereciam confiança alguma e nem podiam
testemunhar em juízo. É importante notar que em Lucas são pessoas
pertencentes a duas categorias proibidas de dar testemunho em juízo
(pastores e mulheres) que Deus escolhe para testemunhar os dois
eventos mais importantes da história - o nascimento e a ressurreição
do Salvador. Natal se torna festa de inclusão dos que a religião
oficial e a sociedade dominante excluía - enquanto a maioria da classe
abastada da nossa sociedade atual celebra o Natal exatamente nos
templos de consumo de hoje - os Shoppings, onde pessoas pobres são
excluídas do banquete de poucos. Que contradição!

É importante também por em relevo a mensagem dos anjos: “Glória a Deus
no alto, e na terra paz aos homens que ele ama” (v. 14). Aqui Lucas
cria um binômio - dois elementos conjugados, ou seja, uma maneira de
dar glória a Deus no alto e a criação da paz entre as pessoas aqui na
terra. Atrás do termo “paz” há um cabedal de reflexões teológicas,
vindo do Antigo Testamento. O nosso termo “paz” capta somente uma
parte do que significava a palavra hebraica “Shalom”, que não se
limita a uma mera ausência de violência física, mas inclui a
realização de tudo que Deus deseja para os seus filhos e filhas.
Portanto, o texto natalino nos convida e desafia para que demos glória
a Deus através do nosso esforço em criar um mundo de Shalom - onde
todos possam “ter a vida e a vida em abundância!” (Jo 10,10)

É importante também refletir como Lucas nos apresenta a pessoa da
Maria neste texto. Enquanto todos os que ouviam os pastores
“assombravam-se” (v. 18), “Maria, porém, conservava isso e meditava
tudo em seu íntimo” (v. 19). Dois textos do Antigo Testamento usam o
mesmo verbo grego (synetèrein): Gn 37, 11 e Dn 4, 28, para descrever a
perplexidade íntima de uma pessoa que procura entender o significado
profundo de um fato. Assim Lucas enfatiza que Maria não captou de
imediato todo o sentido do que ouviu, mas meditava as palavras,
contemplando-as, para descobrir o seu significado. Maria cresceu na
fé, acolhendo e discernindo o sentido profundo dos acontecimentos - se
tornou peregrina na fé, modelo para todos nós, nos convidando a
mergulharmos nos relatos evangélicos, contemplando os mistérios da
vida de Jesus e o que eles podem significar para nós, hoje.

A festa do Natal é uma oportunidade ímpar para nos
aprofundarmos no sentido do amor de Deus por nós, expressado na
Encarnação. Mas, se fizermos dele somente uma festa de consumismo e
materialismo, jamais colheremos os seus frutos. Sem deixar do lado o
seu lado lúdico, familiar e festivo, cuidemos para não sermos
seduzidos pelos ídolos do ter e do prazer tão bem promovidos pelo
marketing dos Shoppings - mas retornemos à singeleza da gruta de Belém
e redescubramos o motivo de uma verdadeira “alegria para todo o povo”,
- nasceu para nos o Salvador!



Missa do Dia

Jo 1, 1-18

“O Verbo se fez carne e armou sua tenda no meio de nós”

Embora estejamos muito mais familiarizados com as leituras de Lucas,
referente ao nascimento do Salvador em Belém, na realidade o Evangelho
da Missa do Dia, tirado do prólogo de João, nos traz o sentido
profundo dos eventos do primeiro Natal.

O texto gira ao redor do “Verbo” ou “Palavra” - “Logos” em grego.
Enquanto Marcos somente começa o seu relato do Evangelho de Jesus com
o batismo d’Ele, Lucas e Mateus remontam até a sua concepção, o Quarto
Evangelho liga Jesus à sua preexistência, desde o começo: “No
princípio já existia a Palavra e a Palavra estava com Deus; e a
Palavra era Deus. A Palavra se fez homem e armou sua tenda entre nós”
(Jo 1, 1.14)

Mesmo que se expresse sobre Jesus em termos não tão
familiares para nós (Verbo, ou Palavra), João se coloca bem na
tradição do Antigo Testamento. Embora use a palavra grega “Logos”,
para expressar a identidade de Jesus como o Verbo, na sua mente não
está uma discussão abstrata sobre o Logos dos filósofos gregos, mas
muito mais o sentido teológico do termo hebraico “Dabar”, que indica a
Palavra criadora, congregadora e libertadora de Deus, expressão do
Deus de amor de libertação.

O projeto de Deus acontece quando essa palavra se fez
homem, armou a sua tenda (ou acampou) entre nós. O verbo grego usado
“eskênôsen” deriva-se do termo “skêne”, que significa uma tenda de
campanha. Na visão do Quarto Evangelho, a Palavra, o Verbo Divino,
“armou sua tenda” no meio da humanidade, não “ergueu o seu Templo!”
Templo é fixo, tenda é móvel, ou seja, aonde anda o povo, lá estará a
Palavra Viva de Deus, encarnada na pessoa e projeto de Jesus de
Nazaré. N’Ele e por Ele a Palavra Criadora age, operando a salvação
aqui na terra. Podemos afirmar que o mistério da Palavra tem agora
como centro a Pessoa de Jesus Cristo, inseparável da sua missão e
projeto.

Mas, essa Encarnação tornou-se o divisor das águas para a
humanidade. Pois, “Veio aos seus e os seus não a acolheram”. Assim, o
texto desafia qualquer acomodação que porventura possa existir entre
os cristãos, pois “acolher” a Palavra encarnada não é em primeiro
lugar uma crença intelectual, mas o assumir de um projeto de vida, o
seguimento de Jesus de Nazaré. É uma adesão radical à pessoa e missão
de Jesus, continuada em nós hoje. Como diz o Evangelho de Mateus, “nem
todo aquele que me disser “Senhor, Senhor!” entrará no reino de Deus,
mas aquele que cumprir a vontade de meu Pai do céu” (Mt 7, 21).

O nosso texto nos anima para que não esfriemos no
seguimento de Jesus, e nos diz: “Aos que a receberam, os tornou
capazes de ser filhos de Deus, os que creram n’Ele, os que não
nasceram do sangue, nem do desejo da carne, nem do desejo do homem,
mas de Deus” (Jo 1, 12s).

Que a celebração da grande festa de hoje nos confirme na
nossa fé nesse Deus que se encarnou entre nós, “tomando a condição de
escravo, fazendo-se semelhante aos homens” (Fl 2, 7) e como resultado
dessa renovação espiritual nos encoraje para continuarmos na luta para
criar o mundo que Deus quer - de justiça, solidariedade e
fraternidade, no caminho do Reino, onde “todos tenham a vida e a
tenham em abundância” (Jo 10, 10). Como nos diz Hebreus: “Corramos com
perseverança na corrida, mantendo os olhos fixos em Jesus, autor e
consumidor da fé... Para que vocês não se cansem e não percam o ânimo,
pensem atentamente em Jesus.” (Hb 12, 1-3)



Festa da Sagrada Família (27.12.09)

Lc 2, 22-40

“Ele crescia, cheio de sabedoria e o favor de Deus estava com Ele”.

O Evangelho da Festa da Sagrada Família é tirado do
segundo capítulo de Lucas. Mais uma vez encontramos um tema muito
importante para esse Evangelho - o encontro entre o Antigo e o Novo
Testamento. Durante o Advento, Lucas fazia o paralelo entre Isabel,
Zacarias e João Batista de um lado, e Maria, José e Jesus, do outro.
No texto de hoje, os justos da Antiga Aliança são representados pelas
figuras de Simeão e Ana, profeta e profetiza. Outros dois temas de
Lucas também se destacam nesse relato - o Espírito Santo e a opção
pelos pobres.

Lucas enfatiza que os pais de Jesus foram ao Templo
conforme a Lei (Lv 12, 8), para oferecer o seu sacrifício - de dois
pombinhos. Na Lei, esse sacrifício era permitido aos pobres. Mais uma
vez, continuando a lição da manjedoura e dos pastores, Lucas sublinha
o amor especial de Deus para os pobres. Deixa bem claro que Maria,
José e Jesus eram contados entre eles - como, aliás, era toda a
população do Nazaré de então!

Simeão e Ana representam, em quase os mesmos termos de Zacarias e
Isabel, os justos que esperavam a salvação de Deus - o grupo conhecido
no Antigo Testamento como os “anawim”, ou “pobres de Javé”. É de notar
que, no seu canto, Simeão proclama que ele pode “ir em paz” -
simbolizando que as esperanças dos justos da Antiga Aliança agora
serão realizadas em Jesus. Como na visitação, a idosa Isabel, símbolo
também dos justos, acolhia com alegria a chegada de Maria com Jesus,
agora Simeão e Ana recebem com a mesma alegria a novidade da Nova
Aliança, concretizada em Jesus. Mais uma vez, Lucas coloca juntos
homem e mulher, um tema comum nos seus escritos (Lc 4, 25-28; 4,
31-39; 7, 1-17; 7, 36-50; 23, 55-24, 35; At 16, 13-34). Assim, Lucas
insiste que o homem e a mulher se colocam juntos diante de Deus. São
iguais em dignidade e graça, recebem os mesmos dons e têm as mesmas
responsabilidades.

Como já fez em 2, 19 e fará de novo em 2, 50, Lucas frisa
que os seus pais não entenderam plenamente ainda o alcance do mistério
de Jesus. V. 33 insiste que “o pai e a mãe do menino estavam admirados
do que se dizia d’Ele” - mais uma vez nos apresentando José, e
especialmente Maria, como modelos de fé. Não obstante, qualquer
revelação que eles tivessem, também tiveram que caminhar na escuridão
da fé, descobrindo passo a passo o que significava ser discípulo de
Jesus.

Jesus “crescia e se fortalecia, cheio de sabedoria e o
favor de Deus estava com Ele”. Mas, esse crescimento foi gradual, como
com todos nós, e a família de Jesus tinha um papel importantíssimo no
seu crescimento. Se, como adulto, Ele podia nos dar a imagem de Deus
como o amoroso Pai - tema tão caro a Lucas - era porque também
aprendeu isso através da experiência do seu pai adotivo, José. Se Ele
foi criado na espiritualidade dos anawim, era porque aprendeu isso
desde o berço, junto com os seus pais. Se era fiel na busca da vontade
de Deus, era porque assim se aprendia no ambiente familiar. Num mundo
como o nosso, que desvaloriza a vida familiar, o texto de hoje deve
nos animar e desafiar, para que, como Maria e José, na claridade e na
escuridão da caminhada, criemos um ambiente onde o amor possa
florescer e onde os nossos jovens possam aprender, como por osmose, a
importância do amor nutrido numa fé viva em Deus, na contramão da
nossa sociedade consumista e materialista, que vê na família unida uma
ameaça aos seus contra-valores.

Pe. Tomaz Hughes, SVD

E-mail: thughes@netpar.com.br

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