Theresa Catharina de Góes Campos

  ALMOÇO MINEIRO - Rubem Braga
(comentários de Reynaldo Ferreira e Ângela)

De: REYNALDO FERREIRA
Data: 22 de maio de 2010 09:42
Assunto: FW: Res: Almoço Mineiro
Para: theresa.files


Repassando, amigos, a magnífica observação da Angela, mineira, de Araguari, que repara o meu erro em dizer que não havia couve no almoço patrocinado pelo Rubem Braga, nascido em Cachoeiro do Itapemirim, como lembra Ciro, seu conterrâneo. Eu realmente fui muito afoito à "comida". Até mesmo porque entendo que sem couve e sem queijo, mineiro é ninguém. Mas apreciem agora o inspirado texto da Ângela, que tem gosto de chá de menta com fatia de limão, servido na caneca de estimação:

Que maravilha, que fina arte que arrebata. Quando comecei a leitura e senti os primeiros arrepios vi que me era exigido mais da minha atenção; então recomecei na companhia de um chá de menta servido com uma fina fatia de limão na caneca mais apreciada.
Um prazer mais que escandaloso, perto de pecaminoso me veio dessa leitura. Pode ser que, como mineira, reconhecendo os cheiros, os sabores, as consistências e o ritmo da melodia poética tenha me emocionado com eles; mas sei que não. O arrebatamento e o encanto vêm do sopro do gênio. Somente um gênio, usando ingredientes triviais, é capaz de preparar tal banquete.
E você, afoito, se lançou com tanta gulodice que sequer enxergou a couve servida ao lado do arroz e do pão, logo a seguir aos torresmos. Pode retornar e voltar a se servir, agora sem se esquecer da couve, pois afinal, no prato de mineiro não faltará nunca o verde, exigência cromática das nossas matas que se querem sempre lembradas.
Receba um abraço agradecido pelo envio desse texto maravilhoso. Com esmero e reconhecimento vou preparar pra você um doce de abóbora com coco como sobremesa do porco imaginário. Você aceita?

Um abração da Ângela

De: REYNALDO FERREIRA
Para: theresa.files
Enviadas: Sexta-feira, 21 de Maio de 2010 7:38:21
Assunto: FW: Almoço Mineiro


Repassando aos amigos, convidados para este almoço mineiro, com tutu de feijão e lombo de porco - mas, infelizmente, falta a couve -, patrocinado pelo Rubem Braga no cenário de Poços de Caldas. Deliciem-se.


Almoço Mineiro
Rubem Braga

Éramos dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois jornalistas, um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força Pública, um empresário do cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de colo e outra de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca.

Falamos de vários assuntos inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços de Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos vários oradores, que estava um dia muito bonito. A palestra foi decaindo então, para assuntos muitos escabrosos: discutiu-se até política. Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram idéias a respeito do separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que, infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos situados na extremidade da mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido, as tardes de outono, as flores dos vergéis, os proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que um preto fazia funcionar a sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento. Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho funcionário municipal.

Mas nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública , nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos que o seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. O tutu era um tutu honesto, forte, poderoso, saudável.

É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase simples gordura. Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios.

Havia arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. E no fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido uma encantadora lingüiça de porco e talvez um pouco de farofa. Que importa? O lombo era o essencial, e a sua essência era sublime. Por fora era escuro, com tons de ouro. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria, levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde, na primavera. O gosto era de um salgado distante e de uma ternura quase musical. Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo ouro. Os torresmos davam uma nota marítima, salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida muito longe do solo, sob um prado cheio de flores, terra com um perfume vegetal diluído mas uniforme. E do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve — do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um encanto abençoado de coisas simples e boas.

Era o encanto de Minas.
São Paulo, 1934.

 

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