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De: LMAIKOL
Data: 30 de junho de 2010 10:40
Assunto: Reflexões Homiléticas para Julho de
2010
Reflexões Homiléticas para Julho de 2010
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FESTA de SÃO PEDRO e SÃO PAULO (04.07.10)
Mt 16, 13-20
“E vocês, quem dizem que eu sou?”
Aqui temos a versão mateana da profissão de fé
de Pedro, que Marcos (Mc 8, 27-35) coloca como
pivô de todo o seu evangelho. Esse trecho
levanta as duas perguntas fundamentais de todos
os evangelhos: quem é Jesus? O que é ser
discípulo d’Ele? São duas perguntas
interligadas, pois a segunda resposta depende
muito da primeira. A minha visão de Jesus
determinará a maneira do meu seguimento d’Ele.
O diálogo começa com uma pergunta um tanto
inócua: “Quem dizem os homens que é o Filho do
Homem?” É inócua, pois não compromete - o “diz
que” não compromete ninguém, pois expressa a
opinião dos outros. Por isso, chovem respostas
da parte dos discípulos: “João Batista, Elias,
Jeremias, ou um dos profetas!” Mas, Jesus não
quer parar aqui - essa pergunta foi só uma
introdução. Depois vem a facada: “E vocês, quem
dizem que eu sou?”
Agora não chovem respostas, pois quem responde
vai se comprometer - não será a opinião dos
outros, mas a opinião pessoal! E esta opinião
traz consequências práticas para a vida.
Finalmente, Pedro se arrisca: “O Messias, o
Filho de Deus vivo”.
Aqui Mateus acrescenta vv. 17-19, pois quer
destacar o papel de Pedro (e, por conseguinte
dos líderes da sua própria comunidade), na
função de ligar e desligar da comunidade, que
nos Evangelhos somente aqui e em Cap. 18 é
chamada de “Igreja”. “As chaves do Reino” não se
referem ao poder de perdoar pecados, mas de
integrar e desligar pessoas da comunidade dos
discípulos.
O fundamento, o alicerce, dessa comunidade é o
conteúdo da profissão de Pedro: “Tu és o
Messias, o Filho de Deus vivo”. Mas, continuam
no ar as duas perguntas que são o cerne do
Evangelho: “Quem é Jesus?”, e “o que significa
segui-Lo?” Pois, os termos que Pedro usa são
ambíguos, porque cada um os interpreta conforme
a sua cabeça. Por isso, Jesus toma uma atitude,
aparentemente estranha: “Ele ordenou os
discípulos que não dissessem a ninguém que Ele
era o Messias!”
Que coisa esquisita! Jesus proíbe que se fale a
verdade sobre Ele! Como é que Ele espera
angariar discípulos deste jeito? O assunto
merece mais atenção.
Realmente, Pedro acertou em termos de teologia,
de “ortodoxia”, conforme diríamos hoje. Ele usou
o termo certo para descrever Jesus. Mas Jesus
quer esclarecer o que significa ser “o Messias
de Deus”. Pois, cada um pode entender esse termo
conforme os seus desejos. Jesus quer deixar bem
claro que ser “messias” para Ele é ser o “Servo
de Javé”. É vivenciar o projeto do Pai, que
necessariamente vai levá-Lo a um choque com as
autoridades políticas, religiosas, e econômicas,
enfim, com a classe dominante do seu tempo, e
não o Messias nacionalista e triunfalista das
expectativas de então. Pedro teve que aprender
essa exigência do discipulado, de uma maneira
lenta e dolorosa, passando até pela negação de
Jesus na noite da sua prisão. Aprendeu tão bem
que chegou a dar a sua vida como mártir, também
morrendo, conforme a tradição, numa cruz, no
Circo de Nero, onde atualmente se localiza a
Basílica que traz o seu nome. Paulo, que durante
os seus primeiros anos da vida adulta, perseguia
os discípulos, também teve a graça da conversão,
chegando a afirmar que não queria saber nada a
não ser Jesus Cristo e Jesus Cristo Crucificado!
Ele também pagou com a sua vida essa decisão
pelo discipulado.
No nosso tempo, quando é moda apresentar um
Jesus “light”, sem exigências, sem paixão, sem
Cruz, sem compromisso com a transformação
social, o texto nos desafia a clarificar em que
Jesus acreditamos!O Jesus “ôba! ôba!”, tão
propagado por setores da mídia; ou, o Jesus
bíblico, o Servo de Javé, que veio para dar a
vida em favor de todos?
DÉCIMO QUINTO DOMINGO COMUM (11.07.10)
Lucas 10, 25-37
“Vá, e faça a mesma coisa”
A parábola do “Bom Samaritano” talvez seja,
junto com a do “Filho Pródigo”, a mais conhecida
de todas as parábolas de Jesus. Por isso mesmo,
corre o risco de ser banalizada, de não ser
levada muito a sério, de ser relegada quase ao
nível de folclore religioso. Merece uma atenção
mais minuciosa.
A parábola situa-se logo após Jesus ter louvado
o Pai por ter “escondido essas coisas aos sábios
e inteligentes e revelado aos pequeninos” (Lc 10
, 21). Realmente, o primeiro a tentar atrapalhar
Jesus é um “sábio e inteligente” - um
especialista em leis. Lucas salienta que ele fez
a pergunta “o que devo fazer para receber em
herança a vida eterna” (v. 25), não porque ele
se interessava pela verdade, mas “para tentar
Jesus”. Devolvendo a pergunta a ele, Jesus deixa
claro que o legista já sabia a resposta: “Ame o
Senhor, seu Deus, como todo o seu coração, com
toda a sua alma, como toda a sua força e com
toda a sua mente; e ao seu próximo como a si
mesmo.” Jesus simplesmente diz: “Você respondeu
certo. Faça isso e viverá” (v. 28)
Mas, com a petulância típica do
pseudo-intelectual, ele insiste, “para se
justificar”, com uma segunda pergunta: “E quem é
o meu próximo?” (v. 29). Mas, Jesus não cai na
cilada de fazer uma discussão teórica e estéril
sobre quem seja o próximo - ele logo traz o
debate para o nível prático da vivência. Ele
conta a parábola do “Bom Samaritano”. Vejamos:
Depois do assalto, passou pela vítima um
sacerdote que “viu o homem e passou adiante pelo
outro lado” (v. 31). A mesma coisa aconteceu com
um levita. Por que será que esses homens -
ligados ao culto judaico - agiram assim? A
resposta está nas leis de pureza daquela época.
O contato com um defunto, ou com sangue, deixava
a pessoa ritualmente impura, isso é, inapta para
participar do culto. Como o homem estava coberto
de sangue, e talvez morto, estes dois não se
arriscavam a tocar nele, pois para eles o culto
religioso era mais importante do que a
misericórdia para com uma pessoa sofrida.
Entra em cena um samaritano. A religião dele era
considerada como cheia de deformações e
ignorância pelo judaísmo oficial, pois desde a
invasão da Assíria em 721 a.C. a sua prática
religiosa tinha sido contaminada por religiões
pagãs (2Rs 17, 24-31). Mas, quando ele vê o
sofrimento alheio, ele não pensa em discussões
teológicas sobre pureza; mas, parte para uma
ajuda prática, com misericórdia.
Terminando a história, Jesus devolve a pergunta
ao especialista em leis - mas, faz uma mudança
fundamental! Não faz a pergunta teórica “quem é
o meu próximo”, mas uma pergunta prática “quem
se fez próximo do homem que caiu nas mãos dos
assaltantes?” A primeira pergunta só levaria a
uma discussão vazia; a de Jesus, leva a uma
mudança de prática vivencial.
Forçado a reconhecer que quem se fez próximo do
sofredor era o samaritano, o legista ouviu da
boca de Jesus a conclusão: “Vá e faça a mesma
coisa” (v. 37).
Com esta parábola, Jesus quer ensinar que nada,
nem o culto, tem prioridade sobre a ajuda a uma
pessoa necessitada. A religião de Jesus não é
teoria, é prática de misericórdia, pois Deus é
misericordioso. O legista já sabia a orientação
da Escritura, mas tentava escapar das suas
consequências, criando discussões inúteis. Nós
também sabemos o que diz a Bíblia, - não
tentemos esvaziá-la com debates estéreis sobre
quem é “o pobre”, “o aflito”, “o próximo”, “o
bom”. Façamos o que Jesus ensina nesta parábola
“e viveremos”.
DÉCIMO SEXTO DOMINGO COMUM (18.07.10)
Lucas 10, 38-42
“Uma só coisa é necessária”
Mais uma vez, o Evangelho de Lucas destaca o
fato que Jesus e os seus discípulos caminhavam.
É caminhando que se faz caminho, e é no caminho
que se aprende o que é ser discípulo de Jesus.
Todos nós estamos no caminho, como Jesus e os
outros, só que a nossa caminhada não se mede em
quilômetros, mas em anos!
O Evangelho de hoje frisa muito o lado afetivo
de Jesus e dos seus discípulos e discípulas.
Jesus se dirige à casa de uma família em
Betânia, perto de Jerusalém. Era o lugar
predileto onde Jesus procurava - e recebia -
aconchego humano, carinho, afeto, amizade,
acolhimento; onde podia refazer as suas forças
nas suas caminhadas evangelizadoras. Do
Evangelho do Discípulo Amado aprendemos que:
“Jesus amava Marta, a irmã dela e Lázaro” (Jo
11, 5). Este tipo de relacionamento humano é
necessário para que formemos verdadeiras
comunidades cristãs - e quantas vezes
dispensamos este elemento fundamental.
É gritante a diferença de gênio das duas irmãs!
Marta, provavelmente a mais velha, preocupada
com os seus afazeres - afinal tinha chegado
treze hóspedes para uma refeição, e tinham que
ser bem tratados; Maria, calma, senta-se aos pés
do Senhor, para escutar a Palavra. De repente,
ressoa o desabafo de Marta: “Senhor, não te
importas que minha irmã me deixe sozinha com
todo o serviço? Manda que ela venha ajudar-me!”
(v. 40). Instintivamente, a nossa simpatia fica
com a Marta. Qual é a mãe da família, a dona de
casa ou o anfitrião de visita que não sentiria o
que Marta sentia? Por isso mesmo, chama a
atenção a resposta do Senhor: “Marta, Marta!
Você se preocupa e anda agitada com muitas
coisas; porém uma só coisa é necessária. Maria
escolheu a melhor parte, e esta não lhe será
tirada.”(v. 41s).
Uma coisa é óbvia - Jesus não está defendendo a
preguiça, a omissão, a exploração do trabalho
dos outros! Num mundo agitado como é o nosso,
que não nos deixa tempo para cultivar o
relacionamento humano, a amizade, a oração, o
nosso próprio ser, esta resposta nos faz lembrar
a importância de viver de uma maneira que
prioriza as coisas. É óbvio que nós temos que
nos preocupar com os afazeres, os trabalhos, -
mas, na verdade, quantas vezes nós enchemos os
nossos dias com ativismo, atividades fúteis,
agitação, - e assim não conseguimos escutar nem
nós mesmos, nem os irmãos, nem o próprio Deus!
Jesus aqui questiona a agitação e o ativismo -
que não se mede pelo número de atividades. O
ativismo é uma fuga, uma fuga de um encontro com
os anseios mais profundos do nosso ser, dos
apelos de Deus, refugiando-nos em um número sem
fim de atividades sem objetivos claros, sem
organização, sem rumo. A atitude de Maria é a de
uma discípula, que aprende viver de maneira
nova, ouvindo e ruminando a Palavra de Deus, uma
palavra que pode levar à muita atividade, mas
nunca ao ativismo.
Jesus de forma alguma quer menosprezar a Marta.
Aliás, diversas vezes os evangelhos põem Marta
em mais relevo do que Maria. O próprio Lucas diz
que foi Marta que recebeu Jesus na sua casa (v.
38). Em João, é Marta que faz a profissão de fé
em Jesus, que nos Sinóticos é feita por Pedro:
“Sim, Senhor. Eu acredito que tu és o Messias, o
Filho de Deus que devia vir a este mundo” ( Jo
11, 27).
Na realidade, todos nós temos que ser “Marta e
Maria”. Temos necessidade de nos dedicarmos aos
nossos afazeres, mas também é preciso achar
tempo para ficarmos aos pés do Senhor. O desafio
é de conseguir o equilíbrio entre os dois
aspectos de vida, entre “lançar as redes” e
“consertar as redes” (Mc 1, 16-20), entre
“atividade” e “oração”, entre “missão” e
“interiorização”. Pois, os dois lados são tão
intimamente ligados que o desequilíbrio, do lado
que for, trará consequências negativas para a
nossa vida de discípulos e discípulas.
DÉCIMO SÉTIMO DOMINGO COMUM (25.07.10)
Lucas 11,1-13
“Ensina-nos a rezar!”
O nosso texto de hoje nos traz o ensinamento da
Oração do Senhor, na versão Lucana. O Novo
Testamento nos traz duas versões desta oração -
por sinal a única oração que o Senhor nos
ensinou: Lucas 11, 2-4 e Mateus 6, 9-13.
Normalmente, os cristãos rezam na forma mateana,
com sete petições e sem doxologia (oração de
louvor). A versão lucana só tem cinco petições.
A forma usada na Missa acrescenta a doxologia
“porque Vosso é o Reino, o Poder e a Glória para
sempre”, baseada no texto trazido pela Didaché -
um documento cristão do início do segundo
século. Alguns estudiosos explicam as duas
formas pelo fato que Lucas e Mateus estavam se
dirigindo a comunidades diferentes, com
tradições diferentes. Mateus se dirigia a
pessoas que tinham o costume de rezar, mas que
estavam correndo o risco de orar duma maneira
muita formal e rotineira (judeu-cristãos),
enquanto Lucas estava escrevendo para pessoas
recém-convertidas (gentios-cristãos) e que
precisavam aprender, talvez pela primeira vez, a
rezar continuamente.
Embora não haja unanimidade entre exegetas sobre
qual é a forma mais original, parece que o
consenso tende em favor da versão Lucana. A
versão mateana apresenta a forma mais litúrgica
do seu uso (p. ex.“Pai Nosso” em lugar do
simples “Pai”); mas, na verdade não há diferença
essencial entre as duas versões. Baseando-nos no
trabalho de um exegeta alemão, Joaquim Jeremias,
propomos a seguinte versão como a mais
aproximada às palavras aramaicas de Jesus
(devemos sempre lembrar que Jesus falava em
aramaico, os evangelhos foram escritos em grego,
e nós os lemos em português!):
“Querido Pai, santificado seja o Teu nome; venha
o Teu Reino; o pão nosso de amanhã nos dá hoje;
perdoa-nos as nossas dívidas, como queremos
perdoar os nossos devedores, e não nos deixes
sucumbir à tentação”.
Seguindo este autor, tratamos a oração como uma
“oração escatalógica”, ou seja a oração da
comunidade cristã que experimenta o Reino como
uma realidade já presente, mas que espera e pede
a sua consumação final.
Uma chave para a compreensão lucana da Oração do
Senhor, nós a encontramos no primeiro versículo
do texto: “Um dia, Jesus estava rezando num
certo lugar. Quando terminou, um dos discípulos
pediu: “Senhor, ensina-nos a rezar, como também
João ensinou os discípulos dele” (Lc 11, 1).
Essa frase nos faz lembrar que muitos grupos
religiosos do tempo de Jesus tinham uma oração
que identificasse os seus discípulos, como por
exemplo, os Essênios, os Fariseus e os Batistas.
Então o discípulo de Jesus pede uma oração que
pudesse identificar o seu programa de vida, como
discípulos de Jesus. Então podemos ver a Oração
do Senhor como mais do que uma oração - como um
“manifesto” da nossa proposta de vivência da
nossa fé. Vejamos mais de perto o texto:
1. “Querido Pai” (ABBÁ):
É possível que muita gente tenha dificuldade em
rezar o “Pai Nosso” por causa da sua experiência
com o seu próprio pai. Se nós tivemos um pai
carinhoso, com quem desde criança nós nos
sentíssemos bem, então teremos facilidade de
rezar a Deus como “Pai”. Mas, se o nosso pai era
pessoa dura, ameaçadora, sem expressão de
carinho, então podemos ter mais dificuldade em
poder nos relacionar com Deus como “Pai Nosso”.
Outras pessoas - especialmente feministas -
talvez achem que o título “Pai” para Deus traz
conotações demasiadamente masculinizantes,
quando não machistas. Por isso, é importante
aprofundar o sentido bíblico do termo, e o que
significava na boca de Jesus.
Quando o Antigo Testamento descreve Deus como
Pai, implica muito de que a nossa cultura
atribui à mãe. O Antigo Testamento se refere a
Deus como Pai quinze vezes e enfatiza a ternura,
a misericórdia, o carinho e o amor de Deus para
o seu povo. Isso fica especialmente claro nos
Profetas. Vejamos alguns textos: “Serei um pai
para Israel, e Efraim será o meu primogênito”
(Jr 31, 9); “Será que Efraim não é o meu filho
predileto? Será que não é um filho querido?
Quanto mais o repreendo, mais me lembro dele.
Por isso minhas entranhas se comovem, e eu cedo
à compaixão - oráculo de Javé” (Jr 31, 20); “Eu
tinha pensado contar você entre os meus filhos,
dar-lhe uma terra invejável... esperando que
você me chamasse de “Meu Pai”, e não se
afastasse de mim (Jr 3, 19); “Quando Israel era
menino, eu o amei, do Egito chamei o meu
filho... fui eu que ensinei Efraim a andar,
segurando-o pela mão.... Eu os atraí com laços
de bondade, com cordas de amor. Fazia com eles
como quem levanta até seu rosto uma criança;
para dar-lhes de comer, eu me abaixava até eles
(Os 11, 1ss).
Nesses textos podemos sentir muitas das
características que a nossa cultura ocidental
atribui à mãe – portanto, o termo “Pai” no
Antigo Testamento não traz qualquer conotação
machista.
Embora o Antigo Testamento fale de Deus como
“Pai” quinze vezes, jamais alguém invoca Deus
como “meu Pai”, ou “nosso Pai”. O respeito do
judeu diante da transcendência de Deus não
permitia. Mas, nos Evangelhos nós achamos o
termo “Pai” para Deus na boca de Jesus 170
vezes. Isso era coisa tão inédita que podemos
ter certeza que se trata de uma palavra
autêntica de Jesus e não somente proveniente da
Igreja primitiva. Marcos a usa 4 vezes, Lucas 15
vezes, Mateus 42 vezes e João 109 vezes! Na
comunidade do Discípulo Amado, pelo fim do
primeiro século, “Pai” é o termo para Deus.
A expressão que Jesus mesmo usava era “Abbá”,
uma palavra aramaica sem sinônimo em português.
Fazia parte da linguagem da intimidade do lar,
um termo carinhoso usado tanto por crianças como
por adultos, para o seu pai. Então, ultrapassa o
sentido da nossa palavra “papai”. Devemos dar
muito peso a este ensinamento de Jesus, pois
embora não existe na literatura rabínica um
exemplo sequer do uso do termo “Abbá” para Deus,
Jesus sempre se dirigia a Deus deste jeito,
exceto em Mc 15, 34 (quando na cruz, citando um
salmo, ele chama deus de “Eloí”, meu Deus).
Jesus então conversava com Deus com a segurança,
intimidade e carinho com quem se conversa na
ternura do seio familiar. E mais, ele autorizou
os seus discípulos a usar o mesmo termo. Isso
indica o novo relacionamento com Deus, que Jesus
nos trouxe. É algo além do normal, poder
reivindicar tal relacionamento com Deus. São
Paulo mantinha o termo aramaico, mesmo
escrevendo em grego em Gálatas 4, 6 e Romanos 8,
15, quando ele diz: “A prova de que vocês são
filhos é o fato de que Deus enviou aos nossos
corações o Espírito do seu Filho que clama: Abbá
Pai!” (Gl 4, 6); “...receberam um Espírito de
filhos adotivos, por meio do qual clamamos: Abbá,
Pai!” (Rm 8,15)
O “endereço” da oração determina não somente o
nosso relacionamento com Deus, mas, com os
nossos irmãos e irmãs. Pois, se Deus é o “Abbá”
de todos nós, então somos todos iguais; e rezar
esta oração exige que nós não nos compactuemos
com qualquer coisa que nos discrimine - racismo,
machismo, clericalismo, exploração etc.
Todas as petições seguintes da oração dependem
desse endereço. Pois, não estamos nos dirigindo
a um Espírito perfeitíssimo, criador do céu e da
terra, onipresente, onipotente e onisciente!
Estamos nos dirigindo ao nosso “Querido Pai”; e
é este novo relacionamento, um dom incrível do
próprio Deus, que faz possíveis as petições. Por
isso, na liturgia, a Igreja pede que se faça uma
introdução à oração, como “Orientados pela
Palavra de Jesus, ousamos rezar”, para que nós
tomemos consciência da enormidade do dom de
filiação que recebemos por Jesus.
2. “Santificado seja o Teu nome”
Na forma atual, esta petição pode expressar
tanto um louvor, (“Santificado seja o teu nome”)
como petição (“Que o Teu Nome se torne
santificado”). No contexto, devemos entendê-la
como pedido. Podemos entender melhor a frase se
voltamos de novo para um profeta do Antigo
Testamento, Ezequiel: “Vou santificar o meu nome
grandioso, que foi profanado entre as nações,
porque vocês o profanaram entre elas. Então, as
nações ficarão sabendo que eu sou Javé, quando
eu mostrar a minha santidade em vocês diante
deles” (Ez 36, 23).
Então, com este pedido rezamos que o mundo
chegue a conhecer o nome (isto é, a realidade
íntima) de Deus (que Ele é o nosso “querido
pai”) através da nossa vivência. Se torna uma
oração missionária, com três elementos:
- primeiro, que nós cheguemos a conhecer cada
vez mais quem é Deus;
- segundo, que o mundo chegue a este
conhecimento através do nosso testemunho;
- terceiro, que a plenitude da revelação da
realidade de Deus venha logo; este é o aspecto
escatalógico.
3. “Venha o Teu Reino”
O tema central da pregação de Jesus era a
iminência do Reino de Deus. Se o “nome” de Deus
se refere à sua natureza íntima, o “Reino” se
refere à sua atividade. Pedimos aqui a
consumação final do Reino. É a oração da
comunidade que reconhece a presença do Reino,
mas, sente que ainda não é estabelecido
definitivamente entre nós. Temos outros trechos
do Novo Testamento que expressam esse desejo com
a palavra aramaica “Maranathá”, (Vem, Senhor
Jesus!), por exemplo 1Cor 16, 22 e Ap 22, 20.
A versão mateana que nós costumamos rezar,
acrescenta “Seja feita a vossa vontade, assim na
terra como no céu”. Isso é outra maneira de
expressar a mesma idéia, pois quando a vontade
de Deus é feita na terra como já se faz no céu,
então o Reino estará plenamente realizado entre
nós.
4. “O pão nosso de amanhã nos dá hoje”
Os primeiros dois pedidos almejam a chegada do
Reino na sua plenitude, mas as duas petições
seguintes põem a ênfase sobe o “agora”, o
“hoje”!
A primeira dificuldade que enfrentamos é com a
tradução, pois aqui se usa uma palavra grega
“epiousios” que não é usada em outro lugar no
Novo Testamento. Há quatro sentidos básicos
possíveis para este termo:
- necessário para a nossa existência;
- para hoje;
- para o dia que virá;
- para o futuro.
As várias traduções usadas nas nossas bíblias (e
seria bom verificar) refletem a dificuldade em
ter certeza sobre o que significa o termo no
contexto desta oração. Muitos exegetas concluem,
com São Jerônimo, que a palavra quer dizer “dá
nos hoje o nosso pão de amanhã”.
Aqui, “amanhã” significaria o “grande amanhã” da
parusia, da consumação final do Reino de Deus.
Assim estamos pedindo que nós possamos
experimentar hoje o que pertence à plenitude do
Reino.
E isso tem implicações muito concretas para a
nossa vivência. Pois jamais será possível
experimentar a plenitude do Reino enquanto falta
o pão material na mesa dos nossos irmãos e
irmãs. Quem faz este pedido se compromete com a
luta por uma sociedade mais justa, mais
fraterna, onde todos possam ter uma vida digna.
Quando Jesus e os seus discípulos faziam a
refeição, era muito mais do que simplesmente
tirar a fome. Significava o banquete messiânico,
desejado pelos profetas, onde todos teriam vida
plena. Quem reza esta petição, se compromete com
a concretização de uma sociedade onde “todos
tenham a vida e a vida em abundância” (Jo 10,
10), coisa impossível sem o pão material nas
mesas.
Não é possível participar do banquete
eucarístico, sem este compromisso concreto com a
construção de um mundo sem empobrecidos, onde
todos terão “o pão nosso de cada dia”.
5. “E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como
nós queremos perdoar os nossos devedores”.
Um dos grandes dons da era escatalógica é o
perdão. Já vimos em outros trechos como Jesus
manifestava este dom gratuito do Pai. Aqui
pedimos que nós possamos experimentar este
grande dom, aqui e agora. Mas, o trecho levanta
a questão da relação entre o perdão de Deus e o
nosso perdão.
A maneira que nós rezamos o “Pai Nosso” -
“perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós
perdoamos a quem nos tem ofendido”- pode dar a
impressão que estamos pedindo que Deus nos
perdoe na medida em que perdoamos os outros! Se
Deus vai nos perdoar conforme os critérios
humanos, estamos em maus lençóis! Aqui é
necessário que olhemos melhor o que significa
“assim como”.
Quase todos os estudiosos estão de acordo que
essa frase não deve ser entendida como uma
comparação entre o perdão de Deus e o nosso.
Diversas parábolas sugerem que o perdão de Deus
precede o perdão humano (Mt 18, 23-25; Lc 7,
41-47). O nosso perdão é consequência e resposta
ao perdão de Deus. Sendo perdoados, não temos
desculpa para não perdoar! Mas, qual é então o
papel do perdão humano? (Mt 6, 14s). É que o
perdão de Deus só se torna real para mim quando
eu o assumo na minha vida ao ponto que procuro
perdoar quem me ofendeu. O nosso perdão mútuo
então é a prova de até onde temos aceito o
perdão de Deus. Devemos então lembrar três
pontos:
- O perdão de Deus sempre precede o perdão
humano;
- O perdão humano é reação ao perdão divino;
- O perdão divino só se torna eficaz para nós
quando nós temos vontade de perdoar o outro.
Joaquim Jeremias explica a frase assim: “Nós
estamos prontos a repassar a outros o perdão que
nós recebemos. Dá-nos, querido Pai, o dom da era
da salvação, o teu perdão, para que, na força do
perdão recebido, possamos perdoar os que têm nos
ofendido”. (J. Jeremias, A Oração do Senhor).
E o grande exemplo desta realidade continua
sendo a mulher “pecadora” de Lc 7, 36-50), cujo
grande amor foi consequência do grande perdão
recebido de Deus.
6. “E não nos deixes sucumbir à tentação”
Este é o único pedido formulado em termos
negativos. Aqui não somente pedimos para não
cair nas pequenas ou grandes tentações que nós
enfrentamos no dia-a-dia, mas que não caiamos na
Grande Tentação, de não acreditar na realidade
da presença do Reino, de perder a fé na ação
transformadora de Deus, de não acreditar mais na
concretização da vontade de Deus. E este
“sucumbir” não vem normalmente “de vez” - é um
processo lento, que pode acontecer sem que nós
nos demos conta. É o perder do elã, da vibração
com a causa do Reino, que reduz a religião a um
mero “cumprir tabela”, sem alegria, sem
esperança, - enfim uma frustração. Este pedido
ecoa uma mensagem e advertência clara dos
evangelhos - a necessidade de vigilância!
Estamos na luta escatalógica entre o bem e o
mal, onde até Jesus foi tentado. Aqui
reconhecemos a nossa fraqueza, a nossa tendência
para o desânimo, e pedimos a força de Deus para
que não sucumbamos à Grande Tentação.
Assim a Oração do Senhor resume o projeto de
vida dos seus seguidores e discípulos. É uma
oração que traz consequências bem concretas para
o nosso relacionamento com os irmãos e com a
sociedade. É uma oração que desinstala e
desacomoda. Pois, nós estamos nos comprometendo
com a construção diária do Reino, através do
seguimento de Jesus.
A segunda parte do trecho de hoje insiste na
necessidade de perseverança na oração. Faz
contraste (e não comparação!) entre Deus e o
amigo humano. Pois se o “amigo” só atende o
pedido para não ser amolado, Deus é bem
diferente. Ele dará o mais importante - o
Espírito Santo, com todos os seus dons, àqueles
que o pedirem! Peçamos as coisas pequenas - mas
importantes - necessárias para a nossa vivência
diária, mas saibamos também pedir os grandes
dons do Reino, o perdão, o pão da vida, a
misericórdia sem limites, que Deus jamais
negará!
Pe. Tomaz Hughes, SVD
E-mail: thughes@netpar.com.br
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