Theresa Catharina de Góes Campos

 

CRIME DE LESA-GASTRONOMIA

 

Tereza Halliday – Artesã de Textos

 

No mês de junho, saí provando, de padaria em padaria e em restaurantes que oferecem cardápio regional, duas comidas de milho que, um dia, foram iguarias da culinária pernambucana: a canjica e a pamonha. Tentei padarias de grife, padarias modestas e várias metidas a besta, com placas “Delicatessen”, mas onde não se vende doces e salgadinhos realmente delicados. Nutria a esperança de que, em alguma delas, de qualquer nível, a terceirização fosse bater nas mãos de uma Dona Maria de notório saber culinário, mesmo que ela não soubesse dizer se canjica se escreve com j ou com g. Parece que a última perita fazedora de canjica autêntica e saborosa foi se embora pra Pasárgada. 

 

Deve haver alguma honrosa exceção à farrapagem das canjicas e pamonhas nesta cidade. Infelizmente, só encontrei anguzinho vasqueiro ao qual afixam a etiqueta “canjica”. É como produzir vinho espumante de quarta categoria e chamar de “Champagne”. Falsificação, caso para Procon, crime de lesa-gastronomia. Muitos comerciantes nem sabem que estão a cometê-lo.

 

Economiza-se no leite de coco, no sal, no açúcar, usa-se mistura pronta de caixa e o resultado é uma papinha amarela querendo passar por canjica. Nem cara de canjica tem, pois a verdadeia cor e textura se perdeu no avacalhamento da receita. Canjica de mesmo é feita de milho verde, resulta em cor amarela bem clarinha esverdeada e, uma fatia cortada a faca, balança como geleia. É de confecção trabalhosa, requer mexer com colher de pau por uma hora inteira, depois de levantar ponto de fervura.  Prato fino.

 

Por sua vez, a imensa maioria das pamonhas de agora, só tem cara de pamonha: a capa de palha de milho. Lá dentro, gosto de sabão, ou desenxabida. Algumas pamonhas de forno ainda salvam a Pátria e dão prazer ao paladar. Mas, as de invólucro de palha vão de mal a pior. Perdeu-se o saber do sabor quando se trata de canjica nordestina e de pamonha. O canjiquicídio é culposo, sem intenção de matar. Mata por ignorância ou desídia. Muitos já nem sabem distinguir que se trata de falsificações. Mas não se deve permitir o uso do nome canjica em produto que seja imitação grosseira do original.

 

A embromação com esses dois quitutes da culinária nordestina desvirtua nosso patrimônio cultural - que inclui bem mais do que o bolo de rolo. Os chefs que, por sua criatividade e competência, têm feito do Recife um pólo gastronômico respeitável, podem muito bem defender e promover a canjica e a pamonha de qualidade. Que esses dois pratos regionais sejam autênticos, honestos, bem preparados.

 

Não precisam inventar canjica ao molho de trufas nem pamonha com calda de amêndoas. Clamamos pelo sabor puro, simplesmente canjica e pamonha, “manjar dos deuses” das cozinhas caseiras de um passado gastronômico não muito distante. Ao lado de “Salvem os baobás”, as baleias, os pés de mangaba, os coqueiros, os manguezais, urge acrescentar o brado: Salvem a canjica e a pamonha!  (Diário de Pernambuco, 5/07/2010, p.A-7).

Tereza Lúcia Halliday, Ph.D.
Artesã de Textos
www.terezahalliday.com


De: Tereza Lúcia Halliday
Data: 5 de julho de 2010 21:35
Assunto: Re: na 2a. linha do 3º parágrafo de seu artigo ESPETACULAR, pertinente e de alto nível, tenho a ousadia de solicitar revisão na digitação ("canjica de verdade " ou "canjica mesmo"Fwd: Artigo quinzenal - Perdeu-se o saber o sabor
Para: Theresa Catharina de Goes Campos



Therezita:

Mais uma vez agradeço seu olho de lince.
Contudo, no caso apontado, trata-se de uma expressão da infância, no interior (Caruaru): "de mesmo" significa de verdade e é antônimo "de mentira", ou seja, respectivamente real e falso.

Meus contemporâneos pernambucanos sabem do que se trata.

Como menina enriquecida pela moradia em vários estados do Brasil, talvez você não foi exposta a essa expressão em Pernambuco.

Quando se ia contar uma história, o interlocutor incrédulo dizia: "De mesmo, mesmo, mesmo?" OU seja, "de verdade?"

Com carinho,
Tereza Lúcia.

 

Jornalismo com ética e solidariedade.