Theresa Catharina de Góes Campos

  MEU PAI, O AVIÃO E OS ANJOS

Meu pai gostava de contar histórias engraçadas quando estava com os amigos e colegas, demonstrando, com palavras espirituosas e riso fácil, como ele apreciava fazer brincadeiras, em diversas situações. Muitos desses casos eram relatos fiéis de episódios e acontecimentos reais. Na infância, já adolescente ou como adulto, não perdia uma ocasião de pregar uma peça inocente, uma armadilha qualquer... Até um comentário jocoso sobre alguém e suas reações inesperadas, uma conclusão humorística, ou mesmo, um pensamento similar à moral das fábulas. Não esquecia uma travessura cometida ainda na infância, durante a Missa dominical em Caruaru, quando prendeu, com alfinetes de segurança, as saias amplas e rodadas, umas às outras, de várias senhoras, que repetiam, entretidas e contritas, em voz alta, as orações litúrgicas.

Em algumas ocasiões, lembrava circunstâncias difíceis, ainda que rotineiras, nos vôos do CAN, o Correio Aéreo Nacional, para atender às populações mais carentes, em tantos rincões brasileiros, ou nos desafios para realizar com eficiência os trabalhos de fotogrametria, ou especialmente, nas missões de busca e salvamento, quando o resgate exigia controle e sangue frio, paciência e habilidade excepcionais.

Não faltavam, também, as experiências na Patrulha do Atlântico, quando serviu em Natal (RN), durante a Segunda Guerra Mundial. E as lembranças internacionais, nos muitos vôos do Correio Suez, uma operação de apoio regular ao contingente brasileiro em missão de paz da ONU, com escalas em Lisboa, Roma e na capital egípcia, Cairo.

Nas viagens com os aviões B-17 e B-25 em que iam aos EUA para revisão e substituição de algumas peças, os pilotos americanos comentavam, surpresos e manifestando admiração, ao verem esses bombardeiros ainda sendo utilizados, graças à competência daqueles pilotos da FAB: "Aqui, esses aviões são peças de exibição nos museus..."

Sobre acidentes com desfecho trágico, falava pouco, mas sempre, bastante comovido. Sobre a perda de vidas, ele parecia incapaz de comentar...dizia o mínimo...e se refugiava no silêncio. A morte lhe parecia, com certeza, uma realidade para silenciar. Posteriormente, à medida que o tempo passava, manifestava, com referências breves, a saudade do colega de profissão, ou do amigo que se fora, relembrando um fato, destacando uma característica pessoal. Em minutos, logo silenciava, como se não conseguisse mais continuar...começava outro assunto.

Meus irmãos e eu, desde crianças, fomos instruídos por nossa mãe a não falar de temas trágicos, nem dizer a palavra "bruxa" lá em casa, porque significava "morte", na linguagem metafórica dos aviadores. Deveríamos escolher outro antônimo para "fada" ou feiticeira do bem, porque, conforme explicava, "seu pai não gosta, se sente mal."

Mamãe contava sobre como os dois se conheceram: no Rio de Janeiro, na Missa das 9 horas, num domingo. Ela costumava ir acompanhada de uma jovem empregada. Ele, com as irmãs...na verdade, eram suas primas, porque, ao ficar órfão de mãe aos cinco anos, quando a tia-madrinha se casou, ela e o marido o levaram consigo, para educá-lo na família que estavam iniciando. Aos dois, a quem também iríamos chamar de "avós", meu pai deveu a educação do seu caráter bem formado: os valores e a disciplina como rotina de sua existência, o uso responsável do dinheiro, o cumprimento da palavra empenhada.

Para mamãe e papai, a fé religiosa se mostrou vigorosa, praticada de forma habitual, em todos os momentos, nos sete dias da semana. Suas atitudes, seus gestos e diálogos, revelavam sentimentos sinceros sobre o amor a Deus, a devoção a Nossa Senhora, aos Anjos e Santos.

Um dia, como eu costumava prestar atenção às conversas descontraídas, plenas de humor que meu pai liderava, como um maestro conduzindo o tom dos diálogos, acontecessem em nossa casa ou nas reuniões sociais em outros lugares, me comovi ao saber que, pilotando um avião de grande porte e fazendo uma linha do Correio Aéreo Nacional, houve um incidente grave durante a aterrissagem, por conseguinte, nos instantes e na fase do vôo que aprendi serem os mais perigosos.

Expressando a maior naturalidade, ele recordou que, naquela aeronave com carga total, ao pousar na pista um tanto precária, um dos enormes pneus estourou. Papai sentiu muita dificuldade para controlar o avião, com tanto peso, já experimentando uma sensação de impotência como piloto, quando um segundo pneu estourou. Por segundos, pensou ter uma missão impossível...quando, para sua surpresa, sentiu uma força superior a ele, sustentando, mantendo o equilíbrio de toda a aeronave...Nesse ponto, papai finalizou com simplicidade: "- Se foi Deus, ou foram os Anjos, não sei ao certo. Mas não fui eu que dominei e controlei aquele avião com dois pneus furados! Quando todos desembarcaram, fui olhar... e achei difícil de acreditar no que meus olhos viam: ao examinar cada pneu, encontrei somente alguns poucos, pequenos pedaços de borracha. Não pudemos continuar viagem; restou-nos esperar, sem opção, a chegada de outro vôo, com os pneus substitutos."

Após um momento de silêncio, numa aceitação tácita do relato pelo grupo de ouvintes, pois pareciam atentos e, se não interpretavam da mesma forma que meu pai, escolheram a ele não retrucar...a conversa continuou, os diálogos se sucederam, provavelmente tão convencionais como de hábito, por isso nada mais registrei na minha memória.

Mas foi com aquele episódio que fortaleci a minha crença nos Anjos. Porque compreendi, também, quão profundamente o meu pai, à sua maneira, conduzia sua vida com fé em Deus...e realmente acreditava nos Anjos e Santos. Assim comecei a crer com maior intensidade nos milagres, como fatos extraordinários que não podem ser explicados por critérios e realidades humanas, e sim, como acontecimentos unicamente explicáveis pela intervenção divina, sendo os Anjos os Seus mensageiros. Quando tudo parece perdido, eles vêm em nosso auxílio...acontecendo os milagres, por incumbência de Deus!

Com aquela narrativa de papai, compreendi, de uma vez por todas, numa atitude espiritual de crença definitiva, que eu tinha a meu lado - sempre -, assim como todas as pessoas, o meu Anjo da Guarda... invisível e silencioso apenas em termos humanos e concretos, porque vivo e atuante, como divino mensageiro capaz de realizar proezas e façanhas para me defender e salvar.

Theresa Catharina de Góes Campos
São Paulo, 7 de julho de 2010

NOTAS:

Demorei a escrever sobre o assunto principal desse texto porque fomos educados por Mamãe e Papai a respeitarmos as conversas dos adultos, orientados a não ouvir o que não deveríamos, nem participarmos desses diálogos, a não ser que um adulto nos chamasse ou nos fizesse uma indagação. Penso que ambos não gostariam de saber sobre esse meu ato de desobediência...e com a agravante de relatar a outros, divulgando sem autorização, o que poderiam questionar, talvez até me convencendo a duvidar de minha memória. Tenho convicção, arraigada no íntimo, de que reproduzi com fidelidade aos fatos e às palavras, porque cultivei tais lembranças, conservando todas como preciosas recordações, autêntico tesouro de nossa vida familiar.

Mas talvez a maior razão para não registrar esse acontecimento de profunda dimensão espiritual, antes da morte de Papai (2000) e Mamãe (2008), tenha sido meu temor de receber um eventual pedido, de um deles ou de ambos, motivados por um sentimento educado de pudor, para eu não fazer esse relato íntimo sobre meu pai, uma declaração de sua fé, que considero tão comovente e simples quanto verdadeira.

Theresa Catharina

P.S.

Anos depois, li com muito encantamento, confirmando e reforçando minha profunda fé, o livro do pastor evangélico Billy Graham, intitulado "Anjos: Agentes Secretos de Deus", que vendeu mais de um milhão de exemplares nos EUA.
A obra narra as experiências do famoso pregador, com os seres celestiais. Convencido de que nos momentos de grande necessidade foi auxiliado pelos anjos, afirma: A falange invisível de Deus está mais bem organizada do que qualquer exército humano, ou de seres malignos. Os anjos pensam, sentem, têm vontade e manifestam emoções. Eles são agentes divinos que podem agir com formas visíveis ou invisíveis, de acordo com a vontade do nosso Criador. Os anjos guiam, confortam e ajudam os filhos de Deus diante do sofrimento e das lutas terrenas.

Editora: Record
Autor: BILLY GRAHAM
ISBN: 8501011231
Origem: Nacional
Ano: s.d.
Edição: 1
Número de páginas: 135

Uma leitura sobre acontecimentos extraordinários, que vai ampliar nossa visão para a realidade deste mundo... porque abrirá os olhos de nossa alma, sob a perspectiva da espiritualidade, uma força que não deve ser ignorada.
Theresa Catharina
São Paulo, 28 de julho de 2010

De: VICTORIA ELIZABETH BARROS
Data: 28 de julho de 2010 23:20

Querida irmã Therezita:

Fiquei bastante emocionada ao ler essa bela e singela história sobre o nosso querido pai aviador , contando detalhes que eu, como filha mais moça, não tinha guardado nas minhas recordações de infância, mas tudo isso nos faz bem relembrar e tornar mais presente no nosso dia a dia nossos entes queridos que já partiram e deixaram saudades...

Ainda bem que temos na família uma escritora, com boa memória e que pode deixar registrados esses belos exemplos para as futuras gerações, um verdadeiro testemunho de fé , coragem e humildade.

Victoria


De: Theresa Catharina de Goes Campos
Data: 7 de julho de 2016
Para: REYNALDO DOMINGOS FERREIRA

Estimado Reynaldo:
Na data do aniversário natalício de papai, agradeço a generosidade de seu encaminhamento, ao repassar o texto em que relembro a fé (simples e vigorosa) demonstrada por ele em muitos episódios de sua vida, pessoal e profissional, como Oficial-Aviador da FAB (a primeira turma de Oficiais-Aviadores do recém-criado Ministério da Aeronáutica).

Abraços cordiais da amiga
Theresa Catharina

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De: Reynaldo Ferreira
Data: 7 de julho de 2016

Repassando o belo texto da jornalista Theresa Catharina: MEU PAI, O AVIÃO E OS ANJOS


De: Milza Guidi
Data: 7 de julho de 2016

Que lindo, Theresa. Parabéns pelo delicioso e comovente texto!
Beijos,
Milza Guidi


De: Joao Vianey de Farias
Data: 8 de julho de 2016

Theresa,

Compartilho o comentário recebido de Armando (meu amigo de adolescência, hoje residente em Mossoró/RN, onde é Promotor de Justiça. Um cidadão muito inteligente e culto.

Um abraço fraterno,
João Vianey de Farias

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De: pjarmando
Data: 8 de julho de 2016

Amigo:
a bela história narrada, que você me envia, é imensamente educativa, do ponto de vista espiritual, independentemente da religião - algumas dizem anjos da guarda; outra, espíritos guardiões ou protetores - acredito que eles são o longo braço do Deus-Pai Criador, que zela por suas criaturas, tanto mais acreditemos e confiemos nele.

Grato pela mensagem.
Armando

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De: Theresa Catharina de Goes Campos
Data: 8 de julho de 2016

Estimado João Vianey de Farias:

A você e a seu amigo Dr. Armando, Promotor de Justiça, sinto-me grata pela acolhida generosa a meu texto. De fato, penso que não devemos esquecer a proteção dos Mensageiros Divinos em nossa vida, principalmente nos momentos de perigo. Em uma sociedade contemporânea que não se envergonha de valorizar o materialismo egoísta, sinto-me feliz por encontrar pessoas capazes de apreciar uma crônica que homenageia a presença dos Anjos na vida preciosa de meu dedicado pai.

Abraços cordiais de
Theresa Catharina


De: João Vianey de Farias
Enviada: Quarta-feira, 6 de Julho de 2016

Trata-se de um texto de amiga escritora que reside em Brasília e sempre compartilha conosco escritos belíssimos. Considerei esse muito interessante e compartilho com vocês....

Um abraço fraterno,
João Vianey de Farias


De: Agnes Marta Pimentel Altmann
Data: 9 de julho de 2016

Estimada Catharina:
Felicitações. Dos nossos pais, por terem sido homens que serviram ao Brasil com integridade e honestidade, podemos manter lembranças eternas.
Abraços,
Agnes


De: Elizabeth Barros
Data: 27 de agosto de 2016

Lindo, Tia, gostei muito de ler este texto da senhora sobre o vovô.
O Vovô era uma pessoa memorável e bastante especial. Está sempre em meus pensamentos e lembranças !
Beijos de sua sobrinha,
Elizabeth


De: Elizabeth Barros
Data: 25 de novembro de 2016

Lindo texto, tia, parabéns! Sempre que posso, releio. É muito especial.
Um beijo da sobrinha Elizabeth

 

Jornalismo com ética e solidariedade.