UM HOMEM QUE GRITA
Prêmio Especial do
Júri do Festival de Cannes deste
ano, Um Homem que Grita, de
Mahamat-Saleh Haroun, é um filme
excepcional porque, além de ter
apurada linguagem cinematográfica,
de estilo clássico, foi rodado no
Chade, país africano que se encontra
submetido a uma incessante guerra
civil desde a sua independência na
década de sessenta do século
passado.
Haroun, seu
realizador, de cinqüenta anos,
nascido em Abéché, Chade, mas que
estudou cinema e jornalismo na
França, para onde se mudou ainda
jovem, já havia recebido também o
Prêmio Especial do Júri do Festival
de Veneza por Darath, Estação
Seca em 2006. Em 1999, ele rodou
o seu primeiro filme Bye Bye
Africa, um documentário. E, em
2002, mostrou, na Quinzena dos
Realizadores, de Cannes, Abouna,
um drama familiar em que dois irmãos
se veem privados da proteção do pai,
que abandona o lar.
Um Homem que Grita
é, assim, o quarto longa-metragem de
Haroun, que também escreveu o
roteiro, inspirado, ao que se deduz,
no episódio bíblico (Antigo
Testamento) do sacrifício de
Abraão, posto à prova, por
determinação divina, de oferecer em
holocausto seu único filho Isaac.
Como em Darath, Estação Seca
e Abouna, a história se passa
no Chade, nos dias atuais. Adam
(Youssouf Djaoro), de sessenta anos,
antigo campeão de natação, é
professor na piscina em um hotel em
N´Djamena.
Com a repentina
compra do hotel por investidores
chineses, muitas mudanças ocorrem na
administração do estabelecimento que
começa a despedir empregados, como
Davi (Marius Yelolo), antigo e
experiente cozinheiro. É do diálogo
de Adam com Davi que se extrai a
referência direta ao texto bíblico,
quando o segundo, instado pelo
primeiro a lutar a fim de permanecer
no emprego, lhe responde : -
Embora sendo Davi,
eu não tenho forças para lutar
contra esse Golias!...
Não vai tardar muito
para que Adam receba também a
informação de que deverá ceder seu
lugar de professor ao filho Abdel
(Dioucounda Koma), ficando ele como
guarda do portão do hotel,
encarregado de levantar ou baixar a
cancela para entrada ou saída de
veículos do estacionamento central
diante do edifício. Cioso de sua
condição de campeão de natação, Adam
vê nisso um desmerecimento ou, pior,
sua degradação no plano social.
A guerra civil se
intensifica no país. Os rebeldes
ameaçam o poder. Em reação, o
governo, pelo rádio, apela à
população a fim de que colabore com
o “esforço de guerra”, o que
significa: contribuição em dinheiro
ou oferecimento de filho em idade de
ir para a frente de combate. Forçado
pelo líder de seu bairro (Emile
Abossolo M´bo) a colaborar, Adam,
sem ter dinheiro, entrega o filho e,
de imediato, reassume, na piscina, o
seu lugar de professor.
Como explicou Haroun,
na Embaixada da França, em Brasília,
onde seu filme foi exibido, em
sessão especial, nos países
africanos, os filhos pertencem não
aos pais, mas à comunidade, o que,
de certa forma, explica, mas não
justifica, a atitude de Adam, pois,
o grito dele é de culpabilidade.
Para nós, brasileiros, o tema não é
novo, já que foi tratado por Machado
de Assis no romance Yayá Garcia,
que Haroun não deve conhecer.
Durante a Guerra do Paraguai,
Valéria, viúva de um desembargador,
ao pressentir o seu fim próximo, e
percebendo que seu filho Jorge,
desmotivado com a profissão de
advogado, tornou-se um desocupado,
inútil, um dandy da Rua do
Ouvidor, não vê outra saída senão
induzi-lo a se alistar, como
voluntário, para combater em
Assunção. No caso, Valéria joga com
a sorte: se o filho morresse na
guerra, ela também já estaria morta
ou, se ele se salvasse, teria uma
carreira de prestígio social a
seguir, a de militar, o que
acontece.
O que é notável na
película de Haroun é o tom de
despojamento e, antes de tudo, de
sinceridade com que foi rodada, numa
linguagem clássica de uso de longos
planos-sequência e travellings
como instrumentos de narrativa,
esta pontuada mais pelo silêncio,
que substitui a música, por ele
parcialmente empregada - de autoria
de Wasis Diop -, como na magnífica
cena final, em que se conjuga com
uma expressiva mudança na tonalidade
da fotografia de Laurent Brunet. Dos
atores, pode-se dizer que, dadas as
circunstâncias em que vivem e em que
atuam, todos, embora primários,
conseguem transferir muito sentido
dramático (ou mesmo trágico) para as
suas respectivas personagens.
REYNALDO DOMINGOS
FERREIRA
ROTEIRO, Brasília, Revista
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FICHA TÉCNICA
O HOMEM QUE GRITA
UN HOMME QUI CRIE
França / Chade / Bélgica / 2010
Duração – 92 minutos
Direção – Mahamat-Saleh Haroun
Roteiro – Mahamat-Saleh Haroun
Produção – Florence Stern
Fotografia – Laurent Brunet
Trilha Sonora – Wasis Diop
Edição – Marie-Hélène Dozo
Elenco – Youssouf
Djaoro (Adam), Dioucounda Koma
(Abdel), Emile Abossolo M´bo (Líder
do bairro), Hadje Fatime N'Goua
(Mariam), Marius Yelolo (Davi),
Djénéba Koné (Djénéba)
"O personagem do filho, no
longa-metragem, não vê humilhação na
violência social que foi feita ao
pai. A ausência de compaixão, às
vezes, é o que mais machuca. O
esquecimento até pelos mais próximos
causa sofrimento."
Mahamet-Salet Haroun, diretor do
filme UM HOMEM QUE GRITA, premiado
no Festival de Cannes.