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Reflexões Homiléticas para Março de 2011
Pe. Tomaz Hughes, SVD
E-mail:
thughes@netpar.com.brNONO DOMINGO COMUM
(06.03.11)
Mt 7, 21-27
“Só entrará no Reino do Céu quem põe em prática
a vontade do meu Pai”
O texto de hoje conclui o grande discurso da
vida cristã que é o Sermão da Montanha. Depois
de dar-nos as orientações para uma vida de
seguimento e discipulado, Jesus termina
insistindo na necessidade de a nossa fé nos
levar à prática das obras do Reino de Deus. Não
adianta uma fé que consiste somente em adesão
intelectual às verdades sobre Jesus, pois é
necessária uma fé que nos leve a construir a
“justiça do Reino” na nossa sociedade. A Carta
de Tiago vai retomar esse tema quando o autor
escreve que “fé sem obras, é morta em si mesma”
(Tg 2, 17).
O texto se divide em duas partes - a primeira,
vv. 21-23, adverte contra uma religião, mesmo no
nome do seguimento de Jesus, que não compromete
com a luta em favor da justiça. Parece que na
comunidade de Mateus, por volta do ano 90, havia
uma tendência entre alguns de invocar o nome de
Jesus, profetizar, fazer milagres, expulsar
demônios, e ir atrás de manifestações
extraordinárias do Espírito, sem que se
comprometessem com a construção do Reino da
Justiça. As palavras de Jesus para essas pessoas
soam duras - chama-as de malfeitores, pois não
se empenham na realização do projeto d’Ele, se
vangloriam dos seus milagres e dons, que chamam
a atenção, mas não brotam de uma vida de
comprometimento com o Reino de Deus.
É atual esta advertência do texto, pois hoje em
dia também muitas vezes existe a tendência de
buscar uma religião de “sinais” e “milagres”, de
manifestações aparentemente milagrosas do
Espírito, mas que frequentemente esconde uma
opção religiosa individualista e intimista, sem
consequências para a construção da sociedade que
Deus quer. Assim, a religião torna-se alienada e
alienante em lugar de ser expressão de
discípulos/as que são fermento na massa, sal da
terra, luz do mundo.
A segunda parte do texto, vv. 24-27, usa uma
imagem bastante comum na Palestina de Jesus - as
enchentes repentinas que resultavam das chuvas
torrenciais da época do inverno, e que causavam
estragos nas vilas e roças. Uma imagem, aliás,
muito fácil a compreender no Brasil do nosso
tempo, visto a frequência de desastres ligadas à
questão de inundações. Usa a imagem da
construção de casas - uma feita com alicerce,
outra sem. De fato, a falta de um alicerce firme
não se faz sentir no tempo de bonança. As
construções parecem igualmente sólidas. Mas, na
tempestade, nas enxurradas e enchentes, logo se
revela qual é a casa com alicerce, e qual carece
de um fundamento sólido. É nessa hora que se
revela tudo. Assim também com a vida cristã -
enquanto tudo corre bem, não se manifesta a
presença ou a falta do alicerce. Mas, quando
batem as ventanias da vida, quando acontecem as
enxurradas que ameaçam levar embora o que nós
construímos, então se revela a presença ou a
ausência de um alicerce. Isso pode acontecer no
casamento, na vida religiosa e sacerdotal, no
empenho pastoral. Enquanto tudo corre bem, não
há problema. Porém, é só uma vida com fundamento
forte que resistirá às pressões dos contratempos
da caminhada! Mateus deixa bem claro o que deve
ser o alicerce de uma vida cristã - Jesus e o
seu projeto de vida, manifestado nas palavras do
Sermão da Montanha. Uma vida cristã, uma vida
missionária, uma vida religiosa construída sobre
qualquer outro alicerce, está condenada a
desmoronar. Paulo, mais tarde, advertirá a elite
da comunidade de Corinto, tentada a substituir
Jesus com a filosofia grega “que ninguém ponha
outro fundamento a não ser aquele que já foi
posto, Jesus Cristo” (1Cor 3, 11).
Portanto, somos convidados a fazer uma revisão
honesta e sincera da nossa vida, em todos os
sentidos. Qual é o alicerce sobre o que construo
a minha vida - sobre algo movediço, que não
resiste à prova do tempo e do desgaste diário,
ou sobre o único alicerce que é rocha firme,
inabalável e permanente - Jesus de Nazaré, e o
seu projeto do Reino. A minha religião se baseia
só no ouvir e no falar, ou me leva a um
engajamento real para que o mundo se torne
aquele que Deus sonha? O texto de hoje reforça
uma outra frase lapidar do Sermão: “Se a justiça
de vocês não for maior do que a dos escribas e
fariseus, não entrarão no Reino dos Céus” (Mt 6,
20).
Fortaleçamos o alicerce da nossa vida cristã,
fundamentando-a cada vez mais em Jesus e nas
suas palavras, para que possa aguentar as
enxurradas, enchentes e ventanias que a vida
traz. Outro caminho é receita para o desastre!
PRIMEIRO DOMINGO DE QUARESMA (13.03.11)
Mt 4, 1-11
“Não só de pão vive o homem”
Os três Sinóticos contam a história das
tentações de Jesus logo depois do Batismo -
Marcos de uma forma resumida, Mateus e Lucas de
uma maneira mais elaborada. Devemos lembrar que
estes relatos procuram expressar uma experiência
interior de Jesus, e não devem ser interpretados
ao pé da letra, de uma maneira fundamentalista.
Ligando as tentações ao batismo de Jesus, os
evangelistas frisam que a sua experiência é como
a nossa própria experiência - nós também temos
compromisso com o projeto de Deus, individual e
comunitariamente; mas, entre o nosso compromisso
e a sua concretização de uma maneira coerente
com o seguimento de Jesus, existem muitas
tentações, que exigem discernimento!
O texto diz que Jesus era “conduzido pelo
Espírito ao do deserto” (v. 1). O Espírito não
conduz Jesus à tentação, mas O acompanha nas
tentações. E como o Espírito Santo não O
abandonou no momento de crise, mas lhe dava
força, tampouco vai nos abandonar nos momentos
de crise e discernimento.
O início das tentações se dá no deserto. Mateus
quer evocar a experiência de Israel, pois para
ele Jesus era o Novo Moisés, e a Igreja o Novo
Povo de Deus; e, podemos lembrar que no deserto,
Moisés e o povo foram tentados e sucumbiram –
mas, Jesus é tentado e vence!
Olhando bem as tentações, podemos encontrar
nelas três grandes tentações da época
pós-moderna, também para a vida cristã: as do
“Ter”, do “Poder” e do “Prazer”. As tentações de
Jesus não são para coisas que são más em si, mas
que causariam desvios do plano do Pai. Não é
diferente com a vida cristã hoje - raramente
somos tentados a assumir algo mau em si; mas,
sim, a fazer opções para coisas boas, mas que
seriam incoerentes com o projeto de Deus para
nós! A tentação vem de forma sutil, disfarçada -
vale notar que nas três tentações o diabo não
nega a identidade e missão de Jesus, mas a
confirma “Se és Filho de Deus”. Também, para
nós, a tentação pode se apresentar como algo que
não nega a nossa identidade cristã, mas que é
condizente com ele, enquanto na verdade não é.
Por isso, a necessidade da “vigilância”, para
não cairmos em tentação, uma advertência
constante dos evangelhos. Quaresma pode ser
tempo privilegiado deste discernimento
individual e comunitário.
Primeiro, Jesus era tentado a mandar que uma
pedra se tornasse pão. Jesus veio para doar-se
como o Servo de Javé - mas logo, no momento do
primeiro sacrifício por causa da sua opção, ele
é tentado a esquivar-se! É a tentação do
“prazer” hoje - entre as mais comuns, em um
mundo que prega a satisfação imediata dos
desejos, uma sociedade que cria necessidades
falsas através de sofisticadas campanhas de
propaganda. Estamos em uma sociedade de
individualismo, onde a regra dominante é “se
deseja, faça!” Uma sociedade onde o sacrifício,
a doação e a solidariedade são considerados como
a ladainha dos perdedores! As consequências
dessa visão são bem exploradas como tema da
Campanha da Fraternidade deste ano - a
destruição do Planeta e da vida que existe nele.
Jesus não cai na tentação - a resposta de Jesus
é contundente: “Não só de pão vive o homem” (v.
4). Jesus enfrenta essa tentação - e as outras -
com citações tiradas de Dt 6-8, que versam sobre
a primazia da Palavra de Deus como o alimento do
seu povo na caminhada. Jesus aqui dá o
verdadeiro sentido do seu jejum - Deus é o único
sustento da verdadeira vida. Ele, possuído pelo
Espírito de Deus, confia no seu Deus para
sustentá-lo. A obediência de Jesus como Filho e
Servo (Hb 5, 7-8), simbolizada pelo jejum, é
agora verbalizada. Jesus confia que o seu Pai
vai sustentá-lo em todos os seus sofrimentos e
tribulações, provenientes de uma vida coerente
com a sua vocação. Uma bela lição para nós, nos
momentos difíceis da nossa caminhada cristã!
A pessoa humana, para Jesus, vive certamente de
pão - mas não só! Jesus não é sádico nem
masoquista, contra o necessário para uma vida
digna. Salienta muito bem que não é somente a
posse de bens (simbolizados pelo pão) que traz a
felicidade, mas a busca de valores mais
profundos, como a fidelidade à vontade de Deus,
a justiça, a partilha, a doação, a solidariedade
com os sofredores. Não faz nenhum contraste
falso entre bens materiais e espirituais -
precisamos de ambos para que tenhamos a vida
plena! Com esta frase, Jesus desautoriza tanto
os que buscam a sua felicidade e a solução dos
problemas do mundo na simples satisfação das
necessidades materiais, como os que dispensam a
luta pelo pão de cada dia para todos - duas
tendências não ausentes entre nós cristãos.
A segunda tentação é de confiar no poder - fazer
milagre diante de milhares, para demonstrar o
seu poder. A tentação do poder é tremendamente
insídia em nós, na sociedade e nas Igrejas. Há
mais de um século, um estadista e historiador
católico inglês, Lord Acton, advertiu que “todo
o poder tende a corromper, e o poder absoluto
corrompe absolutamente!” Jesus veio como Servo,
assumiu a missão do Servo de Javé, mas é tentado
a confiar mais no poder, no extraordinário, e
não no Deus Libertador e nos pobres e humildes.
Quantas vezes a Igreja confiava mais no poder
secular do que na fragilidade da Cruz, para
“evangelizar”! Quanta aliança entre a cruz e a
espada - a América Latina que o diga! E continua
corrente esta tentação - de confiar mais nas
concentrações nos estádios cheios, com
“milagres” e “prodígios”, do que nos grupos
pequenos e humildes das comunidades cristãs,
dirigidos por pessoas simples, sem pretensões,
espalhados pelo Brasil afora! Somos todos
capazes de cair nesta tentação - não a de ter o
poder para servir, mas de confiar no poder deste
mundo, aparentemente mais forte e eficaz do que
a fraqueza de Deus, assim contradizendo o que
Paulo afirmava com força “A fraqueza de Deus é
mais forte do que os homens” (1Cor 1, 25) e
ainda: “Deus escolheu o que é fraqueza no mundo,
para confundir o que é forte” (1Cor 1, 27).
Jesus, que veio para servir e não para ser
servido, que veio como o Servo de Javé e não
como dominador, teve que clarificar a sua
vocação e despachar o diabo, o tentador, com a
frase “Não tente o Senhor seu Deus!” (v. 7)
A terceira tentação pode ser vista como a do
“ter”. Não que o dinheiro seja algo ruim - sem
ele não se vive! Torna-se um mal quando chega a
ser um ídolo - a fonte de nossa
auto-suficiência! É ruim quando se fundamenta a
vida sobre ele. Jesus não é tentado a ser um
ricaço - mas é tentado no sentido de fugir da
sua vocação de ser o messias dos pobres, tão
esperado pelos “anawim”, os pobres de Javé, e
profetizado por Segundo-Isaías, Zacarias e
Sofonias. É tentado a acreditar mais no poder da
riqueza do que na pobreza dos seus futuros
discípulos de Galiléia.
De novo, algo muito semelhante com a nossa
situação atual. Nós temos que viver o nosso
compromisso no mundo pós-moderno da globalização
do mercado, do neo-liberalismo, do “evangelho”
do mercado livre. Diariamente, os meios da
comunicação de massa trazem para dentro das
nossas casas - inclusive casas religiosas - a
mensagem de que é necessário “ter mais”, e não
importa “ser mais!” Como sempre, a tentação vem
de forma atraente - até a Igreja pode cair na
tentação de achar que a simples posse de bens,
que poderão ser usados em favor da missão,
garantirá uma ação mais evangélica. Somos
tentados a não acreditar na força dos pobres e
simples, de não seguir as pegadas do carpinteiro
de Nazaré. Quantas vezes nós somos tentados a
confiar no poderio do dinheiro, como se a compra
de instrumentos e aparelhos cada vez mais
sofisticados garantisse a evangelização. É certo
que devemos utilizar o que a ciência moderna nos
providencia, mas, sem confiar nisso como o
fundamento da nossa missão. Jesus enfrentou essa
mesma tentação - Ele que veio para ser pobre com
os pobres, para manifestar o Deus que opta
preferencialmente por eles, é tentado a confiar
nas riquezas. Para o diabo - e para o nosso
mundo que idolatra o bem-estar material e o
lucro, mesmo às custas da justiça social - Jesus
afirma: “Você adorará o Senhor seu Deus, e
somente a Ele servirá” (v. 10)
Realmente, podemos nos encontrar nas tentações
de Jesus. O “ter”, o “poder” e o “prazer” são
coisas boas, quando utilizados conforme a
vontade de Deus, mas altamente destrutivas
quando tomam o lugar de Deus em nossa vida!
Jesus teve que enfrentar o que nós hoje
enfrentamos - o “diabo” que está dentro de nós,
o tentador que procura nos desviar da nossa
vocação de discípulos. O texto nos coloca diante
da orientação básica para quem quer ser fiel à
sua vocação cristã: “Você adorará o Senhor seu
Deus, e somente a Ele servirá” (v. 10)
O texto nos ensina que Jesus, Filho e Servo,
vencerá a hostilidade à sua missão pela sua fé
obediente, e libertará as pessoas dominadas pela
força do mal. Mas, a tentação não era de um
momento só - voltará mais vezes na vida de
Jesus, como na nossa. Aparecerá de novo no
caminho de Cesaréia de Filipe, no Horto das
Oliveiras e especialmente na Paixão - a suprema
investida do diabo! Diante das várias opções
disponíveis, diante dos diversos modelos de
messianismo, Jesus teve que discernir a vontade
do Pai. É o desafio da vida cristã hoje.
SEGUNDO DOMINGO DE QUARESMA
Mt 17, 1-13
“Este é o meu Filho amado, que muito me agrada”
Esse trecho vem logo após o diálogo com Pedro e
os discípulos sobre quem era Jesus e como
deveria ser o seu seguimento: “Se alguém quer me
seguir, renuncie a si mesmo, tome cada dia a sua
cruz, e me siga” (Mt 16, 24). Começando a
passagem com as palavras “seis dias depois,”
Mateus quer ligar estreitamente o texto com a
mensagem anterior sobre a cruz.
Neste momento Jesus “subiu à montanha” (v. 1), e
aparecem Moisés e Elias, símbolos da Lei e dos
Profetas. Assim, Mateus mostra que Jesus está em
continuidade com as Escrituras, isto é, o
caminho que Jesus segue está de acordo com a
vontade de Deus. Os dois personagens, tanto
Moisés como Elias, eram profetas rejeitados e
perseguidos no seu tempo - Mateus aqui vislumbra
o destino de Jesus, de ser rejeitado, mas também
de ser reivindicado por Deus. E Pedro faz uma
sugestão descabida: “Senhor, é bom ficarmos
aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma
para Ti, uma para Moisés e outra para Elias” (v.
4). Claro, era bom ficar ali, num momento
místico, longe do dia-a-dia, da caminhada, das
dúvidas, dos desentendimentos, da luta. Quem não
iria querer? Mas,não é uma sugestão que Jesus
pudesse aceitar. Terminado o momento de
revelação, Jesus estava sozinho, e “desceram da
montanha” (v. 9). Por tão gostoso que pudesse
ser ficar no Monte Tabor, era preciso descer
para enfrentar o caminho até o Monte Calvário! A
experiência da Transfiguração está intimamente
ligada com a experiência da cruz! Quem sabe,
talvez a força da experiência do Tabor desse a
Jesus a coragem necessária para aguentar a
experiência bem dolorida do Calvário!
É interessante que a Exortação Apostólica “Vita
Consecrata” usa a imagem da Transfiguração como
paradigma para a vida consagrada - mas, por
extensão, também serve para a vida cristã de
todos os batizados. O Papa João Paulo II sugere
que os religiosos (as) - e aqui aplicamos a
todos os cristãos - devem subir Monte Tabor para
serem transfigurados, para depois descerem para
“lavar os pés” dos irmãos e irmãs! Uma linda
imagem! Todos nós - seja qual for a nossa
vocação - precisamos de momentos de oração
profunda, de união especial com Deus. Mas, estas
experiências não são “intimistas” - nos
aprofundam a nossa fé e o nosso seguimento, para
que possamos seguir o exemplo d’Ele que lavou os
pés dos discípulos: “Eu, que sou o Mestre e o
Senhor, lavei os seus pés; por isso vocês devem
lavar os pés uns dos outros” (Jo 13, 14).
Também este trecho pode nos ensinar a valorizar
os momentos de “Tabor”, os momentos de paz, de
reflexão, de oração. Pois, se formos coerentes
com a nossa fé, teremos muitas vezes de fazer a
experiência de “Calvário”! E somos fracos demais
para aguentar esta experiência - por isso
busquemos forças na oração, na Palavra de Deus,
na meditação, - mas sempre para que possamos
retomar o caminho, como fizeram Jesus e os três
discípulos! E para os momentos de dúvida e
dificuldade, o texto nos traz o conselho melhor
possível, através da voz que saiu da nuvem:
“Este é o meu Filho, que muito me agrada.
Escutem o que ele diz!” (v. 5). Façamos isso, e
venceremos os nossos Calvários!
TERCEIRO DOMINGO DE QUARESMA (27.03.11)
Jo 4, 5-42
“Aquele que beber desta água que eu vou dar,
esse nunca mais terá sede”
O texto de hoje, quase um capítulo inteiro, é
tirado do Quarto Evangelho, e, portanto, tem que
ser interpretado levando em conta as
características do Evangelho de João - entre
eles, o uso de símbolos (pessoas, eventos,
coisas e números) e de “mal-entendidos” para dar
oportunidade para uma explicação mais profunda
sobre a pessoa e missão de Jesus. O capítulo é
tão denso, quer é impossível fazer jus ao seu
conteúdo numa curta reflexão.
O relato vem da Comunidade do Discípulo Amado,
onde certamente havia muitos samaritanos, vistos
como impuros pelo judaísmo oficial. Embora os
Sinóticos desconheçam qualquer ministério de
Jesus entre os samaritanos, a Samaria foi palco
de um dos primeiros trabalhos missionários da
Igreja primitiva (At 1, 8; 8, 1-25). Os
samaritanos eram descendentes da mistura entre
os Israelitas do Reino do Norte e os migrantes
pagãos, que foram levados à Samaria pelos
Assírios, depois da queda do Reino de Israel em
721 a.C. O segundo livro dos Reis conta que os
Assírios deportaram uma grande parte da
população de Israel e levaram para lá gente de
cinco nações pagãs (2Rs 17, 1-6. 24-41). Essas
pessoas trouxeram a sua religião original, mas
também adotaram o javismo como culto “ao Deus da
terra”, formando assim uma religião com fortes
traços de sincretismo. Os samaritanos aceitaram
somente os cinco livros da Lei, rejeitando os
profetas e toda a ênfase sobre o Templo de
Jerusalém. Isso causou muito conflito com os
Judeus, e no século antes de Jesus o Sumo
Sacerdote de Jerusalém destruiu duas vezes o seu
Templo no Monte Gazirim. Esse contexto histórico
é essencial para entender o diálogo de Jesus com
a mulher sobre os seus “cinco maridos”. Eles
simbolizam os cinco Deuses dos povos que
colonizaram Samaria e “aquele que você tem agora
que não é seu marido” é o javismo sincretista
dos samaritanos, pois “marido” é um símbolo
profético para indicar Javé na sua relação com a
sua esposa, o povo de Israel.
O diálogo segue a técnica típica joanina do
‘mal-entendido” (diálogo com Nicodemos também).
Falando da água, a mulher entende somente água
natural; mas Jesus se refere à sua revelação
divina e ao Espírito Santo, água viva que será
dada a quem aceita Jesus. Pode-se entendê-lo
também como símbolo da água do batismo, que
confere o Espírito Santo, e que é “uma fonte de
água que jorra para a vida eterna” (v. 14).
No debate sobre o local de adoração de Deus,
Jesus demonstra que no Novo Israel (a Igreja) a
localidade não importa, porque o culto nascerá
do Espírito de Verdade. Diante dessa nova
revelação, outros debates casuísticos perdem o
seu sentido! Uma lição para hoje, quando
perdemos tempo discutindo inutilmente se se deve
cultuar Deus na sábado ou no domingo, deste ou
daquele jeito! Frequentemente partimos do que
nos divide, muitas vezes coisas absolutamente
secundárias, em lugar de olhar ao que no une.
A mulher samaritana, diante do encontro com
Jesus, torna-se missionária do seu próprio povo.
A evangelizada torna-se evangelizadora. Não é
possível encontrar-nos com a Vida Nova em Jesus
sem que nos tornemos missionários - não
proselitistas, angariando adeptos para a nossa
confissão religiosa, mas missionários,
alastrando a mensagem do Reino de Deus entre
nós, na construção de um mundo onde todos
“tenham a vida e a vida plenamente” (Jo 10,1 0).
É importante não reduzir este texto a uma
leitura moralizante - como se a mulher fosse da
má fama, e agora se converteu para uma vida
regular! É muito mais profundo. Quem faz a
experiência de intimidade com Jesus, a
encarnação do Deus da vida, necessariamente
entre num processo de conversão, no seguimento
do Mestre, e torna-se missionário da Boa Nova.
Nunca cansemos nessa busca da água viva, pois só
ela pode nos satisfazer. Peçamos com a mulher
“Senhor, dá-nos essa água para que não tenha
mais sede”.
O texto mostra bem como a proposta de Jesus para
os seus seguidores é inclusiva - a mulher
representa os que são excluídos, por motivo de
pobreza, gênero, raça ou religião. Jesus não
aceita a exclusão de quem quer que seja. Até os
discípulos se chocaram quando encontraram Jesus
dialogando com a mulher, pois as suas cabeças
ainda trabalharam com os conceitos de “puro e
impuro”, de “eles e nós”. Jesus veio para acabar
com essas divisões, muitas vezes criadas em nome
da religião e de Deus, com consequencias
desastrosas. O contato com a fonte de água viva
nos impulsiona para a criação de comunidades
alternativas, baseadas na vivência de
solidariedade, paz e justiça, na dinâmica do
Reino de Deus.
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Pe. Tomaz Hughes, SVD
E-mail: thughes@netpar.com.br
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