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De: Tânia Maria
Barros
Data: 28 de fevereiro de 2011 14:28
PESCADOR DE TI
(texto do jornalista Gilberto Dimenstein escrito
especialmente para o livreto do CD ao vivo
"Amigo" de Milton Nascimento)
..................................
Sentados à beira do rio, dois pescadores seguram
suas varas à espera de um peixe. De repente,
gritos de crianças trincam o silêncio.
Assustam-se. Olham para frente, olham para trás.
Nada. Os berros continuam e vêm de onde menos
esperam.
A correnteza trazia duas crianças, pedindo
socorro. Os pescadores pulam na água. Mal
conseguem salvá-las com muito esforço, eles
ouvem mais berros e notam mais quatro crianças
debatendo-se na água. Desta vez, apenas duas são
resgatadas. Aturdidos, os dois ouvem uma
gritaria ainda maior. Dessa vez, oito seres
vivos vindo correnteza abaixo.
Um dos pescadores vira as costas ao rio e começa
a ir embora. O amigo exclama:
- Você está louco, não vai ajudar?
Sem deter o passo ele responde:
- Faça o que puder. Vou tentar descobrir quem
está jogando as crianças no rio.
Essa antiga lenda indiana retrata como nos
sentimos no Brasil. Temos poucos braços para
tantos afogados. Mal salvamos um, vários descem
rio abaixo, numa corrente incessante de apelos e
mãos estendidas. Somos obrigados a cair na água
e, ao mesmo tempo, sair à procura de quem joga
as crianças.
Incrível como os homens às margens do rio
conseguem conviver com os berros. E até dormir
sem sobressaltos. É como se não ouvissem. Se o
pior cego é aquele que não quer ver, o pior
surdo é aquele que não quer escutar.
Descobrimos que os responsáveis pelos afogados
não estão escondidos rio acima. Estão do nosso
lado - e, muitas vezes, somos nós mesmos. São os
afogados morais, gente que não conhece o prazer
infinito da solidariedade. Não conhece o encanto
de estender poucos centímetros de braço e
encostar os dedos nas estrelas.
Tão fácil agarrar uma estrela, refletida no
brilho de quem salvamos por falta de ar.
Veio da Índia a frase do célebre poeta
Rabindranath Tagore sobre por que existiam as
crianças. "São a eterna esperança de Deus nos
homens".
É preciso mesmo infinita paciência, renovada a
cada nascimento, para que se possa conviver com
a apatia cúmplice. Por sorte temos pescadores
que, dia após dia, mostram como as crianças
sobrevivem nos homens. E como é doloroso o parto
de um homem precoce no corpo de um menino.
A voz de Milton é a própria síntese do menino
perdido no adulto; e do adulto perdido no
menino. É a síntese de quem se viu obrigado a
pular na água para pescar a si mesmo. E nunca se
esqueceu e, por isso, não consegue tirar de seus
ouvidos a sensação de que crianças na água
pedindo socorro, são a última voz de quem quase
nunca tem voz.
Gilberto Dimenstein |
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