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HOMENS E DEUSES
Prêmio do Júri do Festival de Cannes do ano
passado, Homens e Deuses, de Xavier Beauvois,
reconstitui, em termos de ficção, os
angustiantes momentos vividos por nove monges
trapistas, que se mantiveram isolados no
mosteiro Atlas, em Tibhirine, perto de Médéa, na
Argélia, antes de serem sete deles assassinados
em circunstâncias não totalmente esclarecidas,
em março de 1996, durante a guerra civil.
O roteiro de Etienne Comar – também produtor do
filme -, adaptado por Beauvois ao seu estilo de
narrativa, não só procura mostrar como os
monges, tidos hoje nos meios católicos africanos
como mártires, se integraram à vida da
comunidade local – prestando aos nativos
assistência educacional, agrícola, médica e
participando de suas solenidades islâmicas –,
como suscita mais dúvidas sobre o final trágico
a que, pelo que se presume, teriam ,
espontaneamente, se submetido.
A dramaturgia de Beauvois, que não se interessa
por religião, mas pelo homem – os cantos
gregorianos e cistercienses funcionam na
película como o coro na tragédia grega -, é
propositalmente ambígua numa série de situações
que expõe. Deixa, por exemplo, a impressão de
que, diante do caos, os monges teriam agido na
cegueira, isto é, negando a existência ante o
fascínio da morte. Porque, sabendo eles que os
mercadores croatas estavam sendo degolados pelo
Grupo Islâmico Armado – GIA -, na vila bem
próxima ao mosteiro, apesar de instados pelo
governo, recusaram a ajuda do exército para
retornar à França.
A propósito, a película se inicia pela citação
do Salmo 82: 6-7: Eu declarei: Vós sois deuses,
todos vós sois filhos do Altíssimo; contudo,
morrereis como um homem qualquer, caireis como
qualquer dos príncipes. Numa das cenas mais
elucidativas nesse sentido, o irmão Luc (Michael
Lonsdale), médico, que havia atendido a um
terrorista ferido, gerando revolta na
comunidade, emite seu conceito de liberdade,
inerente, a seu ver, à morte. Assim, depois de
declarar ao irmão Christian (Lambert Wilson),
líder da congregação, que está preparado para
morrer, ao ser consultado sobre a opção de ficar
ou de partir, ele afirma, com um sorriso
malicioso: Agora, deixe passar um homem
livre!...
É na sequência da última ceia – a mais bela do
filme, pontuada pela abertura do Lago dos
Cisnes, de Tchaikovsky – que fica evidente, por
assim dizer, a sagração da ideia da morte (para
não sugerir a do suicídio coletivo), quando os
monges erguem suas taças de vinho num brinde que
já antecipa a chegada dos terroristas ao
mosteiro, seus (benvindos) algozes. Numa
demonstração de comunhão espiritual, os
religiosos sorriem uns para com os outros e se
abraçam como se expressassem a superação de seus
problemas existenciais, alguns dos quais
expostos ao irmão Christian, que tem para com
todos um cuidado paternal.
A temática da aceitação da morte fora
anteriormente abordada por Xavier Beauvois na
película Não Esqueça Que Você Vai Morrer (1995),
Prêmio do Júri da Mostra Um Certo Olhar do
Festival de Cannes, que conta a história de um
aidético em sua última viagem à Itália. Para
narrar a decisão dos nove monges de Tibhirine de
esperar passivamente pela morte premeditada – ou
de desistir de rolar a pedra de Sísifo, como
diria o argelino Albert Camus -, Beauvois usa,
nessa que é a sua quinta película, uma linguagem
sóbria, despojada, lírica, em que cada plano
ganha um significado próprio, quase
independente. Com maestria, ele também registra,
por meio de travellings bem planejados, as
atividades agrícolas dos monges com a gente da
comunidade. A mise-en-scène é rica em detalhes,
principalmente no que diz respeito à liturgia
dos cantos, como os de Natal.
A ambientação de Michel Barthélémy é fixada num
velho mosteiro desativado há muitos anos em
Azrou, Marrocos, numa região que não é tão
agreste quanto a da Argélia, mas que propicia
autenticidade às cenas, principalmente às
externas captadas pela bela fotografia de
Caroline Champetier. Mas são, sem dúvida, as
interpretações dos nove atores, nos papéis dos
monges trapistas, que dão ao filme a categoria
que tem, merecedor de inúmeros prêmios europeus.
O rigor que se nota em todos eles na composição
de suas respectivas personagens os qualifica
como verdadeiros criadores artísticos. Lambert
Wilson, como Christian, nunca esteve tão
inspirado, explorando o porte físico, a voz e a
dicção. Michael Lonsdale transmite sob impecável
forma artística a alma que ele soube criar para
o fatigado irmão Luc, e Jacques Herlin expressa,
pela vivacidade do olhar, a inquietação de
Amédée.
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, Brasília, Revista
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FICHA TÉCNICA
HOMENS E DEUSES
DES HOMMES ET DES DIEUX
França / 2010
Duração – 120 minutos
Direção – Xavier Beauvoix
Roteiro – Etienne Comar e Xavier Beauvoir
Produção – Pascal Caucheteux, Etienne Comar
Fotografia – Caroline Champetier
Edição – Marie-Julie Maille
Elenco – Lambert Wilson (Christian), Michael
Londale (Luc), Olivier
Rabourdin (Christophe), Philippe Laudenbach
(Célestin), Jacques Herlin
(Amédée), Loïc Pichon (Jean-Pierre), Xavier Maly
(Michel), Sabrina
Ouazani (Rabbia), Olivier Perrier (Bruno), Farid
Larbi (Ali Fayattia),
Adel Bencherif (Terrorista).
NOTAS DA EDITORA:
De: Theresa
Catharina de Goes Campos
Data: 7 de agosto de 2011 16:55
Assunto: No seu excelente artigo sobre o filme "
Homens e Deuses "
Para: REYNALDO FERREIRA
Estimado Reynaldo:
Sobre o seu excelente, informativo artigo em que
comenta o filme Homens e Deuses, quero
manifestar que tenho uma diferente interpretação
para a atitude dos monges diante da morte...
Nenhum deles desejava morrer, pelo contrário,
eram todos devotados à vida, inclusive pautando
a sua existência no mundo por uma dedicação
plena à vida, numa dimensão enriquecida por sua
visão de profunda espiritualidade - em todos os
aspectos da convivência, acima das diferenças
raciais, religiosas e dos níveis de conhecimento
intelectual.
A possibilidade de morte violenta e prematura
lhes chegou com a compreensão da realidade à sua
volta, uma situação que não existia e, de
repente, veio até eles. Uma análise das ameaças,
bem como dos atos criminosos já concretizados
contra outros, fora do mosteiro, indicou uma
impossibilidade de fuga do local para um retorno
à França. O oferecimento das forças governistas
para ajudá-los não foi aceito porque esses
militares não eram confiáveis, pelo contrário,
nem mesmo deixavam transparecer qualquer
simpatia para com aqueles estrangeiros,
praticantes do cristianismo, que exerciam, nas
cercanias, uma posição de autoridade conquistada
pelo respeito mútuo. Isso é explicado no filme,
em uma das conversas entre os religiosos, quando
manifestavam o seu medo diante da morte,
expressavam reflexões sobre uma decisão pessoal,
individual pela sobrevivência, falavam sobre os
limites dos votos sacerdotais que haviam
formulado, em circunstâncias e tempos bem
diferentes.
Mas, aqui é fundamental entender que o martírio
cristão não significa suicídio, e sim, aceitação
de uma realidade que foge ao controle daquele
que não usa métodos de violência, nem para se
defender, nem se revolta, no seu íntimo, contra
Deus porque a sua vida terrena lhe será tirada
antecipadamente e de forma cruel. Os monges, na
verdade, não tinham alternativas. Sua única
opção foi recorrer à força de sua fé, que lhes
daria a coragem necessária para enfrentar os
momentos mais difíceis como pessoas dedicadas a
Deus e a seu próximo. Saint-Exupéry também
acreditava: "o que dá um sentido à vida dá
sentido à morte".
Religiosos católicos, com uma rotina de atitudes
ecumênicas na convivência com a população
muçulmana, não seriam mártires nem santos, se
fossem suicidas, considerando que a opção pelo
suicídio demonstraria um desespero interior de
quem perdeu a fé no Criador Supremo, por isso
atenta contra a própria vida, que em nenhuma
hipótese lhe pertence, como ser humano criado à
imagem e semelhança divina.
A decisão de permanecer, enfrentando aquela
situação de alto risco, talvez tenha sido uma
forma de continuarem a exercer a missão de
pastores responsáveis, solidários aos vizinhos e
amigos, também vítimas de idênticos perigos,
ameaçados também pelos terroristas.
Abraços cordiais de
Theresa Catharina
RESPOSTA DE REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
De: REYNALDO
FERREIRA
Data: 7 de agosto de 2011 18:34
Assunto: RE: No seu excelente, informativo
artigo sobre o filme "Homens e Deuses"
Para: theresa.files@gmail.com
Prezada Theresa Catharina,
(...)
Quanto à sua interpretação sobre a atitude dos
padres, está corretíssima de acordo com o
pensamento dos católicos africanos, que, como
igualmente está lembrado no artigo, já
consideram mártires os sete sacerdotes
assassinados. A dramaturgia do Xavier Beauvois,
entretanto, é inquisitiva e deixa dúvida a
respeito, que levanto no artigo. Nas entrelinhas
(ou leitura dos planos), segundo Beauvois, eles
teriam agido não como religiosos, mas como
homens. E como tal teriam se mostrado fracos,
vulneráveis. Veja que os dois que resistiram aos
terroristas, conseguiram se salvar, sendo
transferidos pelas forças do exército para o
mosteiro de Fez, no Marrocos, que ficava nas
proximidades de Médéa. Não havia dificuldade
para chegar lá. A personalidade de Christian é
colocada no filme, apesar da boa aparência do
sacerdote, como um falso líder, um homem
imprevidente, que não sabe encontrar
alternativas para conduzir o seu rebanho. É
contestadora, portanto, aos ensinamentos
cristãos. Foi esse o motivo, por sinal, que
alguns familiares dos monges resistiram à ideia
da realização do filme. É realmente uma obra
polêmica. Eis por que é quase uma obra-prima,
que já vi duas vezes - a primeira das quais em
Portugal, quando lá estive em dezembro - e
pretendo ver mais. Abraços, Reynaldo |
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