Theresa Catharina de Góes Campos

  MINHAS TARDES COM MARGUERITTE

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Minhas tardes com Margueritte: Educação e Humanismo para extrair o
melhor das pessoas
Pablo González Blasco

Por vezes temos sorte e nos deparamos com um desses filmes que a
crítica não promove, por ser uma produção menor. Metragem pequena,
investimento mínimo, temática simples que também não exige dos atores
um desempenho extraordinário. Um ensaio de teatro pontual, quase um
passatempo doméstico. Temos sorte de que um filme como “Minhas tardes
com Margueritte” caia em nossas mãos, e não no esquecimento.

Eis uma miniatura que transpira ternura, arte, cultura, que nos educa
e nos torna melhores. Essa é –e não outra- a função da arte.
Lembrar-nos as coisas importantes da vida, aquelas que esquecemos por
estar ocupados com uma multidão de solicitações que nos acossam
diariamente. Foi esse o motivo –conforme conta a mitologia- pelo qual
Zeus criou as musas e as artes: para lembrar aos homens o que
realmente importa.

Margueritte é uma anciã encantadora de 85 anos, – de acordo com o
romance de Marie Sabine Roger que embasa o filme-, embora a atriz que
incarna o papel tenha mais de 95. Quem passa as tardes com ela é
Germain Chaze, homem de capacidades limitadas, criatura mal querida
pela própria mãe, um fardo gordo e amorfo, puxado com fórceps, que se
converte num ônus para a vida. Germain carece de cultura, de formas,
ninguém investiu nele, recebeu apenas pancada. Sua cabeça é um terreno
baldio como aponta o sugestivo título original em francês: La Tête en
Friche . Mas tem um coração proporcional ao seu tamanho, quer bem ao
próximo, se faz querer, transforma suas deficiências em carinho
exuberante, avassalador, envolvente. Esse será o solo fértil do qual a
anciã extrairá fecundidade.

O filme pode ser analisado por muitos ângulos, e o valor biográfico
dos anciãos, a delicadeza que emana da relação com os velhos é
certamente um deles. Como dizia um bom amigo geriatra e professor
universitário, os velhos têm pouca biologia, , a sua fisiologia é
decadente, mas têm muita biografia. Para cuidar deles é preciso
prestar atenção a essa dimensão vital, que se integra também na saúde
física. Os meus pacientes octogenários também foram lembrados durante
o filme, mas confesso que não foi esse aspecto o que me seduziu.
Afinal, não é um filme sobre idosos, ou de como cuidar de uma anciã. É
ela, Margueritte, quem cuida e educa Germain, e com ele a todos nós.
Esse é o panorama que se descortina diante deste filme encantador.

Nestes últimos tempos ando especialmente sensível ao tema da cultura,
ou melhor, da aridez cultural, das carências. Confesso que sinto o
coração apertado quando descubro que alguém não sabe ler, o que me faz
sofrer mais do que ver alguém passar fome, porque a fome teria um
remédio acessível, enquanto que a instrução básica é limitadora,
incapacitante.

Uma das minhas pacientes octogenárias é cuidada por uma cozinheira,
que também a atende nas suas necessidades. Faz já alguns meses, quando
fui visitá-la, reparei que as tabelas com os horários das medicações
que sempre lhe anoto, tinham desaparecido; e não era a primeira vez.
Indaguei com a cozinheira, enquanto me dispunha a fazer uma nova
prescrição: nesse momento, ela me confidenciou que tinha certa
dificuldade com as leituras. Estava explicado: para que conservar algo
que não se utiliza? Guardei a caneta, e ocorreu-me que ao invés de
escrever a prescrição, o melhor seria contar, a modo de receita de
bolo, a maneira de tomar os remédios, e as demais providências com a
paciente. Sendo cozinheira –pensei- deve ser o melhor modo de guardar
as instruções. Sai da residência feliz pela criatividade, mas apenado
por apalpar tão de perto o analfabetismo, numa pessoa de excelente
índole.

A falta de estudos –os iletrados, como diziam os clássicos- é
crueldade que pede remédio, mormente quando se vê que o terreno é
ermo, por falta de cultivo, por carecer de cuidados que fariam
desabrochar frutos formidáveis. Basta um contato delicado –como
Margueritte sabe provocar- para que surjam os primeiros resultados.
Mas como não é uma criança a que está sendo educada, os efeitos
iniciais são dolorosos: a consciência da própria inutilidade. “Careço
de modelos, tive de aprender tudo sozinho. Em quinze palavras, digo
doze grosserias”. É o lamento de Germain que repara nas limitações que
a vida lhe impôs, o maltrato e as humilhações sofridas pela mãe e
pelos professores, a ausência de um pai, pois “eu não sou fruto do
amor, mas um acidente de percurso”. Os educadores qualificam esta
situação como a passagem da incompetência inconsciente (não se sabe
nada, mas se desconhece o quanto se ignora), para a incompetência
consciente (onde se repara no muito que se ignora, e vem o susto
tremendo). “É como dar lentes a um míope, se vê os defeitos, me vejo a
mim mesmo, é doloroso”.

Margueritte é uma educadora que não tem pressa, saboreia cada momento
desde a perspectiva de uma vida vivida em plenitude, pratica a arte de
educar. Porque educar é mais do que quantidade; é provocar
experiências inesquecíveis, despertar o interesse, fomentar a
reflexão. “Germain, você é um ótimo leitor, porque ler é também
escutar. Como as crianças que se acostumam com a leitura em voz alta”.
Educar é, antes de tudo, colocar amor e delicadeza no processo que
forma os outros.

Daniel Pennac, escritor e educador francês, comenta em sua conhecida
obra “ Diário de Escola “, que uma das condições do bom professor é
estar preparado para a colisão entre o seu conhecimento e a ignorância
do aluno. Uma preparação que deve ser interior e conduz a lembrar
“como é não saber as coisas para, colocando-se no lugar do aluno,
educar com eficácia desde essa perspectiva”. E ainda acrescenta:
“Basta um professor – apenas um! – para nos salvar de nós mesmos, e
fazer-nos esquecer dos outros professores que atrapalham. Os
professores que me salvaram –e que fizeram de mim um professor- não
estavam formados para fazê-lo. Não se preocuparam com ,as origens da
minha incapacidade, nem perderam tempo buscando as causas. Sentiram
urgência, foram atrás de mim, e me tiraram do fundo do poço.
Pescaram-me em tempo. Aqueles professores que mudaram minha vida
estavam possuídos pela paixão comunicativa da sua matéria. Suas aulas
eram atos de comunicação, sem dúvida, mas com um saber dominado até o
ponto de que se tornava criação espontânea”.

Diante desta perspectiva, a conclusão simplista é pensar que não se
fabricam hoje em dia professores assim. De algum modo isto é verdade.
Mas é uma verdade oculta, ou melhor, camuflada pela avalanche de
informação, onde todos sabem de tudo rapidamente, on-line, e desse
modo vamos empurrando o problema com a barriga. O professor e filósofo
espanhol A. Llano descreve em “ Cultura y Pasión “, o receio que lhe
provoca visitar universidades que não têm bibliotecas com a falsa
desculpa de que agora ‘tudo está na rede’. Escreve: “São dependências
da administração pública ou de multinacionais privadas onde a árvore
da ciência não passa de uma metáfora vazia. Estamos diante da
ignorância organizada eficientemente, tecnocraticamente orquestrada e,
naturalmente, bilíngue ou trilíngue”.
Na semana passada, tive a oportunidade de participar de uma discussão
com um grupo de universitários interessadíssimos na formação
humanista, que estavam deslumbrados com uma aula onde outro professor
tinha exemplificado, através de textos de literatura clássica, as
consequências da modernidade. Ocorreu-me pedir a cada um que me
resumisse brevemente as ideias principais dessa aula, para podermos
dar sequência à discussão. Comprovei com espanto que nenhum deles foi
capaz de alinhavar um par de frases lógicas. A aula certamente foi
brilhante, e os alunos estavam fascinados. Mas faltou a lição de casa:
ninguém parou para pensar e refletir, nem muito menos elaborou
anotações da própria colheita que permitem decantar as ideias. Mudamos
o rumo do colóquio para pensar no que tinha acontecido. O outro
professor, que estava presente, comentou que somente quando escrevemos
conseguimos estruturar o pensamento para nós mesmos. Deslumbramento e
emoções, por si só, não edificam ninguém. É necessário cozinhar esses
ingredientes no fogo lento da reflexão pessoal.

Vivemos tempos de informação rapidíssima, e de impactos emocionais. As
pessoas se comunicam o tempo todo, se emocionam, mas não refletem, nem
muito menos escrevem. É pouco o que sobra; e a cultura, que no dizer
de alguns é o que resta quando tudo se esquece, reduz-se ao mínimo.
Pensam –alunos e, o que é mais triste, educadores- que no aperto
sempre se pode recorrer à internet, e basta alguma consulta à
Wikipédia ou ao Google, para sanar estas deficiências. E ainda chamam
isso de pesquisa, em eufemismo grotesco.

A fartura de informação não garante a cultura, quando falta justamente
o que o nome implica: cultivar, trabalhar a terra mediante a reflexão
que gera ideias próprias. Bem o advertia Ortega y Gasset quando
escreve: “A vida é um caos, uma selva, uma confusão. O homem perde-se
nela, Mas sua mente reage perante a sensação de naufrágio, e trabalha
por encontrar na selva caminhos: ideias claras e firmes sobre o
universo, convicções positivas sobre o que são as coisas e o mundo. O
conjunto, o sistema dessas coisas é a cultura. É o que nos salva do
naufrágio vital”.

Voltamos à Margueritte, mulher delicada, frágil como porcelana, que
consegue tirar do rude –que era terra boa- horizontes incríveis.
Educação não é volume nem quantidade – já o dissemos antes. A
verdadeira educação humanística funciona em pequenas doses, moderadas,
assimiláveis, em “ low profile ” para utilizar um termo atual. Pode-se
despertar o gosto pela cultura, com um par de leituras bem comentadas,
ou contando historias.

E nos perguntamos se ao invés de navegar compulsivamente pela Internet
à procura ávida de informação, não seria melhor que os jovens
gastassem mais tempo conversando com a própria avó para aprender a
peneirar o que realmente é importante. Bom seria ver gente com livros
em baixo do braço, como um interlocutor silencioso que espera
pacientemente ser convocado. Seria uma esperançosa alternativa para
essa fauna de autômatos que brincam com o smartphone e consultam a
informação em tempo real, com a mesma dependência que um doente do
pulmão carrega o balão de oxigênio.

Borges dizia que mesmo sendo cego, continuava comprando livros, porque
precisava rodear-se dessa presença amável. Lembro ter comentado isso
com uma aluna quando certo dia me confidenciou ter tido uma sensação
nova e agradável: decidiu ir caminhando até o metrô, sem ligar o iPod
e…..teve tempo para pensar!

Margueritte leva pela mão a Germain, e os sentimentos do homem bronco
tomam forma de poesia no final do filme. Um poema que não resisto a
transcrever na íntegra e que em francês tem um encanto todo especial.
Diz mais ou menos assim: “Foi um encontro pouco corrente entre o amor
e a ternura, mais nada. Tinha nome de flor e vivia entre palavras,
adjetivos esmerados, verbos que cresciam como a grama; alguns ficavam.
Entrou suavemente desde a carcaça até o meu coração. Nas historias de
amor, tudo é grande; às vezes não existe sequer ‘eu te amo’, mas a
gente se ama. Foi um encontro pouco ordinário, a conheci por acaso no
parque, não ocupava muito, o tamanho de uma pomba com as suas penas,
embrulhada em palavras, em nomes, como o meu. Deu-me um livro, depois
outro, e as páginas se iluminaram. Não morras ainda, há tempo, espera;
não é a hora, pequena flor, dá-me um pouco mais de ti, dá-me um pouco
mais da tua vida, espera. Nas historias de amor, às vezes não existe
sequer ‘eu te amo’, mas " a gente se ama.”

Leio este poema, o escuto de novo na voz de um soberbo Gérard
Depardieu, e me emociono. Tem altura para ser acadêmico da língua
francesa. E tudo começou uma tarde num parque, lendo “A Peste” de
Camus. Pensar em como alguém consegue despertar o amor pela leitura
com semelhante obra, me faz concluir o que Pennac apontava acima: deve
ser mesmo o amor e a paixão por educar. E tenho uma inveja enorme e
inspiradora de Margueritte, uma humanista admirável.

Ficha técnica:

Diretor: Jean Becker
Elenco: Gérard Depardieu, Gisèle Casadesus, Maurane, Patrick
Bouchitey, Jean-François Stévenin, François-Xavier Demaison, Claire
Maurier, Sophie Guillemin
Produção: Louis Becker
Roteiro: Jean Becker, Jean-Loup Dabadie
Fotografia: Arthur Cloquet
Trilha Sonora: Laurent Voulzy
Duração: 82 min.
Ano: 2010
País: França
Gênero: Drama
Classificação: 12 anos

Fonte: Esse artigo foi originalmente publicado em 18-07-2011 no blog
Pablo González Blasco - Educar no Humanismo

Publicado no Portal da Família em 20/07/2011
 

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