Tereza Halliday – Artesã de Textos
Segundo dia de carnaval no bairro do Recife Antigo. Desfile dos blocos líricos e troças irreverentes, impelindo a ir atrás da orquestra, entra rua, sai rua. Com Ozede, minha parceira de folia que topa qualquer programa cultural - de ópera a forró, mantive as pernas em movimento, das cinco da tarde às nove da noite. Entoamos frevos de bloco, marchinhas antigas e frevos-canção cantados e recantados por todos. Conhecer a maioria das letras nos tornava cúmplices daquela multidão e da alegria-terapia. Mesmo avessa a bairrismos, entoei satisfeita, “com violões e pastorinhas mil/ dizendo bem que o Recife tem/ o carnaval melhor do meu Brasil”.
Passo a reportar o que ninguém viu. Na Av. Marquês de Olinda, encontrei o fantasma do meu trisavô escocês, que ali manteve, em meados do século 19, uma casa de comércio. Na Av. Alfredo Lisboa, o fantasma do meu tio Valdemar Marinheiro, boêmio famoso no século 20, dono do bar que congregava gregos e troianos, neutralizando ideologias numa mesma irmandade etílica. Ali perto, foliã de molejo perfeito no passo era a cara de Mariinha Ferreira que, em mil novecentos e antigamente, levava-me para o Pátio de São Pedro na semana pré-carnavalesca. Lá, transfigurava-se “ao som dos clarins de Momo”, com seu gingado ancestral. Hoje, está com Mário Melo, “no palanque sem fim lá do espaço”. Assim como George Lederman, a quem vi pela última vez, ali mesmo, na ponta da calçada, acompanhando o movimento, com um sorriso divertido, ele que curtia de Beethoven a Levino Ferreira.
Vendo os blocos passar, com seus foliões de cinco a 85 anos, não fui mera espectadora. Dancei todas, sem tomar nenhuma. Meu combustível é água pura. Álcool amoleceria as pernas. Minha animação vem de dentro, nutrida pelos ritmos e cantares. No embalo do “cantando e frevando – tudo é fantasia”, vi, na tela da mente, grande roda de frevo, mais parecendo uma ciranda, com pessoas de vários lugares, que eu queria estivessem ali “cantando meu verso, minha melodia / enquanto há tempo para se cantar”: Og e Roberta, Frederica, Luis Manoel e Silvana, Janice (com a indumentária mais chique, desenhada por ela); Maria Inés, Lourdinha Hortas, Clara Amaral, Malu e Toinho, Olenca e outros que o tamanho deste texto não permite citar. Foliões assumidos, brincantes enrustidos e não brincantes. Irmanados no gosto pela poesia e pela cadência das músicas - “Nós somos madeira de lei que cupim não rói”; “Quem tem saudade não está sozinho, tem o carinho da recordação”; “No regresso de não mais voltar”; “Se a saudade um dia chegar / nunca a tristeza irá encontrar/ Só alegria encontra em mim./ A vida é folia sem fim”; “Adeus, adeus minha gente / que já cantamos bastante”. Somente eu vi: todos eles comigo no molejo dos frevos mansos, de mãos dadas, formando o bloco do meu bem-querer.
(Diário de Pernambuco, 27/02/2012, p.C-5)