Theresa Catharina de Góes Campos

 
Reflexões Homiléticas para Abril de 2012

Pe. Tomaz Hughes, SVD

E-mail: thughes@netpar.com.br

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DOMINGO DE RAMOS (1 de abril de 2012)

Mc 11, 1-11

“Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor!”

 

            Uma das grandes festas religiosas na tradição popular brasileira é a celebração da entrada de Jesus em Jerusalém, no Domingo de Ramos. Organizam-se procissões, o povo abana ramos, e pessoas que dificilmente pisam em uma igreja nos domingos comuns, hoje fazem questão de não perder a celebração. Tudo isso tem o potencial de ser muito positivo, mas para não reduzirmos a comemoração a mero folclore ou teatro, acredito ser importante aprofundar a partir de textos bíblicos o que significava este evento para Jesus, e para o evangelista.

            Talvez o nosso entendimento da passagem - como de outros textos - é dificultado pela nossa pouca familiaridade com o Antigo Testamento. Para que entendamos bem o sentido do gesto profético de Jesus nesse evento, seria bom relembrar um trecho do profeta Zacarias: “Dance de alegria, cidade de Sião; grite de alegria, cidade de Jerusalém, pois agora o seu rei está chegando, justo e vitorioso. Ele é pobre, vem montado num jumento, num jumentinho, filho de uma jumenta... Anunciará a paz a todas as nações, e o seu domínio irá de mar a mar, do rio Eufrates até os confins da terra” (Zc 9, 9-10). Esse era um trecho muito importante na espiritualidade do grupo conhecido como os “Anawim”, ou “os pobres de Javé”, que esperavam ansiosamente a chegada do Messias libertador. Herdeiros dessa espiritualidade e esperança seguramente estavam Maria e José, e os discípulos/as de Jesus. Jesus foi educado dentro dessa espiritualidade. Zacarias traçava as características do verdadeiro messias - seria um rei, mas um rei “justo e pobre”; não um rei de guerra, mas de paz! Estabeleceria uma sociedade diferente da sociedade opressora do tempo de Zacarias (e de Jesus, e de nós) - onde poderosos e ricos oprimiam os pobres e pacíficos! Um rei jamais entraria em uma cidade montado em um jumento - o animal do pobre camponês, mas em um cavalo branco de raça! Então Jesus, fazendo a sua entrada assim, faz uma releitura do profeta Zacarias, e se identifica com o rei pobre, da paz, da esperança dos pobres e oprimidos!

            Por isso, muitas vezes perdemos totalmente o sentido da entrada de Jesus em Jerusalém. Celebramos o evento como se fosse a entrada de um Presidente ou Governador dos nossos tempos, - de pompa, imponência e demonstração de poder e força. Parece muito mais ligado à prepotência de um déspota ou imperialista do que à figura de Jesus! O contrário do que significava o que Jesus fez! Chamamos o evento da “entrada triunfal de Jesus em Jerusalém” - e realmente foi uma entrada triunfal, mas como triunfo de Deus, que se encarnou entre nós como o Servo Sofredor, o triunfo da vida, morte e ressurreição de Jesus! Nada mais longe do sentido original deste evento do que manifestações de poderio e pompa, mesmo - ou especialmente - quando feitas em nome da Igreja e do Evangelho de Jesus!

O texto de hoje convida a todos nós a revermos as nossas atitudes. Seguimos Jesus - mas, será que é o Jesus real, o Jesus de Nazaré, o Jesus rei dos pobres e humildes, o Jesus cumpridor da profecia de Zacarias? Ou inventamos um outro Jesus - poderoso nos moldes da nossa sociedade, com força, poder e prestígio, conforme o mundo entende estes termos? É valiosa a advertência contida em um canto muito usado nas celebrações de hoje: “Eles queriam um grande rei, que fosse forte, dominador. E por isso não creram n’Ele e mataram o salvador!”

Realmente, acreditamos no rei dos pobres e oprimidos, ou só fazemos um folclore bonito no Dia de Ramos, totalmente desvinculado da mensagem verídica e profunda do profeta Zacarias e do Evangelho de hoje? Acreditamos na força do direito (Jesus e o seu projeto de vida) ou no direito da força (tantos poderosos do cenário mundial com o seu projeto de morte?)

 


DOMINGO DE PÁSCOA (8 de abril de 2012)

Jo 20, 1-9

“Ele viu e acreditou”

 

Os quatro evangelhos relatam os acontecimentos do Dia da Ressurreição, cada um de acordo com as suas tradições. Certos elementos são comuns a todos: o fato do túmulo vazio, de que as primeiras testemunhas eram as mulheres (embora divirjam quanto ao seu número e identidade e o motivo da sua ida ao túmulo - para ungir o corpo, ou para vigiar e lamentar), e que uma delas era Maria Madalena. Podemos tirar disso a conclusão que as mulheres tinham lugar muito importante entre o grupo dos discípulos de Jesus, e que elas eram mais fiéis do que os homens, seguindo Jesus até a Cruz e além dela! Infelizmente, outras gerações fizeram questão de diminuir a importância das discípulas na tradição - e a Igreja sofre até hoje as consequências.

Lendo os relatos, um fato salta aos olhos - ninguém esperava a Ressurreição! Para os discípulos, a Cruz era o fim da esperança, a maior desilusão possível. Se somarmos a isso o fato que todos eles traíram Jesus (ou por dinheiro, ou por covardia), podemos imaginar o ambiente pesado entre eles na manhã do Domingo. Nesse meio, chega a Maria com a notícia de que o túmulo estava vazio - e ela, naturalmente, pensa que o corpo tinha sido roubado. Ressurreição - nem pensar!

No nosso texto, Pedro (que tem um papel importante nos textos pós-ressurrecionais) e o Discípulo Amado (anônimo, mas segundo os estudos mais recentes quase certamente não um dos Doze) correm até o túmulo. O texto deixa entrever a tensão histórica que existia entre a comunidade do Discípulo Amado e a comunidade apostólica (representada por Pedro). Pois, o Discípulo Amado espera por Pedro (reconhece a sua primazia), mas enquanto Pedro vê sem acreditar, o Discípulo Amado acredita. No Quarto Evangelho, Pedro só realmente vai conseguir amar Jesus no Capítulo 21, enquanto o Discípulo Amado é o tal desde Capítulo 13. Só quem olha com os olhos do coração, do amor, penetra além das aparências!

Como em Lucas 24, na história dos Discípulos de Emaús, o texto demonstra que a nossa fé não está baseada num túmulo vazio! Não é o túmulo vazio que fundamenta a nossa fé na Ressurreição, mas o contrário - é a experiência da presença de Jesus Ressuscitado que explica porque o túmulo está vazio! Cuidemos de não procurar bases falsas para a nossa fé no Ressuscitado!

Hoje em dia, quando olhamos para o mundo ao nosso redor, é fácil não acreditar na vitória da vida sobre a morte. Há tanto sofrimento e injustiça - guerra, violência, corrupção endêmica, miséria, a saúde e a educação sucateadas! Só uma experiência profunda da presença de Jesus libertador no meio da comunidade poderá nos sustentar na luta por um mundo melhor, com fé na vitória final do bem sobre o mal, da luz sobre as trevas, da graça sobre o pecado!

Nós todos somos discípulos/as amados/as, pois “nada nos separa do amor e Deus em Jesus Cristo” (Rm 8); mas, será que somos discípulos amantes? Será que amamos a Jesus e ao próximo? E lembramos que o ágape, o amor proposto pelo evangelho, não é um sentimento, mas uma atitude de vida, de solidariedade, de partilha, de justiça. “O amor consiste no seguinte: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou, e nos enviou o seu Filho como vítima expiatória por nossos pecados. Se Deus nos amou a tal ponto, também nós devemos amar-nos uns aos outros” (1Jo 4, 10-11).

Que a mensagem da Ressurreição, da vitória da vida sobre a morte, nos anime e dê força, todos os dias da nossa vida, mas especialmente quando a Cruz pesar muito.

 


Páscoa: Tempo de renascer! Tempo de despertar para a vida nova!

Pe. Tomaz Hughes, SVD

Muitos de nós, de uma certa idade, lembram ainda quando a Quaresma era observada com muito rigor nas famílias e comunidades cristãs, com especial ênfase em privar-se de algum bem - doces, bebidas, cinema ou algo semelhante. Que alegria quando chegasse Sábado Santo, pois tudo isso terminou! Sem negar o valor das práticas daqueles tempos idos, antes da reforma litúrgica do Papa Pio XII, a celebração da Páscoa foi diminuída na sua importância e quase que desligada da caminhada quaresmal.

O ponto alto do Ano Litúrgico é o Tríduo Pascal. Aqui está resumido todo o mistério da nossa salvação, pela vida, morte e ressurreição de Jesus. Na quinta à noite, comemoramos a Ceia que resumiu toda a vida de Jesus. “Tendo amado os seus, amou-os até o extremo” (Jo 13, 1) - até o último ponto de doação, dando a sua vida. Jesus nos deu o mandamento que deve nortear toda a nossa vida - “façam isso em memória de mim!”. Não fazendo uma lembrança de algo que já passou, mas o memorial - tornando presente tudo que foi celebrado nessa ceia derradeira, e comprometendo-nos com o seguimento de Jesus hoje, alimentados por seu Corpo e Sangue, numa vida de amor e solidariedade.

            Há uma ligação estreita entre todos os elementos do Tríduo, pois sexta-feira foi a consequência lógica da vida de Jesus. Ele não veio para morrer, mas para que “todos tenham a vida e a vida em abundância” (Jo 10, 10). Por isso, o seu projeto do Reino bateu frontalamente com os projetos de dominação do seu tempo, e por isso, ele foi assassinado. Fiel até o fim, assumiu as consequências da fidelidade à vontade do Pai, e foi morto, e morto na Cruz. Desvinculado da Quinta-feira Santa e do Sábado Santo, Sexta-feira seria a celebração de uma derrota fragorosa. Por isso, depois de sentirmos a dor e a tristeza da sexta feira, aparente vitória do mal, celebramos numa explosão de alegria a vitória de Deus, do bem, na ressurreição de Jesus, garantia da nossa, através da Liturgia Pascal.

            Nos relatos dos Evangelhos, certos elementos são comuns: o fato que o túmulo estava vazio, que as primeiras testemunhas eram as mulheres, e que uma delas era Maria Madalena. Um fato salta aos olhos - ninguém esperava a Ressurreição. A Cruz era o fim da esperança, a maior desilusão possível. Se somarmos a isso o fato que todos eles traíram Jesus (ou por dinheiro, ou por covardia), podemos imaginar o ambiente pesado entre os discípulos na manhã do Domingo. Nisso, chegam a Maria e as mulheres com a notícia do túmulo vazio. Pedro e o Discípulo Amado correm até o túmulo. Enquanto Pedro vê sem acreditar, o Discípulo Amado acredita. Só quem olha com os olhos do amor, penetra além das aparências!

            Salta aos olhos, mesmo com uma leitura superficial dos relatos evangélicos, que a experiência da Páscoa fez uma reviravolta na vida dos discípulos e discípulas. De um grupo de decepcionados, desiludidos, fracassados, se tornaram um grupo dinâmico, evangelizador, animado, olhando a vida, com suas alegrias e tristezas, de uma outra maneira. Isso fica claro no relato dos Discípulos de Emaús, em Lucas 24, 13-35. Podemos sentir no desabafo do Cléofas sentimentos de tristeza, decepção, desilusão, até revolta contra Jesus, por, aparentemente, ter fracassado e destruído os sonhos e esperanças deles: “nós esperávamos (notemos o tempo do verbo!) que fosse ele o libertador de Israel, mas... já faz três dias que tudo isso aconteceu.” (Lc 24, 21). De repente, depois de ter feito a experiência da presença de Jesus Ressuscitado, tudo muda: “Então, um disse ao outro: Não estava o nosso coração ardendo quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” Na mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém, onde encontraram os Onze, reunidos com os outros” (Lc 24, 32-33).

            Páscoa era para eles, e tem que ser para nós, “tempo de renascer”. Mas, é bom notar - só “renasce” o que morreu! Temos que descobrir em nós o que precisa renascer, o que tem morrido, ou está agonizando! Pode ser a fé, a força, o ânimo, a esperança, o engajamento na comunidade, a energia para lutar por um mundo melhor. Todas essas coisas são capazes de renascer, se realmente fizermos a real experiência da Páscoa, da ressurreição de Jesus. Não de uma maneira sentimental e aérea, mas, realista. Para ressuscitar, Jesus teve que passar realmente pela morte. Mas venceu a morte e continua a viver - e no meio de nós. Lembremos como Paulo dava importância à Ressurreição. Escrevendo aos coríntios, uma comunidade onde alguns “iluminados” negaram ou menosprezaram o fato da Ressurreição, ele brada: “Se os mortos não ressuscitam, Cristo também não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, a fé que vocês têm é ilusória e vocês ainda estão nos seus pecados... Se a nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, nós somos os mais infelizes de todos os homens (1Cor 15, 16-19).

            Não há dúvida que não é fácil manter sempre a esperança, a fé e a coragem diante de tantas dificuldades na vida. Sempre foi assim. O autor anônimo de Hebreus, escrevendo na segunda parte do primeiro século a uma comunidade judeu-cristã, sabia disso, e falou: “Corramos com perseverança na corrida, com os olhos fixos em Jesus... para que vocês não se cansem e não percam o ânimo, pensem atentamente em Jesus” (Hb 12, 1c-3). A celebração da Semana Santa nos dá uma oportunidade de fazer isso - olhar de novo atentamente para Jesus, o Verbo de Deus, “que se fez homem e armou a sua tenda no meio de nós” (Jo 1, 14). Assim podemos reanimar a nossa fé, a nossa missão, a nossa participação na comunidade, olhando, recordando e celebrando o Jesus real, de mão calejada, que se tornou igual a nós em tudo, menos o pecado. Se, apesar de ser abandonado por quase todos e sentindo-se abandonado até pelo Pai, gritando, “Meu Deus, Meu Deus porque me abandonaste” (Mc 15,34), mesmo assim foi fiel até o fim, foi ressuscitado pelo Pai. Tempo de renovação, tempo de reviver, tempo de ânimo novo, tempo santo - a celebração da Vida, Morte e Ressurreição de Jesus, “autor e consumidor da fé” (Hb 12,3)

 (Publicado no Boletim Diocesano da Diocese de São José dos Pinhais - Abril 2012)

 


SEGUNDO DOMINGO DA PÁSCOA (15 de abril de 2012)

Jo 20, 19-31

“A paz esteja com vocês!”

 

No texto anterior ao de hoje, a Maria Madalena trouxe a notícia da Ressurreição aos discípulos incrédulos. Agora é o próprio Jesus que aparece a eles. Não há reprovação nem queixa nas suas palavras, apesar da infidelidade de todos eles, mas, somente a alegria e a paz, que já tinha prometido no último discurso. Duas vezes Jesus proclama o seu desejo para a comunidade dos seus discípulos - “A paz esteja com vocês”. O tema da paz, do shalom, é importante na vida de Jesus..

No Discurso de Despedida, na tradição da Comunidade do Discípulo Amado, no contexto de uma certa angústia humana e da insegurança, junto como a promessa do dom do Paráclito, Jesus deixa com os seus o seu grande dom da paz: “Eu deixo para vocês a paz, eu lhes dou a minha paz. A paz que eu dou para vocês não a paz que o mundo dá (Jo 14, 27). Ele usou a palavra tradicional dos judeus para a paz, “Shalom”. É uma paz baseada na vinda do Espírito, que será atualizada no texto de hoje: “A paz esteja com vocês! Recebam o Espírito Santo” (Jo 20, 21-22). Enfatiza que não é a paz como o mundo a entende - muitas vezes simplesmente como a ausência de briga. Frequentemente a paz que o mundo dá é aquela falsa, que depende da força das armas para reprimir as legítimas aspirações do povo sofrido - como tantos países experimentaram, e continuam a experimentar hoje, durante as ditaduras de direita e da esquerda. Assim, a Campanha da Fraternidade deste ano quis nos conscientizar que a Saúde Pública faz parte do desejo de concretizar o Shalom, pois onde o povo está privado do acesso a um bom tratamento da sua saúde, não se realiza o desejo de Jesus. O “shalom” é tudo o que o Pai quer para o seu povo. Só existe quando reina o projeto de vida de Deus. Implica a satisfação de todas as necessidades básicas da pessoa humana, da libertação da humanidade do pecado e das suas consequências. O “shalom” dos discípulos não pode ser perturbado pelo fato da partida de Jesus, pois é através da volta do Filho para o Pai que o Shalom vai se instalar.

O “shalom”, a verdadeira paz, é um dom de Deus - mas também um desafio para nós, os seus discípulos/as. Pede a colaboração humana! Diante de tantas barbaridades hoje, de tanta violência no campo, da exploração do latifúndio, do tráfico de drogas e das pessoas, da impunidade, qual deve ser a atitude do cristão? Se nós acreditamos no shalom, nunca podemos compactuar com sistemas repressivos ou elitistas que tiram da maioria (ou mesmo de uma minoria) os direitos básicos que pertencem a todos os filhos de Deus. Às vezes, este shalom convive ao lado do sofrimento e perseguição por causa do Reino; mas, quem experimenta na intimidade a presença da Trindade, também experimenta a verdade da frase de Jesus: “não fiquem perturbados, nem tenham medo” (Jo 14, 27), pois disse Ele, “eu venci o mundo” (Jo 16, 33). Frequentemente, uma leitura fundamentalista do Evangelho, fortemente influenciada por ideologias da direita, insistia que Jesus veio trazer a “paz”, entendido como “ordem e progresso” na visão positivista das elites dominantes. Mas, o próprio texto do Evangelho indica que esse tipo de paz estava longe da mente de Jesus. Ele mesmo diz com todas as letras em Mt 10, 34: “Não pensem que eu vim trazer paz à terra; eu não vim trazer a paz, e sim a espada”.

Obviamente, Jesus não diz que veio trazer a violência, pelo contrário, veio desmascarar uma paz imposta pela força, com base ideológica numa falsa imagem de Deus, e que essa ação profética d’Ele revelaria as divisões já existentes na sociedade, nas religiões, no coração das pessoas. Pois, a sua prática e pregação exigiram uma tomada de posição diante da violência, ostensiva ou ocultada. A não violência não é sinônima com não-ação. Pelo contrário, levou Jesus a lançar-se em uma vida dedicada aos valores do Reino, entre os quais o Shalom tinha lugar premente; por isso, Ele foi morto pelos interesses ameaçados por esta pregação do verdadeiro shalom - uma aliança de poderes religiosos, políticos, judiciais e econômicos. Por isso devemos sempre “fazer a memória de Jesus” - da sua pessoa e do seu projeto, para que tenhamos critérios certos para verificar a presença - ou ausência - do “shalom” na nossa sociedade, e nos comprometermos com a criação do mundo mais justo que Deus quer.

O Reino de Deus não é algo escrito em uma tábua rasa. Já existe a força contrária, a do anti-Reino. Assim também, o shalom não nasce em um vácuo - cria-se em oposição à realidade dura da violência, mesmo quando disfarçada como paz. Por isso, será sempre conflituoso - pois necessariamente provocará a reação dos que oprimem e violentam. A dedicação a Ele exigirá uma mística profunda! Uma vida dedicada à construção do Shalom tem como fundamento uma profunda experiência de Deus. A luta pela paz, pelos oprimidos, por um mundo de igualdade e solidariedade para nós cristãos não pode nascer de uma simples análise de conjuntura, nem de uma indignação ética, por tão necessárias que esses elementos possam ser. A inspiração última da nossa luta pelo shalom tem que ser enraizada na nossa fé - por ser coerente com o Deus em que nós acreditamos, o Deus que vê a miséria do seu povo, vítima da violência, que ouve o seu clamor em favor da verdadeira paz, que conhece os seus sofrimentos, e que desce para libertá-lo de todas as formas da violência que atentam contra a vida (Êx 3, 7-10). É coerência com o seguimento de Jesus, o Verbo Divino que se fez carne e armou sua tenda no meio de nós, (Jo 1, 1.14) vindo para que todos tenham a vida e a tenham plenamente (Jo 10, 10). Por isso, devemos ouvir de novo a voz profética de Jesus que conclama a todos nós à conversão: “Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mc 1, 14).

 As raízes da violência, do anti-Reino, estão dentro de todos nós, como indivíduos e comunidade. Quando compactuamos com qualquer discriminação, quando defendemos a violência contra qualquer pessoa ou grupo, quando aplaudimos os maus tratos contra quem quer que seja, quando interpretamos a vida a partir dos opressores, quando nos entregamos à inveja e ao ciúme, ao ódio e raiva, ao racismo, machismo, classismo, ou a qualquer outro "ismo" que nos divide - estamos nos opondo ao shalom de Deus. Quando colocamos a propriedade particular como um valor em cima da vida humana, quando defendemos a pena da morte, quando apoiamos politicamente estruturas que acumulam bens nas mãos de poucos, quando aceitamos a ideologia do neoliberalismo, com o seu Deus do lucro, o seu evangelho de competitividade que faz do irmão e irmã os meus rivais, estamos contribuindo para que o shalom não aconteça. A batalha - e é batalha - contra a violência em favor da paz se travará em muitas frentes - dentro de cada um de nós, nas instâncias de poder político, religioso, eclesial, social e cultural. Os cristãos de todas as Igrejas terão uma responsabilidade muito grande de se tornarem arautos do shalom, protagonistas de uma nova ordem social, seguindo as pegadas do Mestre que desmascarava a violência sofrida pelo seu povo - muitas vezes em nome de Deus - e trouxe a proposta de um mundo diferente, baseado nos valores do Reino.

Jesus soprou sobre os discípulos, como Deus fez (é o mesmo termo) sobre Adão quando infundiu nele o espírito de vida; Jesus os recria com o Espírito Santo.

Normalmente, imaginamos o Espírito Santo descendo sobre os discípulos em Pentecostes, como Lucas descreve em Atos, mas aquilo era a descida oficial e pública do Espírito para dirigir a missão da Igreja no mundo. Para João, o dom do Espírito, que da sua natureza é invisível, flui da glorificação de Jesus, da sua volta ao Pai. O dom do Espírito neste texto tem a ver com o perdão dos pecados.

Mais uma vez, no primeiro dia da semana, Jesus aparece aos discípulos (notem a ênfase sobre o Domingo - duas vezes). Esta vez, Tomé está presente. Ele representa os discípulos da comunidade joanina do fim do século, que estavam vacilando na sua fé na Ressuscitado, diante dos sofrimentos e tribulações da vida. Assim nos representa, quando nós vacilamos e duvidamos. Jesus nos fortalece com as palavras “Felizes os que acreditaram sem ter visto!” Essa muitas vezes será a realidade da nossa fé - acreditar contra todas as aparências que o bem é mais forte do que o mal, a vida do que a morte, o Shalom do que a prepotência! Somente uma fé profunda e uma experiência da presença do Ressuscitado vai nos dar essa firmeza.

Tomé confessa Jesus nas palavras que o Salmista usa para Javé (Sl 35, 23). No primeiro capítulo do Evangelho de João, os discípulos deram a Jesus uma série de títulos que indicaram um conhecimento crescente de quem Ele era; aqui Tomé lhe dá o título final e definitivo - Jesus é Senhor e Deus!

Nessa proclamação triunfante da divindade de Jesus, o Evangelho terminava (o Capítulo 21 é um epílogo, adicionado mais tarde). No início, João nos informou que “o Verbo era Deus”. Agora, Ele repete essa afirmação e abençoa todos os que O aceitam baseados na fé! A meta do Evangelho foi alcançada - mostrar a divindade de Jesus, para que acreditando, todos pudessem ter a vida n’Ele.

 


TERCEIRO DOMINGO DE PÁSCOA (22 de abril de 2012)

Lc 24, 35-48

“E vocês são testemunhas disso.”

 

O evangelho de hoje é a segunda parte do capítulo 24 de Lucas, que relata primeiro a história das mulheres diante do túmulo de Jesus, e agora o incidente do encontro de Jesus Ressuscitado com os dois discípulos na estrada de Emaús. Devemos recordar que Lucas estava escrevendo a sua obra em vista dos problemas da sua comunidade pelo ano 85 d.C. Já não estamos mais com a primeira geração de discípulos - já se passou mais de meio século desde os eventos pascais. A comunidade já está vacilando na sua fé - as perseguições estão no horizonte, ou até acontecendo; o primeiro entusiasmo diminuiu, os membros estão cansados da caminhada e perdendo de vista a mensagem vitoriosa da Páscoa. Parece que é mais forte a morte do que a vida, a opressão do que a libertação, o pecado do que a graça.

Neste cenário, Lucas escreve este capítulo. Traz uma mensagem de ânimo e coragem aos desanimados e vacilantes da sua época - e da nossa! Para as mulheres, os dois anjos perguntam “por que estão procurando entre os mortos aquele que está vivo?” E afirmam: “Ele não está aqui! Ressuscitou!” Mensagem atual para os nossos tempos - diante da péssima situação de tantas pessoas que enfrentam a dura luta pela sobrevivência, com desemprego, baixo salário, falta de terra e moradia, uma herança de décadas de descaso dos governantes com a saúde pública e a educação, é muito fácil perder a esperança e a coragem. Como a Campanha da Fraternidade recente quis animar os cristãos na luta para que todos tenham uma vida digna, vencendo a apatia e a passividade, o nosso texto quer nos lembrar que Jesus venceu o mal, não foi derrotado pela morte, e está no meio de nós!

Os dois discípulos no caminho de Emaús são imagem viva da comunidade lucana - e de muitas hoje! Já sabem do túmulo vazio, mas estão desanimados, desiludidos, sem forças - pois ainda não fizeram a experiência da presença de Jesus Ressuscitado. Pois, a nossa fé não se baseia no túmulo vazio, mas pelo contrário, a nossa experiência do Ressuscitado explica porque ele ficou vazio. Os dois só fazem esta experiência quando partilham o pão! A Escritura fez com que os seus corações “ardessem pelo caminho” (v. 32), mas não lhes abriu os olhos - para isso era necessário formar uma comunidade celebrativa de fé e partilha: “contaram... como tinham reconhecido Jesus quando ele partiu o pão” (v. 35).

Finalmente, o grupo dos discípulos reunidos em Jerusalém é símbolo das comunidades confusas e vacilantes. Tinham dificuldade em acreditar - pois a mensagem da Ressurreição é realmente espantosa! Mas, uma vez feita essa experiência, eles se transformam e se tornam testemunhas vivas do que sentiram, experimentaram e vivenciaram: “E vocês são testemunhas disso” (v. 48). Um grupo de derrotados, desesperançados e desunidos (vv. 20-21) se transformam num grupo de missionários corajosos e convictos, assumindo a tarefa de anunciar “no seu nome a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações” (v. 47).

Nos dias de hoje, quando muitos cristãos se desanimam, ou restringem a sua fé à esfera particular, sem que tenha qualquer influência sobre a sua vivência social, a mensagem de Lucas nos convida a redescobrirmos a realidade da presença do Ressuscitado entre nós. Mas, essa experiência não serve somente para o nosso consolo pessoal - somos comandados a imitar os dois de Emaús, que, feita a experiência do Ressuscitado, “levantaram na mesma hora e voltaram para Jerusalém” (v. 33). Pois, a nossa experiência religiosa não é algo intimista e individualista, mas algo que nos deve propulsionar para a missão, para a construção de um mundo conforme a vontade de Deus, um mundo de justiça, paz e integridade da criação, sem excluídos e marginalizados, sob qualquer pretexto que seja!

 

UMA REFLEXÃO SOBRE A HISTÓRIA DOS DISCÍPULOS DE EMAÚS

            Talvez, um dos relatos mais conhecidos de Lucas seja a história dos dois discípulos na estrada de Emaús. Aqui temos o retrato das suas comunidades - vacilando na fé, descrentes, desanimadas, sem sentir a presença do Ressuscitado entre elas. Lucas procura reanimar o seu pessoal, mostrando que eles não estão abandonados - muito pelo contrário, estão caminhando junto com a presença do Senhor que venceu a morte.

            Essa história também nos pode ajudar bastante hoje, pois nos indica como devemos usar a Bíblia para animar a nossa caminhada. Jesus é o mestre da Bíblia; e aqui Ele ensina como aproveitar a Escritura para iluminar os problemas práticos da nossa caminhada, e nos dar coragem na nossa missão de evangelizadores.

O que temos aqui é realmente um pequeno drama em cinco atos - um drama que nos mostra a pedagogia de Jesus. Vejamos mais de perto:

 

            Primeiro ato: vv 13 -19a: “Introdução

            O relato começa com as palavras “nesse mesmo dia”. Devemos já fazer uma parada e nos perguntar “que dia”? Para nós seria o dia da Ressurreição, mas para os dois discípulos era simplesmente o terceiro dia da morte de Jesus! Dia de desânimo, de tristeza. “Os dois iam para um povoado chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém”.

            Aqui é bom lembrar que o bom judeu não podia caminhar mais do que um quilômetro no dia de sábado. Portanto, era impossível que eles viajassem no dia anterior. Domingo é a sua primeira oportunidade de sair de Jerusalém, e aproveitaram bem - já estão voltando para sua casa. A cena começa com a desintegração da comunidade cristã. Tudo acabou, a comunidade se dispersa, não há nem alegria nem esperança.

            Quem eram eles? Sabemos do relato que um se chamava Cléofas. E o outro? O Evangelho de João nos conta que a irmã de Maria, mãe do Senhor, chamada Maria de Cléofas, estava junto à cruz (Jo 19, 25). Não seria demais acreditar que os dois discípulos fossem um casal, Cléofas e a sua esposa, voltando depois da peregrinação pascal à Jerusalém. Nunca saberemos com certeza, mas é uma hipótese agradável e possível.

            De repente, no caminho surge Jesus, sem que seja reconhecido. Com isso, Lucas quer dizer que o Ressuscitado não é um defunto que voltou a viver - mas, Ele tem uma nova maneira de ser, um corpo glorificado. É importante notar como Jesus se comporta, através dos verbos que Lucas usa. Ele “aproximou-se”, “caminhou com eles” e “perguntou”. Ele não veio “dando de dedo”, nem dando explicações bíblicas. Ele criou um ambiente de fraternidade onde seria possível explicar tanto a vida como a Bíblia! Quantas vezes isso falta em nossos grupos, nossas comunidades - não nos aproximamos uns aos outros, mantemos distância! Não caminhamos juntos, queremos dar soluções sem conhecer a realidade dos nossos irmãos e irmãs! Por isso mesmo, muitas vezes não as nossas reuniões têm efeito, os nossos encontros bíblicos.

            O “ato” termina com a pergunta d’Ele: “O que é que vocês andam discutindo pelo caminho” (v. 17), ou seja, Ele dá uma oportunidade para que eles exponham a sua realidade, sem julgamento, sem moralismo. Ele parte da realidade dos dois.

 

            Segundo Ato: vv 19b -24: “Os discípulos falam”

            Diante da oportunidade de explicitar a sua realidade, Cléofas não titubeia. Ele expõe com clareza a sua situação. Diante da morte de Jesus ele frisa uma coisa importante: “nós esperávamos que Ele fosse o libertador de Israel” (v. 21). Eles “esperavam”, portanto não esperam mais nada. Aqui ressoam traços de decepção, desilusão, desânimo, até de uma certa revolta contra Jesus, pois todas as suas esperanças tinham sido desfeitas. Os seus sentimentos vão muito além de uma simples tristeza!

            É importante notar também que Lucas explicita bem quem foi quem matou Jesus - não foi o povo, foram grupos de interesse bem definidos: “Nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram” (v. 20)

            Para não reduzir a morte de Jesus a uma fatalidade qualquer, ou a algo desejado pelo Pai, é bom examinar mais profundamente esta afirmação do Cléofas: Jesus foi morto, assassinado judicialmente pelos “chefes dos sacerdotes” - um grupo de sacerdotes saduceus, que dominavam o comércio do Templo, lucrando muito com a exploração do povo através da religião, e que viu a sua hegemonia ameaçada pela pregação e pelo profetismo de Jesus.

Também foi morto pelos “chefes” ou “magistrados”, ou seja, os membros do Sinédrio, que governava os judeus nos assuntos internos, onde a maioria pertencia ao partido elitista dos saduceus (não dos fariseus), colaboradores com o poder Romano, lucrando bastante com isso. Então, Jesus foi morto não por acaso, mas porque ameaçava os privilégios da elite dominante! A cruz era a consequência lógica da vida de Jesus!

            Outro elemento importante é o fato de que eles sabiam do túmulo vazio - dois dos apóstolos já tinham verificado a história das mulheres. Mas, isso não dizia nada para eles! Aqui se destaca que a nossa fé não se baseia no túmulo vazio! É a nossa fé na Ressurreição que explica por que o túmulo estava vazio, e não o túmulo que dá consistência à nossa fé!

 

            Terceiro Ato: vv 25-27: a Bíblia

Agora, e só agora, depois de ter criado o ambiente e escutado a realidade, é que Jesus usa a Escritura. Ele frisa que eles “custam para entender e demoram para acreditar em tudo o que os profetas falaram” (v. 25). Notemos bem - não custaram para “saber”, mas para “entender e acreditar”. Pois eram judeus piedosos, que, mesmo sendo analfabetos, conheciam de cor os salmos e as profecias. O problema deles era, que embora conhecessem o livro da Bíblia, e também o livro da vida, eles não conseguiam ligar as duas coisas. Então Jesus “explica” as Escrituras - isto é, Ele não dá uma aula de exegese, mas faz a ligação entre a vida deles e a Bíblia, iluminando a sua realidade com a Palavra de Deus.

 

            Quarto Ato: vv 28-32: a partilha

            Chegando em Emaús, os discípulos convidam Jesus para entrar a e jantar com eles. Se realmente se trata de um casal, então seria entrar na sua casa, no aconchego do seu lar, e não numa hospedaria, como normalmente a gente supõe. Aqui temos o ponto central da história - pois até agora a explicação bíblica, por tão bonita que pudesse ter sido, não mudou a vida deles. Mas, agora sim. Jesus se põe à mesa e: “tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles” (v. 30). De propósito, Lucas usa as palavras que recordam a Última Ceia. É a experiência da partilha, da comunidade! Agora o milagre acontece: “Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus” (v. 31).

            Neste mesmo momento, Jesus desaparece da frente deles! Por quê? Porquê, uma vez feita a experiência da presença do Ressuscitado no meio deles, eles não precisavam mais da “muleta” da sua presença física. Agora eles caem dentro de si e reconhecem que “estava o nosso coração ardendo quando Ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?” (v. 32)

            A Bíblia é capaz de fazer “arder o coração”, mas para “abrir os olhos” é necessária também a experiência de comunidade, de celebração, de partilha!

 

            Quinto Ato: vv 33-36: a missão

            Se a história terminasse aqui, seria a história de uma experiência bonita feita por duas pessoas. Isso não basta. Tal experiência da presença do Senhor Ressuscitado exige a formação de uma comunidade fraterna de missão. Os mesmos dois que de manhã fugiam de Jerusalém, lugar da morte, da perseguição, do fracasso, de tardezinha se põem no caminho de volta! O que mudou em Jerusalém durante o dia? Nada! Continua sendo o lugar de perigo, de morte, de perseguição. Mas, mudou a cabeça dos dois. Em lugar de uma fé pré-pascal, eles agora têm uma fé pós-pascal. Em lugar de desânimo, há entusiasmo e coragem, pois, experimentaram a presença de Jesus Ressuscitado. A história que começou com a comunidade se desintegrando, termina com a comunidade se reintegrando, se unindo, na paz e na alegria, pois puderam confirmar: “Realmente, o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão” (v. 34).

E os dois de Emaús puderam contar:   “O que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus quando ele partiu o pão” (v. 36).

            Essa história pode servir para nós como paradigma de um círculo bíblico, grupo de reflexão, ou seja, qual for o nome que nós damos às nossas pequenas comunidades. Jesus liga quatro elementos essenciais - a realidade, a Bíblia, a celebração partilhada e a comunidade. É na união entre estes elementos que se revela a presença do Ressuscitado e a vontade de Deus. É na interação destes aspectos da vida cristã que a Bíblia se torna “Lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho” (Sl 119, 105). Procuremos unir estes elementos nas nossas reuniões e encontros, e descobriremos como se concretiza o desejo do Salmista: “Oxalá vocês escutem hoje o que Ele diz” (Sl 95, 7).

 


QUARTO DOMINGO DE PÁSCOA (29 de abril de 2012)

Jo 10, 11-18

“O bom pastor se despoja da própria vida por suas ovelhas”

 

            Conforme a Tradição, hoje é o dia Mundial de Oração pelas Vocações, ou “Domingo do Bom Pastor”. O texto de hoje nos demonstra a compreensão que a Comunidade do Discípulo Amado tinha da paixão, morte e ressurreição de Jesus.

A imagem escolhida é a do “pastor” - uma imagem muito usada nos escritos do Antigo Testamento (Sl 40, 11; Ez 34, 15; 37, 24; Eclo 18, 13; Zc 11, 17; etc.). Às vezes é aplicada ao próprio Deus (Sl 23, 1; Is 40, 11; Jr 31, 9), às vezes ao futuro rei messiânico (Sl 78, 70-72; Ez 37, 24), às vezes aos líderes político-religiosos de Israel (Jr 2, 8; 10, 21; 23, 1-8; Ez 34). Também os Evangelistas Sinóticos a usaram bastante (Mc 6, 34; 14, 27; Mt 9, 36; 18, 12-13; 25, 32; 26, 31; Lc 15, 3-7). Jesus é realmente pastor, pois Ele, o Filho do Homem, participa da condição humana, inclusive da morte, para nos conduzir à vida eterna. A palavra grega aqui usada para “bom”, “kalos”, significa “ideal” ou “nobre” e não somente eficiência na sua função. Assim é Jesus, pois livremente despoja-se da sua própria vida para salvar a vida do seu rebanho.

            O texto contrasta a ação de Jesus com a atuação dos pastores mercenários, que não defendem o rebanho, mas somente cuidam dos seus próprios interesses. Aqui o texto está enraizado na tradição profética de Ezequiel (Ez 34) que condenava os “maus pastores” do povo de Deus - os líderes religiosos e políticos do seu tempo (antes do Exílio e nos anos entre a primeira deportação para Babilônia e a destruição de Jerusalém em 587 aC) , que somente exploravam o povo para o seu próprio proveito, abandonando-o na horas de maior necessidade. Quanta coisa do tempo de Ezequiel e de Jesus pode ser aplicada quase que diretamente a muitos líderes políticos (e às vezes religiosos) dos nossos tempos!

O trecho destaca o verbo “conhecer” - Jesus conhece as suas ovelhas como conhece o Pai e é conhecido pelo Pai. “Conhecer”, na linguagem bíblica, não significa um saber intelectual, mas implica um relacionamento íntimo de amor e solidariedade. O conhecimento que Jesus tem dos seus discípulos nasce e se plenifica no amor que existe entre o Pai e o Filho. Não é um amor só de emoções ou sentimentos, mas um amor exigente, de assumir o outro até o ponto de doar a vida. Assim, a morte na Cruz - assumida livremente por Jesus - é a expressão suprema desse amor.

            Mas, o amor não pode se restringir aos irmãos e irmãs da comunidade. A utopia proposta por Jesus é da união entre todos “os seus” - todos os povos do mundo. Aqui, talvez haja uma referência às outras comunidades não-joaninas do tempo do escrito, mas também podemos aplicar o texto à missão universal da Igreja - a de colaborar na realização do Reino de Deus, pois todos os povos do mundo, sem distinção de raça, cor, cultura ou religião, são misteriosamente ligados a Jesus, morto e ressuscitado. Não devemos imaginar esse sonho como um crescimento da Igreja visível até que toda a humanidade faça parte dela; mas, muito mais como a realização do pedido do Pai-nosso - “seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu”, onde se procura o bem, a justiça e a fraternidade, mesmo fora da Igreja visível, onde se realiza o Reino, ou Reinado, de Deus.

            Como seguidores do Bom Pastor também somos convidados à vivência desse mesmo amor que exige o despojo da própria vida. Isso não implica necessariamente a morte física, mas, a morte ao egoísmo, e a todos os “ismos” que nos dividem e separam, seja por causa do gênero, raça, cor, classe ou cultura. Onde há luta em defesa da vida, lá existe a missão do Bom Pastor. Ele que veio “para que todos tenham a vida e a tenham plenamente!” (Jo 10, 10)

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Pe. Tomaz Hughes, SVD

E-mail: thughes@netpar.com.br

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Jornalismo com ética e solidariedade.