Theresa Catharina de Góes Campos

 
Homilias Junho/Julho/2013 e Terra Santa

 

Reflexões Homiléticas para Junho de 2013

Pe. Tomaz Hughes, SVD

E-mail: thughes@netpar.com.br

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NONO DOMINGO COMUM (02.06.13)

Lucas 7, 1-10

“Senhor, eu não sou digno...”

 

            A nossa leitura de hoje inspirou a frase tão conhecida que usamos na Missa antes da Comunhão: “Senhor, eu não sou digno de que entres na minha casa, mas diga uma só palavra e serei salvo” (v. 6). A profissão de fé em Jesus, feita por um desconhecido oficial romano, à beira do Mar da Galiléia, tornou-se a expressão da realidade de quem ousa aproximar-se da mesa eucarística. É na mesma hora um reconhecimento da nossa fraqueza e também da grandeza e gratuidade de Deus, que supera qualquer falha nossa.

            A história situa-se bem dentro da política lucana (Lucas) de nunca falar mal dos romanos (uma visão bem diferente da política de João no Apocalipse). Lucas é um grego, e tem outra experiência do Império Romano do que os oprimidos judeus da Palestina - uma experiência de opressão e exploração que os levaria a duas guerras sangrentas e desastrosas, de 66/72 d.C e de 132/135 d.C. Também, o autor quer respeitar os seus destinatários - nas comunidades das cidades gregas do Império - muitos dos quais ligados às instituições romanas e imperiais.

            O oficial na história era pagão, não judeu, mas pertencia ao grupo conhecido como “tementes a Deus”. Isso é, simpatizantes do judaísmo, crentes no Deus único, mas não pertencentes oficialmente à religião judaica. No Império Romano muitos pagãos estavam cansados da idolatria e da imoralidade que marcavam a sociedade, e admiravam o monoteísmo e a seriedade ética do judaísmo. Mas, se recusavam a assumir a prática da circuncisão e outros ritos. O oficial em questão deve ser visto nesse contexto.

            Mas, ele, embora sendo pagão, manifesta mais fé do que os próprios judeus - a ponto de causar a exclamação de Jesus:

            “Ouvindo isso, Jesus ficou admirado. Voltou-se para a multidão que o seguia, e disse: “Eu declaro a vocês que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé!” (v. 9).

Com profundo respeito, ele nem pede que Jesus entre na sua casa - pois tal ação deixaria Jesus ritualmente impuro! Tem confiança absoluta em Jesus - basta a palavra d’Ele para que a cura se concretize! Aqui temos mais um exemplo do interesse de Lucas em enfatizar o poder da Palavra de Jesus (por exemplo, na versão lucana da cura da sogra do Pedro, Jesus não toca nela, como em Marcos, mas só ameaça a febre, e com a sua palavra, essa deixa a mulher - Lc 4, 39).           

            Um pagão serve de exemplo para a multidão! Na boca de alguém considerado “impuro” se expressa a mais profunda fé! Quantas vezes a mesma coisa acontece hoje - pessoas consideradas impuras, ou tolas, ou ignorantes, dão lição de fé a nós, às vezes formados na teologia, praticantes dos sacramentos, estudiosos da religião? A fé não depende do grau do estudo - é uma atitude profunda que brota da intimidade com Deus.

            É de notar também a prontidão com que Jesus atende o pedido para ajudar o oficial. Embora esteja consciente que o homem é estrangeiro e pagão, a compaixão faz com que Jesus não se amarra aos limites costumeiros da prática religiosa do seu tempo, mas se prontifica até a entrar na casa de um “impuro”, pois para Jesus, ninguém pode ser taxado de impuro.

            “Senhor, dê-nos a fé do oficial romano, e de muita gente simples e humilde. Diga uma só palavra e a nossa falta de fé será curada! Ajude-nos também a cultivar a compaixão que derruba as barreiras artificialmente criadas por causa da etnia, cultura, religião ou condição de vida.”

 

DÉCIMO DOMINGO COMUM (09.06.13)

Lucas 7,11-18

 

            Novamente nos deparamos com um dos temas centrais de Lucas: a compaixão de Jesus, ou melhor, a compaixão de Deus manifestada em Jesus. Em qualquer sociedade, em qualquer época, a morte do filho único de uma viúva seria trágica. Mas, na sociedade patriarcal do tempo de Jesus, mais ainda. Pois uma mulher, sem marido e sem filho, seria totalmente desamparada, sem segurança qualquer. “Ao vê-la, o Senhor teve compaixão dela” (v. 13).

            Ele nem a conhecia, não sabia se era ‘gente boa”, “gente de fé”, ou não. Bastava ver o seu sofrimento para que Jesus sentisse compaixão dela. Lucas aqui desafia a todos nós para que superemos o moralismo e a mania de julgar, para simplesmente ver as pessoas com os seus sofrimentos, como Jesus as vê; para termos “coração de carne e não coração de pedra” (Ez 36, 26). Peçamos este dom - pois realmente é uma graça de Deus!

            Jesus disse-lhe “Não chore!” Quantas vezes ouvimos estas palavras de “pano quente” dirigidas às pessoas sofridas, para que escondam o seu pranto e parem de nos incomodar. Mas, na boca de Jesus, não são meras palavras paliativas; mas, garantia de esperança! Ele não conforta com palavras vazias, mas faz o que pode. Tais palavras só têm sentido quando pronunciadas por pessoas solidárias, que tomam passos concretos para aliviar as dores alheias.

            “E Jesus o entregou à sua mãe” (v. 15b). Com essa frase, Lucas evoca a figura do Profeta Elias, que devolveu o filho único morto à viúva de Sarepta (1Rs 17, 23). Nesse gesto de Jesus, feito em solidariedade e com compaixão, a multidão vê a presença do Deus misericordioso e amoroso: “Glorificavam a Deus dizendo: “Um grande profeta apareceu entre nós, e Deus veio visitar o seu povo” (v. 16).

            É certo que nós não temos poder de ressuscitar fisicamente os defuntos – mas, podemos lutar pela vida, pela saúde, contra a morte prematura, em favor de um sistema social adequado de saúde! Podemos ressuscitar pessoas desanimadas, com palavras de coragem e ânimo: “O Senhor Javé me deu a capacidade de falar como discípulo, para que eu saiba ajudar os desanimados com uma palavra de coragem.” (Is 50, 4)

Podemos sentir e manifestar compaixão, ser solidários, ser sinal da presença do Deus de vida. Lucas nos desafia mais uma vez, para que a nossa vivência cristã leve os sofridos a dizer: “Realmente Deus visitou o seu povo!”

                       

DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO COMUM (16.06.13)

Lucas 7, 36 - 8, 3

“A quem foi perdoado pouco, demonstra pouco amor”

 

            O trecho de Lucas de hoje - por sinal riquíssimo - trata de três temas característicos desse Evangelho:

                        - a misericórdia de Deus;

                        - o relacionamento de Jesus com as mulheres;

                        - o perigo que todos nós corremos de nos considerarmos “justos”, desprezando os outros.

            Lucas é um verdadeiro artista de palavras. Seria quase impossível ler ou ouvir esse trecho sem imaginar a cena. Jesus e os convidados, não sentados à mesa, como nós no Ocidente, mas reclinados sobre almofadas; a chegada da mulher, desprezada na vila por todos, com certeza sentindo-se humilhada, mas movida por uma força maior que a faz enfrentar corajosamente o desprezo dos outros e penetrar por dentro da casa de um fariseu - coisa inédita! Mas quem é impulsionado pelo amor e pela experiência de Deus não mede esforços. Depois, as lágrimas - não de tristeza, mas de gratidão, de alívio, de uma profunda alegria do ser - o enxugar dos pés, o perfume.

            E a reação de Simão, o fariseu! Ele, que se julga “justo” e não “pecador” - com razão, segundo os critérios da sociedade e da religião oficial do tempo - se dá o direito de julgar tanto a mulher, como a Jesus. Para ele, como para muitos de nós, ser justo é cumprir as leis, e assim deixar de ser pecador. Cumprir as leis, Simão faz com afinco! Assim, ele se justifica (se torna justo), dispensando, na realidade, a graça e o perdão de Deus. Quem considera que não esteja necessitado de perdão, jamais será capaz de entender a sua força transformadora, que nos capacita para o amor.

            Jesus, porém, reage de uma maneira bem diferente. Através da parábola dos dois devedores, ensina que é a experiência de ser perdoado que leva ao amor. Não o contrário! A mulher na história não foi perdoada porque ela antes muito amou, mas muito amou porque ela foi antes perdoada! O amor é a consequência da ação do perdão de Deus. Quem nunca foi perdoado, dificilmente vai perdoar; quem nunca foi amado, terá dificuldade em amar. O perdão de Deus não é a reação d’Ele à nossa iniciativa de amar - pelo contrário, é Deus quem toma a iniciativa de perdoar, e essa experiência de sermos perdoados nos capacitará para que possamos amar. O nosso amor é a nossa resposta à iniciativa gratuita e amorosa do Pai - não temos que conquistar este amor e este perdão, nem merecê-los, mas aceitá-los, assumi-los e responder a eles. Com certeza, esta mulher deve ter se encontrado antes com Jesus na vila e, talvez pela primeira vez sentiu-se amada e perdoada por Deus. Assim, transborda de alegria e emoção, fazendo o que fez na casa do fariseu.

            Todos nós corremos o risco de agirmos como Simão! A formação dele, rígida e legalista, o impediu de acolher a mulher e também de reconhecer em Jesus a compaixão e misericórdia de Deus. Muitas vezes, temos recebido uma formação espiritual que na verdade era em grande parte “farisaica”, baseada no cumprimento de leis e práticas externas de piedade, que são importantes, como se nós pudéssemos nos justificar diante de Deus. Temos de refazer a experiência de Paulo, fariseu ferrenho, que descobriu que nenhuma prática religiosa - por mais importante que seja - pode nos justificar. A vida de Paulo mudou quando ele fez a experiência da gratuidade do amor de Deus, e o resto da vida dele foi uma resposta a este amor gratuito. Mas, a consequência de uma formação errada pode ser de nos darmos o luxo de julgar, classificar e desprezar os outros, que são “pecadores”, conforme os nossos critérios. Cuidemos com o fermento dos fariseus!

Esse trecho dá grande destaque às mulheres. Jesus rompeu com as tradições patriarcais e machistas do Seu tempo. Não só se deixou tocar por mulheres “pecadoras” - assim, se tornando impuro conforme as leis do tempo - como se fez acompanhar nas suas andanças pela Galiléia por várias mulheres, que faziam parte do seu grupo de seguidores/as. Não é claro se Lucas salienta este ponto para refletir a grande liderança de mulheres nas suas comunidades, ou, pelo contrário, para contestar uma tendência machista de cortar esta liderança, lembrando aos seus leitores que Jesus não aceitava nenhuma discriminação baseada em gênero. Durante séculos, a Igreja, em grande parte, perdeu esta novidade de Jesus, assumindo os padrões patriarcais e machistas da sociedade dominante. Devemos voltar a esta visão de fraternidade e igualdade entre homens e mulheres, como pede o Papa João Paulo II na sua Exortação Apostólica “Vita Consacrata”, quando ele conclama as mulheres a serem protagonistas de um “novo feminismo” (VC 58): “Por certo, não se pode deixar de reconhecer o fundamento de muitas reivindicações relativas à posição da mulher nos diversos âmbitos sociais e eclesiais. Do mesmo modo, é forçoso assinalar que a nova consciência feminina ajuda também os homens a reverem os seus esquemas mentais, o modo de se autocompreenderem, de se colocarem na história e de a interpretarem, de organizarem a vida social, política, econômica, religiosa, eclesial.” (VC 57).

Que o Evangelho de Lucas nos ajude a recuperarmos as atitudes de Jesus, para que as nossas comunidades sejam realmente comunidades de fraternidade, igualdade, perdão, misericórdia e amor!

 

DÉCIMO SEGUNDO DOMINGO COMUM (23.06.13)

Lucas 9, 18-24

“Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e me siga”

 

            Aqui temos a versão lucana (Lucas) da profissão de fé de Pedro, que Marcos põe no caminho de Cesaréia de Filipe (Mc 8, 27-35) e coloca como pivô de todo o seu evangelho. Este trecho levanta as duas perguntas fundamentais de todos os evangelhos:

            - quem é Jesus?

            - o que é ser discípulo d’Ele?

São duas perguntas interligadas, pois a segunda resposta depende muito da primeira. A minha visão de Jesus determina a maneira do meu seguimento d’Ele.

            O Evangelho de Lucas situa o texto em um contexto diferente dos outros dois Evangelhos Sinóticos - diz que Jesus “estava rezando em um lugar retirado, e os discípulos estavam com ele”, enquanto em Marcos e Mateus o evento se dá na estrada de Cesaréia de Filipe. Uma atitude típica de Jesus em Lucas. Muitas vezes no Terceiro Evangelho, especialmente antes de momentos importantes na sua vida, Jesus se acha em oração. Pois Ele não faz nada por vontade própria, mas escutando a vontade do Pai.

            O diálogo começa com uma pergunta um tanto inócua: “Quem dizem as multidões que eu sou?” É inócua, pois não compromete - o “diz que” não compromete ninguém, pois expressa a opinião dos outros. Por isso, chovem respostas da parte dos discípulos: “João Batista, Elias, um dos antigos profetas que ressuscitou!” Mas, Jesus não quer parar aqui, - esta pergunta foi só uma introdução. Depois vem a facada!:

            “E vocês, quem dizem que eu sou?” Agora, não chovem respostas, pois quem responde vai se comprometer - não será a opinião dos outros, mas a opinião pessoal! Esta opinião traz consequências práticas para a vida. Finalmente, Pedro se arrisca: “O Messias de Deus”. (Os termos “Messias” em hebraico e “Cristo” em grego têm o mesmo sentido = o Ungido de Deus.)

Mas, a reação de Jesus é no mínimo estranha!: “Ele proibiu severamente que eles contassem isso a alguém”. Que coisa esquisita! Jesus proíbe que se fale a verdade sobre ele! Como é que ele espera angariar discípulos deste jeito? O assunto merece mais atenção.

            Realmente, Pedro acertou em termos de teologia, de “ortodoxia”, conforme diríamos hoje. Ele usou o termo certo para descrever Jesus. Mas, Jesus quer esclarecer o que significa ser “O Messias de Deus”. Pois, cada um pode entender este termo conforme a sua cabeça, conforme os seus desejos. Jesus quer deixar bem claro que ser “messias”, para ele, é ser o “Servo Sofredor” de Javé. É vivenciar o projeto do Pai, que necessariamente vai levá-lo a um choque com as autoridades políticas, religiosas, e econômicas, enfim, com a classe dominante do seu tempo:

            “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto, e ressuscitar no terceiro dia” (v 22). Essa visão que Jesus tinha do Messias, não era a comum - em geral o pessoal esperava um messias triunfante, glorioso e guerreiro. O relato em Marcos (mas não a versão em Lucas) nos mostra que Pedro partilhava essa visão errada, ao ponto de tentar corrigir Jesus, e de ganhar de Jesus uma correção dura: “Fique atrás de mim, Satanás! Você não pensa as coisas de Deus, mas as coisas dos homens” (Mc 8, 33).

Não basta ter os termos e títulos certos - temos que ter o conteúdo certo. Normalmente, todos nós temos os títulos certos para descrever Jesus e a sua missão - aprendemos desde a infância, desde a catequese para a Primeira Comunhão. Mas, o que significam esses títulos para nós na nossa vivência diária? Professamos que Jesus é o Cristo, o Salvador, o Redentor, o Filho de Deus - mas como ‘de quê a minha vida é diferente porque tenho essa crença? Ele realmente é o meu Senhor, o meu Salvador, da maneira que procuro reproduzir e atualizar as suas opções e atitudes na minha vida, não somente no que creio, mas nas minhas atitudes na vida pública, profissional, familiar e social? A Bíblia nos conta que Deus criou o homem e a mulher na sua imagem e semelhança; mas, na verdade, nós criamos Deus em nossa imagem, e semelhança, para que ele não nos incomode. A nossa tendência é de seguir um messias triunfante, e não o Servo Sofredor. Mas, para Jesus, não há meio-termo. O discípulo tem que andar nas pegadas do seu mestre: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome cada dia a sua cruz, e me siga” (Lc 9, 23).

            O seguimento de Jesus leva à cruz, pois a vivência das atitudes e opções d’Ele vai nos colocar em conflito com os poderes contrários ao Evangelho. Carregar a cruz, não é aguentar qualquer sofrimento, não. Assim, a religião seria masoquismo! Carregar a cruz é viver as consequências de uma vida coerente com o projeto do Pai, manifestado em Jesus. Segui-Lo não é tanto fazer o que Jesus fazia, mas o que Ele faria, se estivesse aqui hoje. Como Ele foi morto, não pelo povo, mas por grupos de interesse bem claros “os anciãos, os chefes dos sacerdotes e os doutores da Lei” (a elite dominante em termos econômicos, religiosos e ideológicos), os seus seguidores entrarão em conflito com os grupos que hoje representam os mesmos interesses. Por isso, sempre haverá a tentação de criarmos um Jesus “light”, sem grandes exigências, limitado a uma religião intimista e individualista, sem consequências políticas, econômicas ou ideológicas. Seria cair na tentação de Pedro, conforme o relato de Marcos.

            O texto faz ressoar para cada um de nós as duas perguntas de Jesus. É fácil responder o que os homens dizem d’Ele - o que dizem o Papa, o Bispo, o catequista, os teólogos, a TV. Mas esta pergunta não é tão importante. É a segunda que cada um tem que responder: “Quem é Jesus para mim?” E a resposta se dará não tanto com os lábios, mas com as mãos e os pés. Respondemos quem é Jesus para nós, pela nossa maneira de viver, pelas nossas opções concretas, pela nossa maneira de ler os acontecimentos da vida e da história. Tenhamos cuidado com qualquer Jesus que não seja exigente, que não traz consequências sociais, que não nos engaja na luta por uma sociedade mais justa. Pois, o Jesus real, o Jesus de Nazaré, o Jesus do Evangelho, não foi assim, e deixou bem claro: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome cada dia a sua cruz, e me siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perde a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9, 24)

 

FESTA de SÃO PEDRO e SÃO PAULO (30.06.13)
Mt 16, 13-20
“E vocês, quem dizem que eu sou?”

 

Aqui temos a versão mateana (Mateus) da profissão de fé de Pedro, que Marcos (Mc 8, 27-35) coloca como pivô de todo o seu evangelho. Este trecho levanta as duas perguntas fundamentais de todos os evangelhos: quem é Jesus? O que é ser discípulo d’Ele? São duas perguntas interligadas, pois a segunda resposta depende muito da primeira. A minha visão de Jesus determinará a maneira do meu seguimento d’Ele.

Como refletimos domingo passado sobre a versão lucana desse texto (Lc 9, 18-24), remetemo-nos àquela reflexão e aqui somente assinalaremos alguns poucos pontos a mais, já levando e conta o que foi escrito para dia 23 de junho.

Depois de Jesus interrogar duas vezes os discípulos, o texto de Mateus acrescenta vv. 17-19, pois quer destacar o papel de Pedro (e, por conseguinte, dos líderes da sua própria comunidade), na função de ligar e desligar da comunidade, que nos Evangelhos somente aqui e em Cap. 18 é chamada de “Igreja”. “As chaves do Reino” não se refere aqui ao poder de perdoar pecados, mas de integrar e desligar pessoas da comunidade dos discípulos.

            O fundamento, o alicerce, a pedra fundamental dessa comunidade é o conteúdo da profissão de Pedro “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”. Mas continuam no ar as duas perguntas que são o cerne do Evangelho: “Quem é Jesus?”, e “o que significa segui-Lo?” Pois os termos que Pedro usa são ambíguos, porque cada um os interpreta conforme a sua cabeça. Por isso, Jesus toma uma atitude, aparentemente estranha: “Ele ordenou os discípulos que não dissessem a ninguém que ele era o Messias!”

Que coisa esquisita! Jesus proíbe que se fale a verdade sobre ele! Como é que Ele espera angariar discípulos deste jeito? O assunto merece mais atenção.

            Realmente, Pedro acertou em termos de teologia, de “ortodoxia”, conforme diríamos hoje. Ele usou o termo certo para descrever Jesus. Mas, Jesus quer esclarecer o que significa ser “O Messias de Deus”. Pois cada um pode entender este termo conforme os seus desejos. Jesus quer deixar bem claro que ser “messias” para Ele é ser o “Servo de Javé”. É vivenciar o projeto do Pai, que necessariamente vai levá-lo a um choque com as autoridades políticas, religiosas, e econômicas, enfim, com a classe dominante do seu tempo, e não o Messias nacionalista e triunfalista das expectativas de então. Pedro teve que aprender essa exigência do discipulado, de uma maneira lenta e dolorosa, passando até pela negação de Jesus na noite da sua prisão. Aprendeu tão bem que chegou a dar a sua vida como mártir, também morrendo, conforme a tradição, em uma cruz, no Circo de Nero em Roma, onde atualmente se localiza a Basílica que traz o seu nome. Aprendeu a duras penas ser discípulo de verdade e cumprir a missão que recebeu de Jesus na Última Ceia: “Eu rezei por você, para que a sua fé não desfaleça. E você, quando tiver voltado para mim, fortaleça os seus irmãos” (Lc 22, 32). Aqui temos o essencial do ministério petrino (Pedro), continuado no Papa - confirmar e fortalecer a fé dos irmãos e irmãs. A Igreja sempre deve zelar que acréscimos históricos, mais adequados a monarcas do que a discípulos, não escondem essa missão essencial.

Paulo, que durante os seus primeiros anos da vida adulta, perseguia os discípulos, também teve a graça da conversão, chegando a afirmar que não queria saber nada a não ser Jesus Cristo e Jesus Cristo Crucificado! (1Cor 1, 2). Ele também pagou com a sua vida essa decisão pelo discipulado.

No nosso tempo, quando é moda apresentar um Jesus “light”, sem exigências, sem paixão, sem Cruz, sem compromisso com a transformação social, o texto nos desafia para que clarifiquemos em qual Jesus acreditamos. O Jesus quebra-galho, que existe para resolver os meus problemas pessoais, tão propagado por setores da mídia e por diversos movimentos e pregadores, ou o Jesus bíblico, o Servo de Javé, que veio para dar a vida em favor de todos?

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Pe. Tomaz Hughes, SVD

E-mail: thughes@netpar.com.br

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Reflexões Homiléticas para Julho de 2013

Pe. Tomaz Hughes, SVD

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DÉCIMO QUARTO DOMINGO COMUM (07.07.13)

Lucas 10, 1-12.17-20

                             “O Senhor os enviou dois a dois”

 

O discípulo existe para a missão, e não se entende fora dela. Jesus não cogitava levar adiante a sua missão sem a colaboração, não só dos Apóstolos, mas de muitos discípulos e discípulas. É assim ainda hoje - a missão de evangelização não compete somente aos que são constituídos oficialmente como pastores da Igreja, mas a todos, em virtude do nosso batismo. É uma tarefa comunitária - simbolizada pelo fato que Jesus não mandou os setenta e dois discípulos individualmente, mas de dois a dois.

            Se naquela época a colheita já era grande, o que dizer de hoje? O que diria Jesus das massas enormes dos conglomerados urbanos, as selvas de pedra que são as nossas grandes áreas metropolitanas, com os seus bolsões de miséria, as suas massas sobrantes, a seu anonimato? Mais do que nunca, torna-se urgente o pedido do Senhor: “Peçam ao dono da colheita que mande trabalhadores para a colheita” (v. 2).

Não devemos reduzir este pedido à oração pelas vocações sacerdotais e religiosas, por tão necessárias que sejam; mas, peçamos que todos os cristãos assumam a sua missão de ser continuadores da missão de Jesus, no mundo de hoje. Pois, é possível que o “dono da colheita” mande operários, e que eles se recusem de ir!

            Jesus disse que estava mandando-os como “cordeiros entre lobos”- uma missão aparentemente impossível! Continua a fazê-lo - pois quem vive a mensagem evangélica humanamente falando é cordeiro diante dos lobos vorazes do “evangelho” de competitividade e lucro, os violentos partidários da concentração das terras e da renda! Mas, esta fraqueza é a fraqueza de Deus que, mais tarde, Paulo descreveria como “mais forte do que os homens”(1Cor 1, 26)!

            Os discípulos evangelizadores não iam como conquistadores ou dominadores, não iam com a força das armas, como infelizmente aconteceu tanto na história do Brasil e da América Latina. Trouxeram a mensagem da “paz” - não a paz como “o mundo a dá”, mas o “Shalom”, a paz que só pode vir da presença de Deus, a paz que pode existir no meio de sofrimento, a paz que ninguém pode tirar. Eles deviam assumir a condição dos seus ouvintes, não ir de casa em casa em busca de “coisa melhor”. Pois, a missão e o discipulado exigem desprendimento e encarnação.

            A proclamação deles, onde eram bem recebidos, era “O Reino de Deus está próximo”! Pois, onde existe qualquer gesto de amor, de fraternidade, de solidariedade, existe já o Reinado de Deus. Só o fato de alguém abrir-se para o Evangelho traz a presença do Reino; só o fato de alguém se dispor a levar o Evangelho, faz presente o Reino! Pois, o Reino não se constrói de coisas extraordinárias, mas de pequenos gestos. As armas do evangelizador não são “qualidade total”, eficiência, eficácia humana, razão instrumental, - mas amor, solidariedade, acolhida. Evangelizar não é em primeiro lugar propagar uma doutrina, mas tornar presente a pessoa e o projeto de Jesus de Nazaré.

            Mesmo rejeitados, os discípulos deviam proclamar: “Apesar disso, saibam que o Reino de Deus está próximo”. Pois, nada pode impedir o crescimento do Reino, que é como “a semente que o agricultor semeia. Ele dorme e ela cresce sem que ele saiba como”. Isso nos deve animar muito como evangelizadores. É preciso que nós semeemos, sem nos preocuparmos com os resultados, pois “Paulo é quem planta, Apolo rega, mas é Deus que faz crescer” (1Cor 3, 6).

            Quem se esforça na evangelização pode cansar, pode sofrer, mas terá uma alegria profunda: “E os setenta e dois voltaram muito alegres, dizendo: “Senhor, até os demônios obedeçam a nós por causa do teu nome” (v. 17). Porém, o motivo da alegria não deve ser por causa dos prodígios feitos, mesmo quando podemos “pisar em cima de cobras e escorpiões” (v. 19), mas porque, pela força do Evangelho, conseguimos expulsar os demônios do mal, da opressão, da divisão, do ciúme, que destroem o relacionamento humano. Devemos sentir alegria porque o Reino está crescendo inexoravelmente, - e somos instrumentos deste Reino. Sejamos, seja qual for a nossa vocação, situação ou profissão, “trabalhadores da colheita”! Pois não há cristão que seja dispensado deste desafio, nem lugar ou situação que não possam ser evangelizados!

 

DÉCIMO QUINTO DOMINGO COMUM (14.07.13)

Lucas 10, 25-37

“Vá, e faça a mesma coisa”

 

            A parábola do “Bom Samaritano” talvez seja, junto com a parábola do “Filho Pródigo”, a mais conhecida de todas as parábolas de Jesus. Por isso mesmo, corre o risco de ser banalizada, de não ser levada muito a sério, de ser relegada quase ao nível de folclore religioso. Merece uma atenção mais minuciosa.

            A parábola situa-se logo após Jesus ter louvado o Pai por ter “escondido essas coisas aos sábios e inteligentes e revelado aos pequeninos” (Lc 10, 21). Realmente, o primeiro a tentar atrapalhar Jesus é um “sábio e inteligente” - um especialista em leis. Lucas salienta que ele fez a pergunta: “O que devo fazer para receber em herança a vida eterna” (v.25), não porque ele se interessava pela verdade, mas “para tentar Jesus”. Devolvendo a pergunta a ele, Jesus deixa claro que o legista já sabia a resposta: “Ame o Senhor, seu Deus, como todo o seu coração, com toda a sua alma, como toda a sua força e com toda a sua mente; e ao seu próximo como a si mesmo.” Jesus simplesmente diz: “Você respondeu certo. Faça isso e viverá” (v. 28).

            Mas, com a petulância típica do pseudo-intelectual, ele insiste, “para se justificar”, com uma segunda pergunta: “E quem é o meu próximo?” (v. 29). Mas, Jesus não cai na cilada de fazer uma discussão teórica e estéril sobre quem seja o próximo - ele logo traz o debate para o nível prático da vivência. Ele conta a parábola do “Bom Samaritano”. Vejamos:

            Depois do assalto, passou pela vítima um sacerdote que “viu o homem e passou adiante pelo outro lado” (v. 31). A mesma coisa aconteceu com um levita. Por quê será que esses homens - ligados ao culto judaico - agiram assim? A resposta está nas leis de pureza daquela época. O contato com um defunto, ou com sangue, deixava a pessoa ritualmente impura, isso é, inapta para participar do culto. Como o homem estava coberto de sangue, e talvez morto, os dois não se arriscavam a tocar nele, pois, para eles o culto religioso era mais importante do que a misericórdia para com uma pessoa sofrida. Não era, em si, uma atitude somente pessoal de duas pessoas maldosas, mas demonstra uma tentação permanente de pessoas ligadas ao culto e o mundo tido como “sagrado” - o perigo de viver alienadas do mundo real, onde as pessoas vivem, sofrem, e lutam todos os dias.

            Entra em cena um samaritano. A religião dele era considerada como cheia de deformações e ignorância pelo judaísmo oficial, pois desde a invasão da Assíria em 721 a.C, a prática religiosa do povo samaritano tinha sido contaminada por religiões pagãs (2Rs 17, 24-31). Mas, quando ele vê o sofrimento alheio, ele não pensa em discussões teológicas sobre pureza, mas parte para uma ajuda prática, com misericórdia.

            Terminando a história, Jesus devolve a pergunta ao especialista em leis - mas faz uma mudança fundamental! Não faz a pergunta teórica “quem é o meu próximo”, mas uma pergunta prática “quem se fez próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” A primeira pergunta só levaria a uma discussão vazia; a de Jesus leva a uma mudança de prática vivencial.

            Forçado a reconhecer que quem se fez próximo do sofredor era o samaritano, o legista ouviu da boca de Jesus a conclusão: “Vá e faça a mesma coisa” (v. 37).

Com essa parábola, Jesus quer ensinar que nada, nem o culto, tem prioridade sobre a ajuda a uma pessoa necessitada. A religião de Jesus não é teoria, é prática de misericórdia, pois, Deus é misericordioso. Como diz o Evangelho de Mateus, baseando-se em Oséias 6, 6: “Aprendam, pois, o que significa: “Eu quero a misericórdia e não o sacrifício”. Porque, eu não vim chamar justos, e sim pecadores”(Mt 9, 13). O legista já sabia a orientação da Escritura, mas tentava escapar das suas consequências, criando discussões inúteis. Nós também sabemos o que diz a Bíblia, - não tentemos esvaziá-la com debates estéreis sobre quem é “o pobre”, “o aflito”, “o próximo”, “o bom”. Façamos o que Jesus ensina nessa parábola “e viveremos”.

 

DÉCIMO SEXTO DOMINGO COMUM (21.07.13)

Lucas 10, 38-42

“Uma só coisa é necessária”

 

            Mais uma vez, o Evangelho de Lucas destaca o fato que Jesus e os seus discípulos “caminhavam”. É caminhando que se faz caminho, e é no caminho que se aprende o que é ser discípulo de Jesus. Todos nós estamos “no caminho”, como Jesus e os outros, só que a nossa caminhada não se mede em quilômetros, mas em anos!

            O Evangelho de hoje frisa muito o lado afetivo de Jesus e dos seus discípulos e discípulas. Jesus se dirige à casa de uma família em Betânia, perto de Jerusalém. Era o lugar predileto onde Jesus procurava - e recebia - aconchego humano, carinho, afeto, amizade, acolhimento; onde podia refazer as suas forças nas suas caminhadas evangelizadoras. Do Evangelho do Discípulo Amado aprendemos que: “Jesus amava Marta, a irmã dela e Lázaro” (Jo 11, 5). Este tipo de relacionamento humano é necessário para que formemos verdadeiras comunidades cristãs - e quantas vezes dispensamos esse elemento fundamental!

            É gritante a diferença de gênio das duas irmãs! Marta, provavelmente a mais velha, preocupada com os seus afazeres - afinal tinham chegado hóspedes para uma refeição, e tinham que ser bem tratados; Maria, calma, senta-se aos pés do Senhor, para escutar a Palavra. De repente, ressoa o desabafo de Marta: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço? Manda que ela venha ajudar-me!” (v. 40). Instintivamente, a nossa simpatia fica com a Marta. Qual é a mãe da família, a dona de casa ou o anfitrião de visita que não sentiria o que Marta sentia? Por isso mesmo, chama a atenção a resposta do Senhor: “Marta, Marta! Você se preocupa e anda agitada com muitas coisas; porém, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada.” (v. 41s).

            Uma coisa é óbvia - Jesus não está defendendo a preguiça, a omissão, a exploração do trabalho dos outros! Num mundo agitado como é o nosso, que não nos deixa tempo para cultivar o relacionamento humano, a amizade, a oração, o nosso próprio ser, esta resposta nos faz lembrar a importância de viver de uma maneira que prioriza as coisas. É óbvio que nós temos que preocuparmo-nos com os afazeres, os trabalhos, - mas na verdade, quantas vezes nós enchemos os nossos dias com ativismo, atividades fúteis, agitação, - e assim não conseguimos escutar nem nós mesmos, nem os irmãos, nem o próprio Deus!

            Jesus aqui questiona a agitação e o ativismo - que não se mede pelo número de atividades. O ativismo é uma fuga, uma fuga de um encontro com os anseios mais profundos do nosso ser, dos apelos de Deus, refugiando-nos em um número sem fim de atividades sem objetivos claros, sem organização, sem rumo. A atitude de Maria é a de uma discípula, que aprende viver de maneira nova, ouvindo e ruminando a Palavra de Deus, uma palavra que pode levar à muita atividade, mas nunca ao ativismo.

            Jesus de forma alguma quer menosprezar a Marta. Aliás, diversas vezes os evangelhos põem Marta em mais relevo do que Maria. O próprio Lucas diz que foi Marta que recebeu Jesus na sua casa (v. 38). Em João, é Marta que faz a profissão de fé em Jesus, que nos Sinóticos é feita por Pedro: “Sim, Senhor. Eu acredito que tu és o Messias, o Filho de Deus que devia vir a este mundo” (Jo 11, 27). Na realidade, todos nós temos que ser “Marta e Maria”. Temos necessidade de dedicarmo-nos aos nossos afazeres, mas também é preciso achar tempo para ficarmos aos pés do Senhor. O desafio é de conseguir o equilíbrio entre os dois aspectos de vida, entre “lançar as redes” e “consertar as redes” (Mc 1, 16-20), entre “atividade” e “oração”, entre “missão” e “interiorização”. Pois, os dois lados são tão intimamente ligados que o desequilíbrio, do lado que for, trará consequências negativas para a nossa vida de discípulos e discípulas. Também aqui nos traz um alerta – com uma certa frequência: corremos o risco de sobrecarregar as pessoas leigas tão dedicadas às comunidades! Devemos sempre lembrar que elas também precisam de tempo para cultivar os seus laços familiares, de aprofundar a sua própria experiência de Deus, de descanso. Não é a vontade de Deus que alguém “se queime” de tanto serviço, mesmo na evangelização. Precisamos ser sempre “Marta e Maria”.

 

DÉCIMO SÉTIMO DOMINGO COMUM (28.07.13)

Lucas 11,1-13

“Ensina-nos a rezar!”

 

            O nosso texto de hoje nos traz o ensinamento da Oração do Senhor, na versão Lucana (Lucas). O Novo Testamento nos traz duas versões desta oração - por sinal a única oração que o Senhor nos ensinou: Lucas 11, 2-4 e Mateus 6, 9-13. Normalmente os cristãos rezam na forma mateana (Mateus), com sete petições e sem doxologia (oração de louvor). A versão lucana só tem cinco petições. A forma usada na Missa acrescenta a doxologia “porque Vosso é o Reino, o Poder e a Glória para sempre”, baseada no texto trazido pela Didaché - um documento cristão do início do segundo século. Alguns estudiosos explicam as duas formas pelo fato que Lucas e Mateus estavam se dirigindo a comunidades diferentes, com tradições diferentes. Mateus se dirigia a pessoas que tinham o costume de rezar, mas que estavam correndo o risco de orar de uma maneira muita formal e rotineira (judeu-cristãos), enquanto Lucas estava escrevendo para pessoas recém-convertidas (gentio-cristãos) e que precisavam aprender, talvez pela primeira vez, a rezar continuamente.

            Embora não haja unanimidade entre exegetas sobre qual é a forma mais original, parece que o consenso tende em favor da versão Lucana. A versão mateana apresenta a forma mais litúrgica do seu uso (p. ex. “Pai Nosso” em lugar do simples “Pai”), mas na verdade não há diferença essencial entre as duas versões. Baseando-nos no trabalho de um exegeta alemão, Joaquim Jeremias, propomos a seguinte versão como a mais aproximada às palavras aramaicas de Jesus (devemos sempre lembrar que Jesus falava em aramaico, os evangelhos foram escritos em grego, e nós os lemos em português!):

            “Querido Pai, santificado seja o Teu nome; venha o Teu Reino; o pão nosso de amanhã nos dá hoje; perdoa-nos as nossas dívidas, como queremos perdoar os nossos devedores, e não nos deixes sucumbir à Tentação”.

            Seguindo este autor, tratamos a oração como uma “oração escatalógica”, ou seja a oração da comunidade cristã que experimenta o Reino como uma realidade já presente, mas que espera e pede a sua consumação final.

            Uma chave para a compreensão lucana da Oração do Senhor, nós encontramos no primeiro versículo do texto: “Um dia, Jesus estava rezando num certo lugar. Quando terminou, um dos discípulos pediu: “Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou os discípulos dele” (Lc 11, 1). Essa frase nos faz lembrar que muitos grupos religiosos do tempo de Jesus tinham uma oração que identificasse os seus discípulos, como por exemplo, os Essênios, os Fariseus e os Batistas. Então, o discípulo de Jesus pede uma oração que pudesse identificar o seu programa de vida, como discípulos de Jesus. Aí, podemos ver a Oração do Senhor como mais do que uma oração - como um “manifesto” da nossa proposta de vivência da nossa fé. Vejamos mais de perto o texto:

 

            1. “Querido Pai” (ABBÁ):

            É possível que muita gente tenha dificuldade em rezar o “Pai Nosso” por causa da sua experiência com o seu próprio pai. Se nós tivemos um pai carinhoso, com quem desde criança nós nos sentíamos bem, então teremos facilidade de rezar a Deus como “Pai”. Mas se o nosso pai era pessoa dura, ameaçadora, sem expressão de carinho, então podemos ter mais dificuldade em poder nos relacionar com Deus como “Pai Nosso”. Outras pessoas - especialmente feministas - talvez achem que o título “Pai” para Deus traz conotações demasiadamente masculinizantes, quando não machistas. Por isso, é importante aprofundar o sentido bíblico do termo, e o que significava na boca de Jesus.

            Quando o Antigo Testamento descreve Deus como Pai, implica muito de que a nossa cultura atribui à mãe. O Antigo Testamento se refere a Deus como Pai quinze vezes e enfatiza a ternura, a misericórdia, o carinho e o amor de Deus para o seu povo. Isso fica especialmente claro nos Profetas. Vejamos alguns textos: “Serei um pai para Israel, e Efraim será o meu primogênito” (Jr 31, 9); “Será que Efraim não é o meu filho predileto? Será que não é um filho querido? Quanto mais o repreendo, mais me lembro dele. Por isso minhas entranhas se comovem, e eu cedo à compaixão - oráculo de Javé” (Jr 31, 20); “Eu tinha pensado contar você entre os meus filhos, dar-lhe uma terra invejável... esperando que você me chamasse de “Meu Pai”, e não se afastasse de mim (Jr 3, 19); “Quando Israel era menino, eu o amei; do Egito chamei o meu filho... fui eu que ensinei Efraim a andar, segurando-o pela mão... Eu os atraí com laços de bondade, com cordas de amor. Fazia com eles como quem levanta até seu rosto uma criança; para dar-lhes de comer, eu me abaixava até eles (Os 11, 1ss).

Nestes textos podemos sentir muitas das características que a nossa cultura ocidental atribui à mãe - portanto o termo “Pai” no Antigo Testamento não traz qualquer conotação machista.

            Embora o Antigo Testamento fale de Deus como “Pai” 15 vezes, jamais alguém invoca Deus como “meu Pai”, ou “nosso Pai”. O respeito do judeu diante da transcendência de Deus não permitia. Mas, nos Evangelhos nós achamos o termo “Pai” para Deus na boca de Jesus 170 vezes. Isso era coisa tão inédita que podemos ter certeza que se trata de uma palavra autêntica de Jesus e não somente proveniente da Igreja primitiva. Marcos a usa 4 vezes, Lucas 15 vezes, Mateus 42 vezes e João 109 vezes! Na comunidade do Discípulo Amado, pelo fim do primeiro século, “Pai” é o termo para Deus.

            A expressão que Jesus mesmo usava era “Abbá”, uma palavra aramaica sem sinônimo em português. Fazia parte da linguagem da intimidade do lar, um termo carinhoso usado tanto por crianças como por adultos, para o seu pai. Então, ultrapasse o sentido da palavra nossa “papai”. Devemos dar muito peso a este ensinamento de Jesus, pois embora não exista na literatura rabínica um exemplo sequer do uso do termo “Abbá” para Deus, Jesus sempre se dirigia a Deus deste jeito, exceto em Mc 15, 34 (quando na cruz, citando um salmo, ele chama Deus de “Eloí”, meu Deus). Jesus, então conversava com Deus com a segurança, intimidade e carinho com quem se conversa na ternura do seio familiar. E mais, ele autorizou os seus discípulos a usar o mesmo termo. Isso indica o novo relacionamento com Deus, que Jesus nos trouxe. É algo além do normal poder reivindicar tal relacionamento com Deus. São Paulo mantinha o termo aramaico, mesmo escrevendo em grego em Gálatas 4, 6 e Romanos 8, 15, quando ele diz: “A prova de que vocês são filhos é o fato de que Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho que clama: Abbá Pai!” (Gl 4, 6); “...receberam um Espírito de filhos adotivos, por meio do qual clamamos: Abbá, Pai!” (Rm 8, 15)

O “endereço” da oração determina não somente o nosso relacionamento com Deus, mas, com os nossos irmãos e irmãs. Pois, se Deus é o “Abbá” de todos nós, então somos todos iguais, e rezar esta oração exige que nós não nos compactuemos com qualquer coisa que nos discrimine - racismo, machismo, clericalismo, exploração etc.

            Todas as petições seguintes da oração dependem deste endereço. Pois, não estamos nos dirigindo a um Espírito perfeitíssimo, criador do céu e da terra, onipresente, onipotente e onisciente! Estamos nos dirigindo ao nosso “Querido Pai”, e é este novo relacionamento, um dom incrível do próprio Deus, que faz possível as petições. Por isso, na liturgia, a Igreja pede que se faça uma introdução à oração, como “Orientados pela Palavra de Jesus, ousamos rezar”, para que nós tomemos consciência da enormidade do dom de filiação que recebemos por Jesus.

 

            2. “Santificado seja o Teu nome”

            Na forma atual, esta petição pode expressar tanto um louvor (“Santificado seja o teu nome”), como uma petição (“Que o Teu Nome se torne santificado”). No contexto, devemos entendê-la como pedido. Podemos entender melhor a frase se voltamos de novo para um profeta do Antigo Testamento, Ezequiel: “Vou santificar o meu nome grandioso, que foi profanado entre as nações, porque vocês o profanaram entre elas. Então as nações ficarão sabendo que eu sou Javé. quando eu mostrar a minha santidade em vocês diante deles” (Ez 36, 23).

Então, com este pedido rezamos que o mundo chegue a conhecer o nome (isto é, a realidade íntima) de Deus (que Ele é o nosso “querido pai”) através da nossa vivência. Se torna uma oração missionária, com três elementos:

            - primeiro, que nós cheguemos a conhecer cada vez mais quem é Deus.

            - segundo, que o mundo chegue a este conhecimento através do nosso testemunho;

            - terceiro, que a plenitude da revelação da realidade de Deus venha logo; este é o aspecto escatológico.

 

            3. “Venha o Teu Reino”      

            O tema central da pregação de Jesus era a iminência do Reino de Deus. Se o “nome” de Deus se refere à sua natureza íntima, o “Reino” se refere à sua atividade. Pedimos aqui a consumação final do Reino. É a oração da comunidade que reconhece a presença do Reino, mas sente que ainda não é estabelecido definitivamente entre nós. Temos outros trechos do Novo Testamento que expressam este desejo com a palavra aramaica “Maranathá”, (Vem, Senhor Jesus!), por exemplo 1Cor 16, 22 e Ap 22, 20.

            A versão mateana que nós costumamos rezar, acrescenta “Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”. Isso é outra maneira de expressar a mesma ideia, pois, quando a vontade de Deus é feita na terra como já se faz no céu, então o Reino estará plenamente realizado entre nós.

 

            4. “O pão nosso de amanhã nos dá hoje”

            Os primeiros dois pedidos almejam a chegada do Reino na sua plenitude, mas as duas petições seguintes põem a ênfase sobre o “agora”, o “hoje”!

            A primeira dificuldade que enfrentamos é com a tradução, pois aqui se usa uma palavra grega “epiousios” que não é usada em outro lugar no Novo Testamento. Há quatro sentidos básicos possíveis para este termo:

            - necessário para a nossa existência;

            - para hoje;

            - para o dia que virá;

            - para o futuro.

As várias traduções usadas nas nossas bíblias (e seria bom verificar) refletem a dificuldade em ter certeza sobre o que significa o termo no contexto desta oração. Muitos exegetas concluem, com São Jerônimo, que a palavra quer dizer “dá-nos hoje o nosso pão de amanhã”.

            Aqui, “amanhã” significaria o “grande amanhã” da parusia, da consumação final do Reino de Deus. Assim estamos pedindo que nós possamos experimentar hoje o que pertence à plenitude do Reino.

            E isso tem implicações muito concretas para a nossa vivência. Pois, jamais será possível experimentar a plenitude do Reino enquanto falta o pão material na mesa dos nossos irmãos e irmãs. Quem faz este pedido se compromete com a luta por uma sociedade mais justa, mais fraterna, onde todos possam ter uma vida digna.

            Quando Jesus e os seus discípulos faziam a refeição, era muito mais do que simplesmente tirar a fome. Significava o banquete messiânico, desejado pelos profetas, onde todos teriam vida plena. Quem reza esta petição, se compromete com a concretização de uma sociedade onde “todos tenham a vida e a vida em abundância” (Jo 10, 10), coisa impossível sem o pão material nas mesas.

            Não é possível participar do banquete eucarístico, sem este compromisso concreto com a construção de um mundo sem empobrecidos, onde todos terão “o pão nosso de cada dia”.

 

            5. “E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós queremos perdoar os nossos devedores”

            Um dos grandes dons da era escatológica é o perdão. Já vimos em outros trechos como Jesus manifestava esse dom gratuito do Pai. Aqui pedimos que nós possamos experimentar esse grande dom, aqui e agora. Mas, o trecho levanta a questão da relação entre o perdão de Deus e o nosso perdão.

            A maneira que nós rezamos o “Pai Nosso” - “perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” - pode dar a impressão que estamos pedindo que Deus nos perdoe na medida em que perdoamos os outros! Se Deus vai nos perdoar conforme os critérios humanos, estamos em maus lençóis! Aqui é necessário que olhemos melhor o que significa “assim como”.

            Quase todos os estudiosos estão de acordo que esta frase não deve ser entendida como uma comparação entre o perdão de Deus e o nosso. Diversas parábolas sugerem que o perdão de Deus precede o perdão humano (Mt. 18, 23-25; Lc 7, 41-47). O nosso perdão é consequência e resposta ao perdão de Deus. Sendo perdoados, não temos desculpa para não perdoar! Mas qual é então o papel do perdão humano? (Mt 6, 14s). É que o perdão de Deus só se torna real para mim quando eu o assumo na minha vida ao ponto que procuro perdoar quem me ofendeu. O nosso perdão mútuo então é a prova de até onde temos aceito o perdão de Deus. Devemos então lembrar três pontos:

            - O perdão de Deus sempre precede o perdão humano;

            - O perdão humano é reação ao perdão divino;

            - O perdão divino só se torna eficaz para nós quando nós temos vontade de perdoar o outro.

            Joaquim Jeremias, teólogo, explica a frase assim: “Nós estamos prontos a repassar a outros o perdão que nós recebemos. Dá-nos, querido Pai, o dom da era da salvação, o teu perdão, para que, na força do perdão recebido, possamos perdoar os que têm nos ofendido”. (J. Jeremias, A Oração do Senhor).

            E o grande exemplo desta realidade continua sendo a mulher “pecadora” de Lc 7, 36-50), cujo grande amor foi consequência do grande perdão recebido de Deus.

 

            6. “E não nos deixes sucumbir à tentação”

            Esse é o único pedido formulado em termos negativos. Aqui não somente pedimos para não cair nas pequenas ou grandes tentações que nós enfrentamos no dia-a-dia, mas que não caiamos na Grande Tentação, de não acreditar na realidade da presença do Reino, de perder a fé na ação transformadora de Deus, de não acreditar mais na concretização da vontade de Deus. E este “sucumbir” não vem normalmente “de vez” - é um processo lento, que pode acontecer sem que nós demos conta. É o perder do élan, da vibração com a causa do Reino, que reduz a religião a um mer “cumprir tabela”, sem alegria, sem esperança, - enfim uma frustração. Esse pedido ecoa uma mensagem e advertência clara dos evangelhos - a necessidade de vigilância! Estamos na luta escatológica entre o bem e o mal, onde até Jesus foi tentado. Aqui reconhecemos a nossa fraqueza, a nossa tendência para o desânimo, e pedimos a força de Deus para que não sucumbamos à Grande Tentação.

 

            Assim a Oração do Senhor resume o projeto de vida dos seus seguidores e discípulos. É uma oração que traz consequências bem concretas para o nosso relacionamento com os irmãos e com a sociedade. É uma oração que desinstala e desacomoda. Pois, nós estamos nos comprometendo com a construção diária do Reino, através do seguimento de Jesus.

            A segunda parte do trecho de hoje insiste na necessidade de perseverança na oração. Faz contraste (e não comparação!) entre Deus e o amigo humano. Pois, se o “amigo” só atende o pedido para não ser amolado, Deus é bem diferente. Ele dará o mais importante - o Espírito Santo, com todos os seu dons, àqueles que o pedirem! Peçamos as coisas pequenas - mas importantes - necessárias para a nossa vivência diária, mas saibamos também pedir os grandes dons do Reino, o perdão, o pão da vida, a misericórdia sem limites, que Deus jamais negará!

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Pe. Tomaz Hughes, SVD

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