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MUDANÇA DE CALENDÁRIO
Tereza Halliday – Artesã de Textos
“As datas são meras invenções dos homens”. Assim
falava minha avó para justificar que não se
importava de romper ano dormindo ou acordada.
Celebrava Natal e São João com muito gosto.
Abominava carnaval e era indiferente aos
festejos do Réveillon. Tudo o que ela dizia me
parecia importante e digno de respeito. Íntegra
e sensata, suas palavras sempre tiveram peso
para mim. Assimilei valores através de seus
ditos: “Pra que tanta roupa para um corpo só?”,
“Imoral é enganar os outros para levar
vantagem”, “Não seja Maria vai com as outras”.
Sua percepção das datas marcadas de vermelho no
calendário, como apenas convenções cristalizadas
pelo costume, volta-me à memória, a cada
passagem de ano, com vontade de consolar aqueles
que sofrem quando ficam à margem dos festejos do
dia 31 de dezembro, por estarem atacados de
pobreza, doença, tristeza, solidão. E,
sobretudo, vergados sob o peso das convenções e
da pressão do grupo: se é Ano Novo, tem de ser
comemorado assim: roupa nova, muita comida,
muita bebida, muita animação, muito som. Não tem
não! A expansividade é um direito, o
recolhimento também. Não celebrar enturmado e
cercado de gente, comida, cores e barulhos é tão
legítimo quanto fazer fanfarra para despedir-se
de um ano e inaugurar o ano seguinte. Vestido de
branco ou de qualquer cor significativa para o
usuário.
Dos Estatutos do Homem, de Thiago de Melo, não
consta “Fica decretado que temos de estar
perpetuamente em festa e fazer como todo mundo”.
Mas estão incluídos em seus 14 artigos, os
seguintes: “Fica permitido que o pão de cada dia
/ tenha no homem o sinal de seu amor./ Mas, que
sobretudo, tenha sempre / o quente sabor da
ternura”... “Fica estabelecida por dez séculos /
a prática sonhada pelo profeta Isaías, / e o
lobo e o cordeiro pastarão juntos / e a comida
de ambos terá o mesmo gosto de outrora”.
Se as datas são invenções necessárias aos
humanos – seja por organização prática da vida,
seja para alimentar a alma com ritos, o tempo
marcado por elas é Eternidade, cortado em
pedaços pelos calendários – juliano, gregoriano,
judaico, chinês... o escambau. Ah, se nos
conscientizássemos disto! O tempo que passa é a
eternidade sob nossa fraca visão humana.
Deveríamos, sim, festejar sempre, o início de
cada dia – 365 festejos íntimos por ano. Cada
novo dia significa que nos foi dada mais uma
chance de fazer melhor, praticar a palavra
gentil e a escuta respeitosa, ser grato por
tudo, inclusive dores e desafios, espantar-se
com as pequenas maravilhas, que só notamos
quando tiramos o olho das telinhas: a nova folha
na planta, o moto perpétuo das águas do mar, uma
cria animal ou humana em seu status tão
passageiro de bebê, um cheiro de flor ou de boa
comida, uma canção. Feliz Dia Novo!(Diário de
Pernambuco, 30/12/2013).
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