VIAGENS
O Tempo
Problematizado
Guido Bilharinho
A criatividade artística
humana constitui processo contínuo e
surpreendente. Centenas ou milhares de obras
(musicais, literárias, cinematográficas e
plásticas) surgem constantemente, de variados
graus de qualidade estética, temas e ângulos de
abordagem.
Muitas mais poderiam aparecer
se fossem dadas iguais oportunidades de
existência e atuação a todos os indivíduos e,
ainda, se a sociedade estivesse estruturada de
maneira diversa e valorizasse o saber, o
conhecimento e a arte.
Um dos filmes de estreia
consistentes é Viagens (Voyages, França,
1999), de Emmanuel Finkiel.
Diferentemente dos produtos
comerciais, não foi realizado para diversão e
passatempo. Como filme autoral, representa ponto
de vista do cineasta sobre a problemática humana
em duas de suas mais dolorosas manifestações,
reunidas para expressar-lhes as peculiaridades.
No caso, o cineasta enfoca
simultânea e principalmente a monstruosidade do
holocausto judeu pelos nazistas e a dor
permanente das vítimas diretas e indiretas.
As personagens são judeus que
perderam os seres mais queridos na referida
voragem assassina, desde pais a irmãos.
Nada mais pavoroso, por
exemplo, para uma criança, do que ela e sua
família serem arrancadas do lar e levadas em
comboios ferroviários como gado humano a caminho
do desconhecido, completamente a mercê de
tirânicos e armados carrascos, que depois ainda
as separam, em geral para sempre.
Se a criança sobrevive, resta
marcada permanentemente pela tristeza, a
amargura, a perda das alegrias e ilusões
infantis e o encontro (e conhecimento) da
crueldade humana. É algo incompreensível e
inatingível para quem não passou por tragédia
análoga.
O cineasta consegue plasmar
essa mágoa cristalizada pelo tempo e guardada no
fundo do ser como num crisol, que não permite
seja esquecida ou superada. Constitui cicatriz
moral e emocional inapagável e insuscetível de
remoção.
Para fixar semelhante drama,
Finkiel cria três situações protagonizadas por
mulheres vitimadas pela sanha assassina dos
nazistas, seja numa visita a campo de
concentração, cemitério e gueto judeu na
Polônia, seja no ressurgimento de pretenso pai
de outra delas após décadas de desaparecimento,
seja na chegada de uma terceira a Israel.
Em cada uma dessas
ocorrências expõe, não visão turística na
primeira, regozijo na segunda ou, na terceira,
jubiloso encontro com a terra sagrada dos
judeus. O que focaliza é o conteúdo real do
sentimento de cada uma delas submetido ao fluxo
contínuo da vida que liga passado e presente,
ambos problematizados.
Num caso, a dor da lembrança
e o relacionamento do casal, no outro a
estranheza e a dúvida sobre a identidade do
desconhecido e, finalmente, a realidade de
Israel, que faz a personagem considerar seus
habitantes não mais como judeus, mas,
israelenses.
A condução cinematográfica
dos dois primeiros casos é efetivada de maneira
que a dor e a angústia apresentam-se tão
entranhadas nos seres humanos quanto expostas
nos vincos das faces. Já no último, o que se
mostra é a tenacidade dos judeus frente às
dificuldades e ao desamparo, nunca sendo tomados
de desespero e exasperação, características
muitas (ou todas às) vezes encontradas nos povos
jovens que não sofreram.
Se há filmes aventurosos,
alegres, exuberantes e outros tantos, Viagens
é a tristeza filmada como reflexo direto da
silenciosa melancolia das personagens, ao fixar
a verdade humana, seu conteúdo e significado e
não a mera aparência.
Nos interstícios e refolhos
do tema central ainda revela particularidades do
convívio humano em situações diversas, desde as
relações conjugais até a solidariedade humana,
além da distância, no tempo e nos costumes, do
passado sepultado em cemitério polonês e a
trepidante e convulsionada vida da Israel
moderna, cujas origens, fundamentos e atuação
devem ser motivo de questionamento e não apenas
de adesão ou oposição apaixonadas e
incondicionais.
Aliás, os aspectos do país
mostrados no filme pautam-se pela objetividade e
isenção, outro dos atributos do filme.
(do livro A Segunda Guerra no
Cinema. Uberaba,
Instituto Triangulino de
Cultura, 2005)
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Guido Bilharinho
é advogado atuante em Uberaba, editor da revista
internacional de poesia
Dimensão
de 1980 a 2000
e autor de livros de literatura, cinema,
história do Brasil e regional, entre eles,
Brasil: Cinco Séculos de História, inédito.
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