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Rumo à Liberdade
Um lenço à cabeça, saia e blusa de lã, usava a
moça que ia todos os dias para a fábrica nos
arredores de sua cidade. Os olhos negros tinham
um brilho triste, a boca sem pintura não
exprimia um sorriso. Não havia alegria na sua
face porque, além de haver escassez de
alimentos, faltava à vida o essencial a todo ser
humano: a liberdade.
Uma semana já se passara, desde que os tanques
russos ocuparam Budapeste e afogaram em sangue a
revolução de 1956. Aliás, como Margit, a terra
em que nascera estava enlutada há muitos anos. O
seu coração batia descompassadamente, pois ontem
dera um passo decisivo e por demais audacioso.
Combinara com Gyula, o motorista de um caminhão
de aluguel, que ele a levaria até onde pudesse
ir, escondida num caixote. Ia encontrá-lo às 23
horas, perto da garagem. Margit pensava: “Não
tenho nada a perder; sou órfã, sem família que
possa sofrer as consequências do meu ato. Tudo
aqui é insuportável: trabalho todos os dias,
passo privações, tenho que frequentar o
“catecismo” da doutrina comunista uma vez por
semana e, para maior tormento do meu cérebro,
penso que não estou livre de, um dia, ser
colocada num vagão superlotado de pessoas para
nunca mais regressar. Tenho que tentar. Pelo
menos uma vez na vida, deve-se arriscar tudo por
algo que nos pareça essencial... pode ser que,
por sobre os abismos, encontremos uma ponte que
nos possa conduzir à meta almejada. Se não
fizermos isso, a nossa existência terá
fracassado. O resultado não importa, o que vale
é tentar, tentar modificar o que está errado no
curso do nosso viver. E foi com esses
pensamentos que caminhou para o trabalho.
Quando as onze horas foram anunciadas nos
relógios, Margit já se encontrava no ponto
marcado.
Gyula deu-lhe as últimas instruções: “ - Faça o
mínimo de movimento e, em caso de emergência,
não perca o sangue frio”.
Após essas palavras, colocou-a entre 45 caixotes
que ia carregar. Margit apertou a mão do
motorista com gratidão e acomodou-se o melhor
possível. Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Enquanto o caminhão rodava na escuridão da
noite, ela sentia, vindo do fundo do coração, um
enorme desejo de olhar outra vez a cidade
adormecida, o rio Danúbio... Quando Gyula
alcançou o primeiro posto, Margit dormia. Os
policiais que revistaram o veículo nada
encontraram. A primeira etapa fora vencida.
Em tais circunstâncias, é preciso revelar motivo
pelo qual o rapaz se arriscava tanto. Seu pai
fora um idealista e lhe incutira no espírito
seus princípios impregnados de patriotismo.
Pouco antes de morrer, havia lhe dito: “ - Que
todos os seus atos elevem a Hungria”. Depois do
desenlace, pensou seriamente em fugir de
Budapeste, mas a sua irmã solteira era inválida,
não poderia acompanhá-lo. E ele não ia
abandoná-la.
Na impossibilidade de realizar o seu sonho,
ajudava, o mais possível, na realização do sonho
dos outros.
No segundo posto, Margit, que acordara, levou um
tremendo susto. Um oficial examinara uns
caixotes; achando tudo em ordem, foi preparar os
papéis necessários. Nesse ínterim, um soldado
resolveu revistar todos os caixotes. Gyula, com
grande esforço e controle, não esboçou um gesto,
continuando a agir de forma incrivelmente
natural. O policial estava pronto para olhar a
última fileira, por trás da qual Margit se
escondia, quando, regressando o oficial, gritou,
impaciente:
“- É inútil verificar aí. Desça; eu próprio já
averiguei”.
Cabisbaixo, o soldado desistiu de ser
consciencioso, isto é, de revistar tudo. Ela, é
claro, achou que guardaria o som da voz russa
que a salvara durante toda a vida.
Percorridos outros quilômetros, o seu amigo
despediu-se. Não iria mais além. Agora, teria de
fazer parte de um grupo de seis pessoas até
atravessar, se Deus assim o desejasse, a
fronteira com a Áustria.
A moça sorriu para os novos companheiros: um
casal com a filhinha de seis anos; um senhor de
cabeça branca; e, finalmente, uma avozinha com o
neto de meses. Essa última, durante o trajeto
inicial, caíra de um barranco e, agonizava. No
seu delírio, estendia o pequenino, implorando
que o levassem. A responsabilidade era enorme.
Ninguém se decidira ainda a aceitar o pesado
encargo. Margit, mais uma vez, tomou uma
decisão. Retirou a criança dos braços da
moribunda, antes de ela exalar o último suspiro.
O garoto, com as mãozinhas crispadas,
aconchegou-se à sua “mamãe” adotiva que,
pensando na audaciosa figura de Alexandre, o
Grande, deu-lhe o nome de Sándor (Alexandre, em
húngaro). O primeiro conquistara o mundo: o
segundo, seu coração, pleno de amor, pronto a
dedicar-se ao pequenino indefeso. Naquele
momento, ela chegou à conclusão de que,
realmente, a vida é vazia para os que não sabem
se doar. Ficou feliz, muito feliz, por ter junto
a si aquela criança.
A nova etapa da fuga seria a mais perigosa.
Descansaram, escondidos, durante todo o dia. Ao
pôr-do-sol reiniciaram a marcha, atravessando
uma área perigosa, onde poderiam encontrar as
tão temidas minas terrestres. Se conseguissem
completar o trajeto a salvo, estariam livres.
Precisariam andar, dali em diante, um pouco
separados uns dos outros.
Avançavam cuidadosamente, ocultando-se por
detrás das árvores. Encontraram-se com um
camponês, que os ajudou, lhes indicando o melhor
caminho, além de levá-los em sua carroça até um
cruzamento mais próximo.
De cinco em cinco horas alguém era o responsável
pelo grupo, tendo como obrigação andar à frente.
Na vez do idoso, ele pisou em uma das minas
terrestres. Ao correrem para tentar socorrê-lo,
já o encontraram morto.
Margit, sempre com Sándor ao colo, sentou-se
tristemente sobre uma pedra. Embalando o menino,
cantava:
— Dorme, filhinho querido.
deixa a mamãe descansar.
Dorme, filhinho querido,
até esta luta terminar.
— Dorme, filhinho querido,
assim, você não vai morrer.
Dorme, filhinho querido,
assim, você não vai sofrer.
Após enterrarem o companheiro de jornada,
resolveram apressar o passo. Só poucas horas os
separavam da fronteira. Naquela noite, a moça
ficaria na retaguarda, vigiando a retirada dos
outros, depois de examinar o percurso. Com tanta
responsabilidade sobre os ombros, Margit estava
muito inquieta. Chegado o momento, assumiu o seu
posto; verificando as condições de segurança,
mandava o pessoal avançar, ficando por último.
Ao avistarem a fronteira, lágrimas de alegria
marejavam os olhos avermelhados de cansaço dos
fugitivos exaustos, quando ela avisou que um
grupo de soldados iria alcançá-los. E Margit
pediu que alguém do grupo viesse buscar Sándor...
Contudo, muitos metros os separavam, e a
fronteira, isto é, o sonho acalentado por tantos
anos, estava próxima...
Enquanto Margit entreteve os soldados, escapando
quando quase era apanhada, seus amigos ganharam
a liberdade. Quando não mais aguentou,
rendeu-se, e desmaiou. Ao recobrar os sentidos,
estava cercada por alguns oficiais russos, que a
interrogaram por um longo tempo. Quando
consideraram não haver mais nenhum impedimento
para ela e a criança regressarem, Margit e
Sándor foram colocados num vagão militar. Para
Margit, aquele retorno era um pesadelo. Seu
coração só tinha angústia e desespero; chorava
até não poder mais. Seu único consôlo era o
"filhinho". Mas o destino queria lhe tirar
tudo... Durante a viagem, Sándor adoeceu e, como
os soldados nada lhe deram para combater o mal,
ele morreu. O corpo foi retirado do vagão
imediatamente. Margit, em prantos, teve que
continuar. Entretanto, com o passar das horas,
divisou a bondade de Deus por trás dos seus
desígnios aparentemente cruéis. O Criador não
quisera que o garoto vivesse privado de
liberdade. Ela mesma havia cantado para Sándor,
enquanto o ninava nos braços:
“Dorme, filhinho querido, / até esta luta
terminar” — e ainda – “Dorme, filhinho querido,
/ assim, você não vai sofrer”.
Quanto à sua própria vida, um pensamento a
confortava: o que importa é tentar; tentar
modificar o que há de errado no curso de nosso
viver.
THERESA CATHARINA DE GÓES CAMPOS
(aos 15 anos, aluna do 1º Ano Clássico
do Colégio de São José, das Religiosas Dorotéias)
Publicado no jornal "O FAROL".
Recife - PE, 1960.
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