Theresa Catharina de Góes Campos

 
Rumo à Liberdade

Um lenço à cabeça, saia e blusa de lã, usava a moça que ia todos os dias para a fábrica nos arredores de sua cidade. Os olhos negros tinham um brilho triste, a boca sem pintura não exprimia um sorriso. Não havia alegria na sua face porque, além de haver escassez de alimentos, faltava à vida o essencial a todo ser humano: a liberdade.

Uma semana já se passara, desde que os tanques russos ocuparam Budapeste e afogaram em sangue a revolução de 1956. Aliás, como Margit, a terra em que nascera estava enlutada há muitos anos. O seu coração batia descompassadamente, pois ontem dera um passo decisivo e por demais audacioso. Combinara com Gyula, o motorista de um caminhão de aluguel, que ele a levaria até onde pudesse ir, escondida num caixote. Ia encontrá-lo às 23 horas, perto da garagem. Margit pensava: “Não tenho nada a perder; sou órfã, sem família que possa sofrer as consequências do meu ato. Tudo aqui é insuportável: trabalho todos os dias, passo privações, tenho que frequentar o “catecismo” da doutrina comunista uma vez por semana e, para maior tormento do meu cérebro, penso que não estou livre de, um dia, ser colocada num vagão superlotado de pessoas para nunca mais regressar. Tenho que tentar. Pelo menos uma vez na vida, deve-se arriscar tudo por algo que nos pareça essencial... pode ser que, por sobre os abismos, encontremos uma ponte que nos possa conduzir à meta almejada. Se não fizermos isso, a nossa existência terá fracassado. O resultado não importa, o que vale é tentar, tentar modificar o que está errado no curso do nosso viver. E foi com esses pensamentos que caminhou para o trabalho.

Quando as onze horas foram anunciadas nos relógios, Margit já se encontrava no ponto marcado.
Gyula deu-lhe as últimas instruções: “ - Faça o mínimo de movimento e, em caso de emergência, não perca o sangue frio”.
Após essas palavras, colocou-a entre 45 caixotes que ia carregar. Margit apertou a mão do motorista com gratidão e acomodou-se o melhor possível. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Enquanto o caminhão rodava na escuridão da noite, ela sentia, vindo do fundo do coração, um enorme desejo de olhar outra vez a cidade adormecida, o rio Danúbio... Quando Gyula alcançou o primeiro posto, Margit dormia. Os policiais que revistaram o veículo nada encontraram. A primeira etapa fora vencida.
Em tais circunstâncias, é preciso revelar motivo pelo qual o rapaz se arriscava tanto. Seu pai fora um idealista e lhe incutira no espírito seus princípios impregnados de patriotismo. Pouco antes de morrer, havia lhe dito: “ - Que todos os seus atos elevem a Hungria”. Depois do desenlace, pensou seriamente em fugir de Budapeste, mas a sua irmã solteira era inválida, não poderia acompanhá-lo. E ele não ia abandoná-la.
Na impossibilidade de realizar o seu sonho, ajudava, o mais possível, na realização do sonho dos outros.

No segundo posto, Margit, que acordara, levou um tremendo susto. Um oficial examinara uns caixotes; achando tudo em ordem, foi preparar os papéis necessários. Nesse ínterim, um soldado resolveu revistar todos os caixotes. Gyula, com grande esforço e controle, não esboçou um gesto, continuando a agir de forma incrivelmente natural. O policial estava pronto para olhar a última fileira, por trás da qual Margit se escondia, quando, regressando o oficial, gritou, impaciente:
“- É inútil verificar aí. Desça; eu próprio já averiguei”.
Cabisbaixo, o soldado desistiu de ser consciencioso, isto é, de revistar tudo. Ela, é claro, achou que guardaria o som da voz russa que a salvara durante toda a vida.
Percorridos outros quilômetros, o seu amigo despediu-se. Não iria mais além. Agora, teria de fazer parte de um grupo de seis pessoas até atravessar, se Deus assim o desejasse, a fronteira com a Áustria.
A moça sorriu para os novos companheiros: um casal com a filhinha de seis anos; um senhor de cabeça branca; e, finalmente, uma avozinha com o neto de meses. Essa última, durante o trajeto inicial, caíra de um barranco e, agonizava. No seu delírio, estendia o pequenino, implorando que o levassem. A responsabilidade era enorme. Ninguém se decidira ainda a aceitar o pesado encargo. Margit, mais uma vez, tomou uma decisão. Retirou a criança dos braços da moribunda, antes de ela exalar o último suspiro. O garoto, com as mãozinhas crispadas, aconchegou-se à sua “mamãe” adotiva que, pensando na audaciosa figura de Alexandre, o Grande, deu-lhe o nome de Sándor (Alexandre, em húngaro). O primeiro conquistara o mundo: o segundo, seu coração, pleno de amor, pronto a dedicar-se ao pequenino indefeso. Naquele momento, ela chegou à conclusão de que, realmente, a vida é vazia para os que não sabem se doar. Ficou feliz, muito feliz, por ter junto a si aquela criança.
A nova etapa da fuga seria a mais perigosa. Descansaram, escondidos, durante todo o dia. Ao pôr-do-sol reiniciaram a marcha, atravessando uma área perigosa, onde poderiam encontrar as tão temidas minas terrestres. Se conseguissem completar o trajeto a salvo, estariam livres. Precisariam andar, dali em diante, um pouco separados uns dos outros.
Avançavam cuidadosamente, ocultando-se por detrás das árvores. Encontraram-se com um camponês, que os ajudou, lhes indicando o melhor caminho, além de levá-los em sua carroça até um cruzamento mais próximo.

De cinco em cinco horas alguém era o responsável pelo grupo, tendo como obrigação andar à frente. Na vez do idoso, ele pisou em uma das minas terrestres. Ao correrem para tentar socorrê-lo, já o encontraram morto.
Margit, sempre com Sándor ao colo, sentou-se tristemente sobre uma pedra. Embalando o menino, cantava:
— Dorme, filhinho querido.
deixa a mamãe descansar.
Dorme, filhinho querido,
até esta luta terminar.

— Dorme, filhinho querido,
assim, você não vai morrer.
Dorme, filhinho querido,
assim, você não vai sofrer.

Após enterrarem o companheiro de jornada, resolveram apressar o passo. Só poucas horas os separavam da fronteira. Naquela noite, a moça ficaria na retaguarda, vigiando a retirada dos outros, depois de examinar o percurso. Com tanta responsabilidade sobre os ombros, Margit estava muito inquieta. Chegado o momento, assumiu o seu posto; verificando as condições de segurança, mandava o pessoal avançar, ficando por último.
Ao avistarem a fronteira, lágrimas de alegria marejavam os olhos avermelhados de cansaço dos fugitivos exaustos, quando ela avisou que um grupo de soldados iria alcançá-los. E Margit pediu que alguém do grupo viesse buscar Sándor... Contudo, muitos metros os separavam, e a fronteira, isto é, o sonho acalentado por tantos anos, estava próxima...
Enquanto Margit entreteve os soldados, escapando quando quase era apanhada, seus amigos ganharam a liberdade. Quando não mais aguentou, rendeu-se, e desmaiou. Ao recobrar os sentidos, estava cercada por alguns oficiais russos, que a interrogaram por um longo tempo. Quando consideraram não haver mais nenhum impedimento para ela e a criança regressarem, Margit e Sándor foram colocados num vagão militar. Para Margit, aquele retorno era um pesadelo. Seu coração só tinha angústia e desespero; chorava até não poder mais. Seu único consôlo era o "filhinho". Mas o destino queria lhe tirar tudo... Durante a viagem, Sándor adoeceu e, como os soldados nada lhe deram para combater o mal, ele morreu. O corpo foi retirado do vagão imediatamente. Margit, em prantos, teve que continuar. Entretanto, com o passar das horas, divisou a bondade de Deus por trás dos seus desígnios aparentemente cruéis. O Criador não quisera que o garoto vivesse privado de liberdade. Ela mesma havia cantado para Sándor, enquanto o ninava nos braços:

“Dorme, filhinho querido, / até esta luta terminar” — e ainda – “Dorme, filhinho querido, / assim, você não vai sofrer”.

Quanto à sua própria vida, um pensamento a confortava: o que importa é tentar; tentar modificar o que há de errado no curso de nosso viver.

THERESA CATHARINA DE GÓES CAMPOS
(aos 15 anos, aluna do 1º Ano Clássico
do Colégio de São José, das Religiosas Dorotéias)
Publicado no jornal "O FAROL".
Recife - PE, 1960.
 
 

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