Theresa Catharina de Góes Campos

 

SÓCRATES, AUTOR DE AUTOAJUDA?

 Guido Bilharinho

 Sócrates é tão considerado, que a filosofia grega é dividida em dois períodos capitais, o dos filósofos pré-socráticos e o dos que se lhe seguiram.

Aqui, não se vai adentrar o conteúdo, a natureza e a importância do que se convencionou denominar de seu pensamento filosófico, mesmo porque Sócrates não deixou obra escrita, conhecendo-se o que disse por intermédio de Platão e de Xenofonte. Se é que o disse, pois, em Platão ele é mais ou tão-somente personagem. Justamente aquela encarregada de expor o que Platão pensa e externa nos diálogos entabulados com outras personagens. Não sem razão Antônio Medina Rodrigues afirma: “Platão é o fundador do idealismo filosófico e criador da lógica e do conceito. Era uma figura de estatura própria, um gênio que se não podia medir pela essência específica dum Sócrates, um pensador que forja teorias: teorias que nos seus diálogos transfere para Sócrates, com liberdade de artista” (“A Questão Socrática”, Folha de S. Paulo, 04 março 1988). Se assim não fosse, não existiria o Platão filósofo, o Platão autor, mas, apenas mero transmissor de ideias e conceitos de outrem, mesmo porque não há condições e nem possibilidade humana de se memorizar tudo o que é atribuído a Sócrates.

Assim, quando Aristóteles, por exemplo, se refere a Sócrates no livro segundo de A Política, comenta e contraria não a Sócrates, mas, à personagem criada por Platão para expor sua utópica República. Não por menos José Cavalcanti de Sousa aduz que “a cidade platônica se lê de corpo inteiro nas páginas da República, a obra, se não a principal, sem dúvida a mais representativa do filósofo Platão” (“A Cidade Platônica”, Folha de S. Paulo, 04 março 1988).

Apenas em duas obras é registrado expressamente que os textos nelas publicados são de autoria de Sócrates: Defesa de Sócrates, onde Platão apresenta o que ele teria dito em seu julgamento, e Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, livro no qual Xenofonte relembra os diálogos que Sócrates manteve com inúmeros interlocutores.

Contudo, em ambas essas obras, têm-se não o pensamento e as reflexões de um filósofo, mas, de conselheiro e orientador de comportamento, ou seja, praticamente aquilo que se pode denominar hoje de autoajuda.

Ele mesmo o diz, em sua defesa, segundo Platão: “outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens, particulares e públicos” (Defesa de Sócrates, in Sócrates, coleção Os Pensadores. 2ª ed. São Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 15).

Isso, como pai ou irmão mais velho, como proclama: “dirigindo-me sem cessar a cada um em particular, como um pai ou um irmão mais velho, para o persuadir a cuidar da virtude” (op. cit., p. 16).

Além do mais, fazendo-o, como afirma, “por uma determinação divina, vinda não só através do oráculo, mas também de sonhos e de todas as vias pelas quais o homem recebe ordens dos deuses” (idem, idem, p. 18).

Até aí, pois, nada de filosofia. Muito menos, ainda, nos inúmeros diálogos mantidos com terceiros nos Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, de Xenofonte.

Tem-se, então, apenas aconselhamento comportamental e não transmissão de ideias e conceitos filosóficos.

O próprio Xenofonte aduz que “enquanto conviveram com Sócrates, tanto Crítias como Alcibíades puderam, graças ao seu auxílio (sic), sopear as más paixões” (op. cit., p. 39), apresentando, em sua obra, “como se portava [Sócrates] em face do beber, do comer e dos prazeres dos sentidos” (idem, p. 47).

Nada, como se observa, concernente à filosofia e conhecimentos afins.

A respeito do diálogo mantido por Sócrates com Aristodemo, Xenofonte conclui que “assim falando, Sócrates ensinava seus discípulos a se absterem de toda a ação ímpia, injusta e reprovável” (idem, idem, p. 51).

Sócrates exorta seus interlocutores a cultivar a temperança (p. 53), a se desviar da fatuidade (p. 57), de que “não há mais belo caminho para a glória que um homem de bem ser o que realmente deseja parecer” (p. 57) ou “nada haver mais perigoso para um homem que dar-se por mais rico, mais forte, mais corajoso do que realmente é” (p. 57).

Além disso, “Sócrates afazia seus discípulos à abstinência em face da boa carne, do vinho, da lubricidade, do sono, e à resistência ao frio, ao calor, à fadiga” (p. 61), ao respeito aos pais (p. 67), à amizade (p. 71, 75 e 77) ou que “as almas tacanhas compram-se com presentes. As almas generosas conquistam-se com mostras de amizade” (p. 72).

No decorrer de seus diversos diálogos, Sócrates aconselha exorta e opina sobre série de questões, comportamentais a maioria, como trabalho, estudo, saber, participação política, coragem, inveja (“apelidando invejosos os que se afligem com a felicidade dos amigos”, p. 118), ociosidade, má constituição física e fortalecimento do corpo por meio de exercícios, grosseria, viver com moderação, presunção, bens e males, felicidade, justiça, prática do bem, sabedoria, coragem, piedade, beleza, utilidade dos conhecimentos, etc..

O que caracteriza mais fortemente a pregação socrática é, pois, a felicidade das pessoas e a utilidade das atitudes e comportamentos, princípios básicos da autoajuda, sendo sua própria existência e pregação balizadas por essas diretrizes, a ponto de Xenofonte observar que “tão útil era Sócrates em todas as ocasiões e de todas as maneiras, que até as inteligências medíocres facilmente compreendiam nada haver mais vantajoso que seu comércio e frequentação” (op. cit., p. 133).

Na introdução ao volume sobre Platão da coleção “Os Pensadores”, reconhece-se por isso, que Sócrates “se preocupava antes com o desencadeamento do conhecimento de si mesmo e não propriamente com definições de conceitos” (p. XI), sendo que filosofar é principalmente definir, conceituar, teorizar.

Já nos diálogos platônicos de O Banquete e Fédon, por exemplo, nos quais Sócrates é personagem e discorre longa e largamente sobre diversas questões perspectivadas teórica e genericamente, percebe-se sua diametral diferença com os diálogos simples colhidos por Xenofonte, que pretende o mais possível ser fiel às palavras socráticas (“Como Sócrates me parecia ser útil a seus discípulos, já pelo procedimento, já pela palavra, eis o que passo a relatar, alinhavando o melhor que possa minhas recordações”, p. 45).

À evidência, conforme registrado nos estudos respectivos, essa diferença demonstra que o Sócrates dos diálogos platônicos é muito mais (ou tão só) Platão, que a partir de certos conceitos socráticos desenvolve teorização própria em ampliação e profundidade conceitual muito além da exposta nos diálogos socráticos de Xenofonte.

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Por sua prática conselheiral contumaz, Sócrates é ridicularizado por Aristófanes em As Nuvens (constante do mesmo volume da coleção citada), a ponto do Coro, dirigindo-se a ele, apodá-lo de “sacerdote de tolices sutilíssimas” e acusá-lo de que “se pavoneia pelas estradas, lança os olhos de lado, anda descalço, suporta muitos males, e, por nossa causa, finge importância” (versículo 360, p. 184), até atingir a vexaminosa passagem ínsita entre os versículos 385 a 395 (p. 196).

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A natureza de autoajuda da militância e prédica de Sócrates foi observada e inferida por Nietzsche, quando afirmou que Sócrates “viu o que estava por trás de seus atenienses nobres; compreendeu que seu caso, a idiossincrasia de seu caso, já não era mais um caso excepcional. A mesma espécie de degenerescência se preparava por toda parte em silêncio: a velha Atenas caminhava para o fim. E Sócrates entendeu que todo mundo necessitava dele – de seu remédio, sua cura, seu artifício pessoal de autoconservação... Por toda parte os instintos em anarquia; por toda parte se estava a cinco passos do excesso [....] Quando aquele fisionomista [Zópiro, considerado criador do método fisiognômico, segundo Rubens Rodrigues Torres Filho] revelara a Sócrates quem ele era, um antro de maus apetites, o grande ironista deixou escapar uma palavra, que dá a chave para entendê-lo. “Isso é verdade”, disse ele, “mas eu me tornei senhor sobre todos eles”. Como se tornou Sócrates senhor sobre si? Seu caso era, no fundo, apenas o caso extremo, aquele que mais saltava aos olhos, daquilo que naquele tempo começava a se tornar a indigência geral: que ninguém mais era senhor sobre si, que os instintos se voltavam uns contra os outros. Ele fascinava por ser esse caso extremo – sua amedrontadora feiúra enunciava esse caso para cada olho: ele fascinava ainda mais fortemente, como é fácil entender, como resposta, como solução, como aparência de cura para esse caso [....] ele parecia ser um médico, um salvador.” (Crepúsculo dos Ídolos, § 9 e 11, in Nietzsche, coleção “Os Pensadores”. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 330).

(Do livro inédito Reflexões e Observações)

 

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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional, entre eles, Brasil: Cinco Séculos de História, inédito

 

 

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