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AMARGA SINFONIA DE AUSCHWITZ
A
Degradação Humana
Guido Bilharinho
A
protagonista do filme Amarga Sinfonia de
Auschwitz (Playing for Time, EE. UU., 1980),
de Daniel Mann (1912-1991) e roteiro do
dramaturgo Arthur Miller, declara, quase ao
final da película, em diálogo com outra
prisioneira, que agora “sabemos algo da raça
humana que não sabíamos antes. E não é boa
novidade”. Ao que a interlocutora antepõe:
“como pode chamá-los [aos nazistas] de
humanos?”, retrucando, indaga Fania Fénelon,
cantora francesa, em cujo livro baseia-se o
filme, interpretada por Vanessa Redgrave: “E
o que eles são?”.
Nada mais precisa ser dito. Os nazistas eram
seres humanos como os demais. Tinham família,
gostavam de crianças (como, no filme, a
comandante do campo), apreciavam música (Mengele
- que viveu incógnito no Brasil de 1960 a,
presumivelmente, 1979 - chega a dizer à Fania
que “ouvir você cantar nos fortalece na nossa
difícil tarefa”).
Como se sabe, os nazistas organizaram,
instituídos por Hermann Göring em 1933 e
controlados por Himmler, mais “de vinte
grandes campos, com dezenas de campos satélites”,
tanto de concentração quanto de extermínio (“As
Atrocidades Nazistas”, in História do Século
XX, vol. 5. São Paulo, Abril Cultural, p.
2060), entre eles, Bergen-Belsen, Dachau,
Buchenwald, Ravensbrück, Nordhausen, Flossenburg
e Gross-Rosen (na Alemanha), Chelmno, Sobibor,
Maidanek, Belzec e Treblinka (na Polônia),
Terezin (na Checo-Eslováquia), Mauthausen (na
Áustria), Stutthof (na Prússia Oriental), além
do maior deles, Auschwitz–Birkenau (na Polônia),
este ampliação daquele, atual Oswiecim.
Justamente de uma leva de judeus europeus de
diversas procedências, desde sua colocação no
trem e seu aprisionamento em Auschwitz, trata o
filme em questão. Depois de viajarem amontoados
como animais em vagões fechados, fétidos,
sufocantes, sem saberem seu destino (como os
animais), são despejados no campo para serem
mortos.
Após a separação de homens e mulheres,
desenvolve-se a tragédia das prisioneiras
musicólogas - instrumentistas e cantoras - entre
a metódica dizimação de seus compatriotas e a
imposição de agradar aos alemães em orquestra
organizada e dirigida por regente judia
austríaca, salvando suas vidas.
Fania, comprimida entre essas contingências,
chega a afirmar à regente, face à possibilidade
de contentar os alemães, que “prefiro pensar
que estou salvando minha vida”, ao que a
interlocutora argumenta: “pense que uma coisa
não pode ser feita sem a outra” e, ainda,
com feroz lucidez, que
“aqui é vida ou morte, não há lugar para
sentimentos”.
Em outra oportunidade, diante do relato do amor
de uma prisioneira pelo namorado, pondera Fania:
“sentir algo aqui deve ser uma bênção”,
revelando a esterilização mental/sentimental do
ser humano reduzido a animal destinado à
eliminação.
Posta permanentemente frente ao dilema de
entreter os alemães ou morrer, Fania resiste
aprofundar sua participação na orquestra, ao que
lhe pondera, judiciosamente, a regente:
“devemos sempre elevar nosso nível ou não sei
por quanto tempo eles vão nos tolerar”, e,
depois, “você é uma artista e não pode
propositalmente fazer menos que seu máximo [...]
Neste lugar você tem que ser artista. Somente
uma artista. E deve concentrar-se em fazer mais
beleza que puder”.
O
quadro é de anulação total dos prisioneiros,
simples coisas sem liberdade, sem vontade,
relegados à fome, ao trabalho forçado e à mais
abjeta sujeira e falta de higiene, cuja
destinação era a morte, podendo ir para as
câmaras de gás a qualquer momento, desgraças
todas a que se soma o conhecimento da situação
num nível supremo de insegurança e terror.
Em suma, a condição humana degradada ao mais
baixo nível possível, a ponto da protagonista,
no diálogo com a regente da orquestra, num
momento de desesperança, asseverar que “estou
decidindo apenas se quero viver” e, em
conversa com outra prisioneira que lhe dissera
que “é muito tarde para nós”,
acrescentar: “acho que é muito tarde para a
raça humana”.
O
inferno de Dante encontrou sua contrapartida
terrestre, em inimaginável grau de crueldade a
serviço de interesses materiais tão nefandos
quanto a desumanidade e o desvario da ideologia
que os reflete e justifica.
A
ideologia, de modo geral, obnubila as mentes,
afetando a percepção da realidade e levando-as,
por fim, às mais unilaterais e esdrúxulas
considerações e ações, automatizando o
raciocínio e engessando o pensamento.
Não sem razão uma das prisioneiras diz à
protagonista diante de sua atitude independente
e sobranceira frente à adversidade: “você é
alguém em que se confia, talvez porque não tenha
ideologia. Se satisfaz em ser apenas uma pessoa.
Há tanto sentimento em você”.
Essa mesma personagem, a cantora francesa, após
a invasão do campo pelo Exército Vermelho na
fulminante investida que o levou a Berlim, num
dos feitos épicos mais importantes e
significativos da História, respondeu à
inquirição que rádio francesa lhe fizera
cantando A Marselhesa, sintetizando e
glorificando o momento grandioso mais que
qualquer discurso, pondo fim também à película
porque, depois disso, tudo se apequenaria.
O
filme, pois, é meticulosamente planejado. Em seu
tétrico significado, a ambiência que o compõe
articula-se em despojada exatidão documentária,
seja em seu cerne material (comboio, construções
do campo, interiores de circulação, de estar e
dormitórios, vestuário e condição e apresentação
física de algozes e prisioneiros), seja nas
pessoas (mais osso e pele que outra coisa,
porém, de estrutura psíquica e emocional
característica da espécie). A ponto de mostrar
também o próprio desconforto dos opressores e a
incongruência de muitas de suas atitudes e
ações, oscilando pendularmente entre polos
antagônicos, a exemplo da comandante do campo
assenhorear-se e cuidar de menino de cinco anos,
depois de tê-lo tirado dos braços da mãe
prisioneira em desespero.
A
linguagem, os enquadramentos, cortes, montagem e
duração das cenas e sequências, não obstante
convencionais, mostram-se corretos, suficientes
e eficazes em traduzir cinematograficamente o
propósito de reconstruir fisicamente e recriar
humanamente o horror de Auschwitz, onde foram
assassinados mais de um milhão de judeus.
(do livro A Segunda Guerra no
Cinema. Uberaba,
Instituto Triangulino de
Cultura, 2005)
__________________________________
Guido Bilharinho
é advogado atuante em Uberaba/Brasil, editor da
revista internacional de poesia
Dimensão
de 1980 a 2000
e autor de livros de literatura, cinema,
história do Brasil e regional, entre eles,
Brasil: Cinco Séculos de História, inédito.
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