Dirigido por Nanni Moretti. Roteiro de Moretti, Francesco Piccolo e Valia Santella. Com: Margherita Buy, John Turturro, Giulia Lazzarini, Nanni Moretti, Beatrice Mancini.
Mia Madre é, talvez, o filme mais ambicioso da carreira de seu experiente diretor, o italiano Nanni Moretti. Na realidade, sua costura dramática é tão complexa – embora um olhar superficial não revele isto – que é bastante possível que muitos espectadores se sintam naturalmente incomodados com o constante contraste de tons da narrativa empregado pelo cineasta justamente para ressaltar um dos pontos mais intrigantes deste seu trabalho: a artificialidade própria do Cinema.
Escrito por Moretti ao lado de Francesco Piccolo e Valia Santella, o roteiro acompanha a diretora Margherita (Buy), que se encontra no meio das filmagens de seu novo projeto e durante o qual precisa lidar com as excentricidades de um astro norte-americano, o enlouquecido Barry Huggins (Turturro). Ao mesmo tempo, a protagonista lida com a internação da mãe, Ada (Lazzarini), cuja saúde entra em declínio rapidamente apesar de todos os cuidados oferecidos não só por Margherita, mas também por seu irmão Giovanni (Moretti). Assim, a partir do contraponto entre as duas facetas da personagem (a pessoal e a profissional) e também entre seu rigor e a natureza expansiva de Barry, Mia Madre vai construindo uma experiência envolvente que em um momento provoca o riso apenas para no seguinte levar o espectador às lágrimas.
Abrindo a projeção já com acordes melancólico de piano que acompanham os créditos iniciais, o longa mantém sua perspectiva sempre grudada à de Margherita – e, neste sentido, é interessante perceber como a ótima montagem de Clelio Benevento reflete de perto a subjetividade da diretora, fragmentando suas lembranças a tal ponto que, a partir de certo instante, mal conseguimos diferenciar entre o que é memória ou pesadelo. Enquanto isso, Nanni Moretti envolve a narrativa em uma atmosfera muitas vezes solene que leva o espectador a sentir o pânico crescente da personagem diante da possibilidade iminente da perda – e vale lembrar que Moretti é um veterano neste tema, tendo sido responsável pelo devastador O Quarto do Filho.
Justamente por ser tão denso com tamanha frequência, Mia Madre praticamente exige o alívio cômico oferecido pelas intervenções de John Turturro, cujo espírito frenético e impulsivo traz imensa frustração à disciplinada Margherita, o que também o leva a ser mais querido pela equipe que mal o conhece do que a líder com a qual trabalham diariamente (uma ironia que não escapa a esta nem ao filme). Não é acaso, aliás, que ao longo da história a pobre mulher vai sendo sufocada por contratempos crescentes que vão desde um assistente de produção que se esquece de buscar Barry no aeroporto até a inundação de seu apartamento, já que a perda de controle é possivelmente o que ela mais teme em sua vida pessoal e profissional – o que, inclusive, a leva frequentemente a exigir que seu assistente lhe revele todos os problemas enfrentados pela produção mesmo que ele esteja ali justamente para filtrar as questões menos relevantes.
Contudo, o elemento mais fascinante do longa reside em sua discussão sobre sua própria artificialidade, um tema que Moretti introduz de maneira bastante sutil ao trazer sua protagonista pedindo que os atores sob sua direção exibam, em suas performances, um pouco de si mesmos, já que deseja ver ilusão e realidade lado a lado – e quando lembramos que o nome da personagem (Margherita) é o mesmo de sua intérprete, a estratégia narrativa brilhante de Nanni Moretti começa a se delinear. Desta forma, quando logo depois o cineasta encena uma passagem em um hospital de maneira obviamente artificial, com travellings constantes que chamam atenção para si mesmos, torna-se impossível precisar o que ali é intencional ou não – sendo particularmente revelador constatar como o ator interpretado por Turturro parece oferecer uma interpretação mais falsa ao realmente dirigir um carro do que ao fingir conduzi-lo (uma ideia que é complementada quando, ao tropeçar em suas falas em italiano, ele grita um frustrado “Me levem de volta à realidade!”).
Como se não bastasse, em dois ou três momentos, Margherita e seu irmão Giovanni (que é vivido, não se esqueçam, por Moretti) condenam a artificialidade da fantasia e/ou demonstram frustração diante da trivialidade de problemas nos sets quando se comparados ao drama que sua mãe vive no hospital, como se o próprio realizador estivesse questionando, aqui, o valor do que faz – e quando consideramos que a mãe de Margherita (vivida estupendamente por Giulia Lazzarini) é professora de Latim exatamente como era a mãe de Moretti, morta há poucos anos, notamos que Mia Madre é realmente um exercício quase de autoanálise por parte do italiano.
Um exercício que passa também por uma projeção de futuro no instante em que, por pouquíssimos segundos, Ada surge vestindo as roupas da filha diante do espelho, como num flashforward do que espera não apenas Margherita, mas todos nós. Um futuro que pode, sim, ser assustador, mas que também é uma promessa de experiências vividas, de aprendizados e de relacionados construídos.
Uma visão doce sintetizada naquela que, claro, tinha mesmo que ser a última palavra ouvida em Mia Madre: “Amanhã”.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2015.
16 de Maio de 2015
Sobre o autor da crítica:
Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.