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“Referendos podem produzir tragédias”
Aylê-Salassié F. Quintão*
O plebiscito no Reino Unido vem na contramão do
processo de integração, inclusive na América. É
um golpe na União Européia e, sobretudo, na
globalização. Pode enfraquecer a posição dos
ingleses no mundo, com chance de levar a própria
Grã-Bretanha à fragmentação, assim como inspirar
outros países fragilizados na sua identidade
partilhada a adotar a mesma postura. Carlos
Marchi, o jornalista, e não Karl Marx, o
filósofo, chama o plebiscito inglês de “ o
idiotismo da democracia assembleísta”, da
“democracia direta” . Conclui que ” Referendos,
plebiscitos, eleições nem sempre trazem
soluções; podem trazer problemas e, às vezes,
produzem tragédias”. São, em geral, fruto das
inconsequentes promessas eleitorais feitas no
“calor da hora”.
Quando Cameron prometeu o plebiscito, durante a
campanha eleitoral, não parece que ele tinha uma
dimensão clara dos problemas que o cercavam.
Permanecer ou sair da União Européia era uma
questão que envolvia o caráter cultural
xenofóbico dos ingleses, refratários aos
estrangeiros, variável mal avaliada por sua
assessoria. Realizada a consulta pública, seus
efeitos fizeram emergir não apenas as
estranhezas internas, mas motivaram também
outras nações em situação desconfortável, como a
Escócia e a Irlanda, a voltar a debater a
independência do próprio Reino Unido. Os países
nórdicos, com identidades peculiares e também em
posição desconfortável, já poderiam pensar em
alternativa similar. Portugal e Espanha,
tratados com indiferença dentro da UE, tenderiam
a reforçar a relação íbero-americana. Diria que
a experiência poderia se estender até mesmo ao
Mercosul . E como ficariam os países da
Comonwealth que acessam a UE via Reino Unido? .
A sensação é a de que o plebiscito inglês
reflete um dos efeitos não previstos da
globalização, que chegou nos anos 1970/80
atropelando nacionalismos regionais, raízes e
fronteiras culturais. O Planeta foi atravessado
pelo neoliberalismo do Fórum de Davos (1971), da
Trilateral (1973), do G-7 (1976), abrindo
espaços à fórceps no mundo para o capital,
amparando-se num falso viés de prosperidade e de
democratismo. O globalismo extinguiu limites
fiscais e ampliou espaços para o comércio
internacional, conduzindo mecanismos e
tecnologias capazes de reduzir as distâncias
entre regiões e pessoas. Os Estados nacionais
viram-se diminuídos em sua autonomia, com a
privatização e o fechamento de muitas empresas e
órgãos públicos em todo o mundo, vulgarizando o
desemprego. A globalização tomou o formato de
blocos regionais e globais, do que emergiu o
Parlamento Europeu(1976), depois o
Mercosul(1991) , o Nafta(1992), União Européia
(1993), Aliança para o Pacífico (2012), outras
organizações no sul da Ásia e até o pretensioso
e destemido BRICS (2006). URSS e China foram
neutralizadas. Finalmente, uma cúpula de “700
especialistas” reunida, em 2008, em Dubai,
arrematou uma “Agenda Global".
Depois de tudo isso, o mundo ficou mais
condensado, e os cidadãos puderam circular com
certa facilidade por todos os cantos. O
indivíduo orgulhava-se da condição de
cidadão-mundo. Na estética e na ética surgiram
opções marcadas pela agressividade,
instalando-se uma desconstrução de valores e uma
certa desobediência civil. As gerações sociais
de vanguarda saudaram festivamente as novas
tendências, que colocaram os cidadãos diante de
recursos e expectativas existenciais inusitadas,
explicado eventualmente como “espasmos” da
pós-modernidade. Contudo, não se podia falar em
nome daquelas gerações sobreviventes da guerra,
que viram sonhos, famílias e países destruídos,
e que, dilacerados, ao reconquistá-los no
pós-guerra, enraizaram-se nos espaços e
territórios remanescentes, aferrando-se à suas
raízes culturais e patrimoniais, tornando-se
silenciosamente orgulhosos da sua cidadania
nacional. Cada povo restaurou a identidade e as
representações de origem, as mesmas
atravessadas, primeiro, pelo Guerra e, em
seguida, pela globalização que, praticamente,
negou as virtudes emergidas dos sobreviventes
dos conflitos.
Surgida repentinamente, impulsionada pelos
excedentes de capital no mundo, pelos
petrodólares fáceis, a globalização, concebida à
luz do neoliberalismo, serviu de amparo à
expansão das relações comerciais e para os
grandes investimentos privados. Projetou o
surgimento de uma sociedade única. Dentro desse
escopo, a migração, o livre trânsito de
trabalhadores, não deveria se constituir, então,
num fenômeno estranho, mesmo porque ela está em
todos os lugares, seja internamente, regional e
transnacionalmente. Onde há guerra, ela está lá.
Onde há emprego ela está presente. Onde há fome,
há fuga de populações. Mas a globalização é um
movimento, sobretudo, de capital e de mercados.
Quem não tem capital não é global. E esse tem
sido um problema, porque estimula enraizamentos
e trincheiras locais, ressuscitando
nacionalismos.
O plebiscito inglês reflete o cenário de
contradições criado pela globalização e que
ameaça multiplicar-se por aí. Que resultados se
poderia esperar no Brasil se, a título de
transitar por uma prática democrática, os
políticos resolvessem adotar o plebiscito para
consultar a população brasileira sobre a tese
irresponsável dos “dois brasis”, ou para decidir
se o Sul do Brasil deveria se integrar ao
Uruguai, como chegou a propor o ex-presidente
Sanguinetti, ou ainda sobre a possibilidade de
instituir um governo supranacional para os
países do Mercosul, como queria o ex-presidente
Menem, da Argentina. Munido de um espírito
amplamente democrático e supostos bons
propósitos foi que Cameron prometeu, na campanha
eleitoral, realizar o plebiscito. Feito,
comprometeu a configuração geopolitica e
econômica do Reino Unido e impactou o processo
de integração que se espalhou pelo mundo.
Jornalista, professor |
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