Theresa Catharina de Góes Campos

     
Vício dos privilégios, desprezo pelo trabalho

Aylê-Salassié F. Quintão*

Com enorme alívio, surgem as primeiras notícias de que, aqui e ali, uma empresa ou outra está abrindo vagas para contratação de pessoal. São cerca de 47 mil vagas de trabalho em todo o País. A preocupação com o desemprego devia atravessar mesmo todas as propostas públicas e privadas, por ser um mal que desnorteia a população, humilha os cidadãos e desqualifica os governos. Um recém-formado vê morrer as ilusões, um chefe de família entra em pânico, a miséria se espalha e a depressão revela faces desconhecidas.

Em Rio Claro (SP), o proprietário de uma antiga fábrica de sofá , com queda de 80% nas vendas, chamou os 233 funcionários, e propôs-lhes uma redução na jornada de trabalho. O sindicato entrou no circuito, e recusou a oferta. Contra a parede, o homem demitiu todo mundo, e fechou o negócio. Logo se viu diante do desespero e das dificuldades de sobrevivência de cerca de 200 familiares desses trabalhadores. Entrou em depressão, recolheu-se ao interior da fábrica, e amanheceu pendurado pelo pescoço numa corda.

Na França, que também passa por uma crise do emprego, a ex-executiva de uma loja de departamentos tinha vergonha de sair com os amigos porque era uma desempregada. Mesmo morando com os pais, todos os dias a jovem colocava a roupa de trabalho, pegava a pasta, e saía para as ruas, tentando esconder o desemprego. Já distribuíra currículo para todo lado. Foi enlouquecendo aos poucos.

Às 19 horas aproximadamente, voltava do trabalho, descendo a rua Charing Cross, em Londres, quando em frente da igreja de St. Martin um senhor alto, dos seus 40 a 45 anos, bem vestido, pediu para falar comigo. “Sim, fale”, respondi. Ele pegou no meu braço, e me conduziu para dentro da Igreja. Ao chegar, dirigiu-se a um canto, e disse: “Desculpe, sou um desempregado. Estou na rua desde cedo procurando trabalho. Não comi nada até agora. O Sr. poderia me dar uma ajuda?”. Tirei cinco pounds ( R$ 25,00), e entreguei para ele. Ele recebeu o dinheiro, e com as mãos juntas ao peito virou-se para a imagem do santo na parede para agradecer. Em seguida, voltou-se para mim, e me abraçou chorando.

Milhões de empregos haviam sido destruídos pela política neoliberal de Margareth Tratcher que, diariamente, fechava empresas, e colocava na rua milhares de trabalhadores. Grande número deles eram servidores de empresas públicas privatizadas. Só foram descobrir que estavam desempregados tempos depois, quando acabaram as indenizações e as remunerações temporárias. Aí cada um começou a viver as angústias pessoais, que afloravam na medida em que não conseguia mais proporcionar a própria subsistência e a dos familiares.

Esses relatos, no bojo das paralisações, dos protestos, e das reivindicações por direitos, passam, por oposição, a ideia de que, induzido à militância ideológica sistemática por profissionais da política, o brasileiro deixou de ver importância no emprego e, consequentemente, a desprezar o trabalho, para incorporar estratégias de luta por direitos, privilégios e ... mordomias. E assim surgiram sindicatos transvestidos de associações dentro do próprio serviço público: no Itamaraty, na polícia, no fisco, e até entre juízes. O patrão é o povo. Defendem dezenas de privilégios que outros trabalhadores não têm: uma covardia.

Sindicatos existem, de fato, para mediar as divergências entre o patrão e o empregado, entre o capital e o trabalho, cuja união mantém a economia funcionando e o emprego pleno. Sindicalista não é uma profissão, muito menos no serviço público. Devia ser uma atividade voluntária, proibida para funções de Estado. Mas se transformou não apenas numa atividade remunerada, e ganhou um caráter essencialmente político, inclusive dentro do coração do Estado. Algum tempo mais e, se não voltarmos à selvageria do capitalismo liberal, seremos um Estado corporativista, assim como os italianos dos tempos mussolinistas. Falta criatividade.



Se serve de ilustração para um e outro, por que não fazer como os empresários da cidade de Gotemburgo, na Suécia? Num esforço para manter os negócios e, concomitantemente, na esperança de conter o desemprego, um grupo deles estabeleceu um acordo com os trabalhadores, com duração de um ano, destinado a reduzir a jornada de trabalho, de 8 para 6 horas, sem alterar os direitos trabalhistas. Fechado o entendimento, todos se empenharam em manter as indústrias em funcionamento e potencializaram a sua produtividade. Vestiram a camisa, mesmo sob o peso do fantasma do fechamento das empresas e dos empregos.

A produtividade superou aquela conquistada nas oito horas de trabalho. Um ano foi o suficiente para que cada um refletisse sobre o privilégio de ter um trabalho e a importância de dar sua contribuição orgânica. Até os sindicatos sentiram-se inibidos para conduzir um debate sobre a exploração da mais valia. Assim como o trabalhador faz parte de uma empresa, a empresa é também parte da vida dele e, quiçá, da sua família.

*Jornalista e professor. Doutor em História Cultural
 

Jornalismo com ética e solidariedade.