|
|
|
|
|
|
Vício dos privilégios, desprezo pelo trabalho
Aylê-Salassié F. Quintão*
Com enorme alívio, surgem as primeiras notícias
de que, aqui e ali, uma empresa ou outra está
abrindo vagas para contratação de pessoal. São
cerca de 47 mil vagas de trabalho em todo o
País. A preocupação com o desemprego devia
atravessar mesmo todas as propostas públicas e
privadas, por ser um mal que desnorteia a
população, humilha os cidadãos e desqualifica os
governos. Um recém-formado vê morrer as ilusões,
um chefe de família entra em pânico, a miséria
se espalha e a depressão revela faces
desconhecidas.
Em Rio Claro (SP), o proprietário de uma antiga
fábrica de sofá , com queda de 80% nas vendas,
chamou os 233 funcionários, e propôs-lhes uma
redução na jornada de trabalho. O sindicato
entrou no circuito, e recusou a oferta. Contra a
parede, o homem demitiu todo mundo, e fechou o
negócio. Logo se viu diante do desespero e das
dificuldades de sobrevivência de cerca de 200
familiares desses trabalhadores. Entrou em
depressão, recolheu-se ao interior da fábrica, e
amanheceu pendurado pelo pescoço numa corda.
Na França, que também passa por uma crise do
emprego, a ex-executiva de uma loja de
departamentos tinha vergonha de sair com os
amigos porque era uma desempregada. Mesmo
morando com os pais, todos os dias a jovem
colocava a roupa de trabalho, pegava a pasta, e
saía para as ruas, tentando esconder o
desemprego. Já distribuíra currículo para todo
lado. Foi enlouquecendo aos poucos.
Às 19 horas aproximadamente, voltava do
trabalho, descendo a rua Charing Cross, em
Londres, quando em frente da igreja de St.
Martin um senhor alto, dos seus 40 a 45 anos,
bem vestido, pediu para falar comigo. “Sim,
fale”, respondi. Ele pegou no meu braço, e me
conduziu para dentro da Igreja. Ao chegar,
dirigiu-se a um canto, e disse: “Desculpe, sou
um desempregado. Estou na rua desde cedo
procurando trabalho. Não comi nada até agora. O
Sr. poderia me dar uma ajuda?”. Tirei cinco
pounds ( R$ 25,00), e entreguei para ele. Ele
recebeu o dinheiro, e com as mãos juntas ao
peito virou-se para a imagem do santo na parede
para agradecer. Em seguida, voltou-se para mim,
e me abraçou chorando.
Milhões de empregos haviam sido destruídos pela
política neoliberal de Margareth Tratcher que,
diariamente, fechava empresas, e colocava na rua
milhares de trabalhadores. Grande número deles
eram servidores de empresas públicas
privatizadas. Só foram descobrir que estavam
desempregados tempos depois, quando acabaram as
indenizações e as remunerações temporárias. Aí
cada um começou a viver as angústias pessoais,
que afloravam na medida em que não conseguia
mais proporcionar a própria subsistência e a dos
familiares.
Esses relatos, no bojo das paralisações, dos
protestos, e das reivindicações por direitos,
passam, por oposição, a ideia de que, induzido à
militância ideológica sistemática por
profissionais da política, o brasileiro deixou
de ver importância no emprego e,
consequentemente, a desprezar o trabalho, para
incorporar estratégias de luta por direitos,
privilégios e ... mordomias. E assim surgiram
sindicatos transvestidos de associações dentro
do próprio serviço público: no Itamaraty, na
polícia, no fisco, e até entre juízes. O patrão
é o povo. Defendem dezenas de privilégios que
outros trabalhadores não têm: uma covardia.
Sindicatos existem, de fato, para mediar as
divergências entre o patrão e o empregado, entre
o capital e o trabalho, cuja união mantém a
economia funcionando e o emprego pleno.
Sindicalista não é uma profissão, muito menos no
serviço público. Devia ser uma atividade
voluntária, proibida para funções de Estado. Mas
se transformou não apenas numa atividade
remunerada, e ganhou um caráter essencialmente
político, inclusive dentro do coração do Estado.
Algum tempo mais e, se não voltarmos à
selvageria do capitalismo liberal, seremos um
Estado corporativista, assim como os italianos
dos tempos mussolinistas. Falta criatividade.
Se serve de ilustração para um e outro, por que
não fazer como os empresários da cidade de
Gotemburgo, na Suécia? Num esforço para manter
os negócios e, concomitantemente, na esperança
de conter o desemprego, um grupo deles
estabeleceu um acordo com os trabalhadores, com
duração de um ano, destinado a reduzir a jornada
de trabalho, de 8 para 6 horas, sem alterar os
direitos trabalhistas. Fechado o entendimento,
todos se empenharam em manter as indústrias em
funcionamento e potencializaram a sua
produtividade. Vestiram a camisa, mesmo sob o
peso do fantasma do fechamento das empresas e
dos empregos.
A produtividade superou aquela conquistada nas
oito horas de trabalho. Um ano foi o suficiente
para que cada um refletisse sobre o privilégio
de ter um trabalho e a importância de dar sua
contribuição orgânica. Até os sindicatos
sentiram-se inibidos para conduzir um debate
sobre a exploração da mais valia. Assim como o
trabalhador faz parte de uma empresa, a empresa
é também parte da vida dele e, quiçá, da sua
família.
*Jornalista e professor. Doutor em História
Cultural |
|
|
|