Theresa Catharina de Góes Campos

     
De: Máikol
Data: 30 de agosto de 2016 10:59
Assunto: Reflexões Homiléticas e Mês da Bíblia

VIGÉSIMO SEXTO DOMINGO COMUM (25.09.16)

Lucas 16,19-31

“Mesmo que um dos mortos ressuscite, eles não ficarão convencidos”

            Este último trecho do capítulo dezesseis continua os ensinamentos de Jesus sobre as riquezas, ou melhor, sobre a questão fundamental da partilha dos bens como necessidade absoluta para os seus discípulos. Aqui temos a famosa parábola do “Rico e Lázaro”, e também a reflexão sobre o destino dos irmãos do rico. Levanta a questão: “Irão seguir o exemplo do irmão rico, ou atender o ensinamento tanto de Jesus como do Antigo Testamento sobre o cuidado dos necessitados, como Lázaro, e assim se tornarem “Filhos de Abraão”?

            Os destinatários do Evangelho de Lucas eram as comunidades cristãs urbanas das cidades gregas do Império Romano. A imagem da parábola é típica da sociedade urbana - tanto a de então como a de hoje! De um lado, o rico que esbanja dinheiro e comida em banquetes e futilidades, e do outro lado o pobre miserável, faminto e doente. Ambos vivem lado ao lado, sem que o rico tome conhecimento da existência e dos sofrimentos do pobre! Quantos exemplos disso existem hoje - lado ao lado com a maior opulência, a mais desumana miséria, e entre as duas situações uma barreira de cegueira e indiferença?

            É muito interessante - e importante para a nossa compreensão da parábola - que os vv. 22-26 não dizem que o rico foi para o inferno por que ele fazia algo moralmente repreensível; e nem que Lázaro foi para o céu porque ele era “santo”. Por isso, por tão inconveniente que possa soar em uma sociedade como a nossa, dá para entender que esse trecho condena o rico simplesmente por ser insensível, em uma sociedade de empobrecimento, e abençoa o pobre pelo simples fato de estar sofrendo a miséria em uma sociedade que esbanja os bens necessários para a vida. É interessante que no texto, o rico não tem nome, mas o pobre sim – “Lázaro” que dizer em hebraico “auxiliado por Deus”. A riqueza torna-se pecado diante da situação desumana dos pobres, pois é a negação da partilha e da solidariedade! O que dizer então da nossa sociedade atual neoliberal, com a escandalosa desigualdade que ela ostenta? O rico foi condenado porque ele simplesmente se fechou diante do sofrimento alheio – a parábola não diz uma palavra sobre o comportamento dele fora desse aspecto. Esse fechamento é a negação de todo o ensinamento do Antigo e do Novo Testamento. O simples fato de existir lado ao lado o rico opulento e o Lázaro sofrido é a condenação de uma sociedade pecaminosa que permite esta situação anti-evangélica.

            A segunda parte da história, versículos 27-31, continua com o diálogo entre o rico e Abraão, e mostra claramente que a sua indiferença diante do sofrimento de Lázaro não estava de acordo com o Antigo Testamento (vv. 29-31), e nem com Jesus (v. 9). Enfatiza que nem manifestações milagrosas vão mudar o coração duro de quem não quer ouvir a Palavra de Deus: “Abraão lhe disse: “Se eles não escutam a Moisés e os profetas, mesmo que um dos mortos ressuscite, eles não ficarão convencidos.” (v. 31); “Moisés e os profetas” significam a Escritura, pois a Bíblia hebraica se dividiu em Lei (= Moisés) e Profetas.

Palavra tão atual! Pois não é por falta de conhecimento da Palavra de Deus que o mundo se acha na sua situação atual. Não é por desconhecimento do ensinamento de Jesus sobre a fraternidade e a solidariedade, que temos uma sociedade excludente hoje no Brasil! Não é por falta de celebrações litúrgicas e sacramentais que há tanto sofrimento nas nossas ruas e bairros! É simplesmente porque a sociedade opta por se organizar conforme critérios anti-evangélicos, e porque tantos cristãos reduzem o cristianismo a uma série de leis, ritos e doutrinas - muitas vezes não ultrapassando muito de uma simples lista de “boas maneiras”. Optamos por diluir as exigências do Evangelho para que possamos continuar com os “ricos” e os “Lázaros” de hoje, lado ao lado, sem que estes incomodem aqueles! Sabemos o que a Bíblia diz, conhecemos muito bem o ensinamento de Jesus - e continuamos na construção de uma sociedade injusta, fundamentada sobre a idolatria do lucro, com a consequência automática do sofrimento e exclusão.

            O rico e Lázaro continuam morando hoje em nossas cidades. Jesus hoje nos desafia para que optemos para uma outra forma de sociedade, onde todos terão acesso aos bens necessários para uma vida digna. Se não queremos ouvir o que nos diz a Palavra de Deus, se nós queremos continuar surdos diante do grito dos excluídos, então o nosso destino será também aquele do rico da história.

            “Tenho medo de não responder, de fingir que não escutei; tenho medo de ouvir teu chamado, virar doutro lado e fingir que não sei!” – diz a cantiga!

            Lucas não deixa que o leitor evite as questões gritantes da ligação entre fé e vida, entre religião e economia- questões mais atuais do que nunca, sempre abordadas pelo Papa Francisco, que na verdade simplesmente nos recorda o ensinamento do Evangelho, que a sociedade conhece bem, mas reluta para não colocar em prática.

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VIGÉSIMO QUINTO DOMINGO COMUM (18.09.16)

Lucas 16,1-13

“Quem é fiel nas pequenas coisas, também é nas grandes”

            Este texto faz parte de um capítulo aparentemente fragmentado, mas, que realmente tem como tema unificador o uso dos bens materiais em benefício dos outros, especialmente dos mais necessitados. Divide-se em quatro segmentos inter-relacionados: vv. 1-8a; vv. 8b- 13; vv. 14-18; vv. 19-31. Três destes trechos serão usados hoje e nos próximos dois domingos.

            A interpretação popular da primeira parte, a história do “Administrador Injusto”, traz muitos problemas para os pregadores. Pois, aparentemente, Jesus está elogiando quem agisse de maneira desonesta. Tal interpretação é moralmente inaceitável. Por isso, temos que olhar bem a história - os estudiosos não estão de acordo se trata-se de uma parábola, ou uma “história-exemplo”, que Lucas também usa muito (10, 29-37; 12, 16-21; 16, 19-31;18, 9-14).

            Para que entendamos melhor o contexto da história, é bom saber que os documentos da época atestam que frequentemente se usava o sistema aqui relatado. Como a cobrança de juros era proibida pela Lei, o administrador embutiu o ágio na “nota promissória”. Por exemplo, uma pessoa talvez tivesse emprestado 200 litros de azeite, mas por causa dos juros de 100%, a conta dele acusava 400 litros. Então, na história de Lucas, o administrador, enfrentando a demissão, resolve na mesma hora vingar-se do seu patrão - reduzindo as contas devidas ao seu valor real, e assim perdendo para ele os juros - e fazer amigos para ele mesmo, entre os devedores.

            O “patrão” ou “Senhor” a que se refere o v. 8a não é Jesus, mas o “homem rico” do v.1. Ele “elogiou” o administrador desonesto, por sua esperteza! A palavra grega aqui traduzida por “esperteza” significa uma estratégia prática visando alcançar um fim determinado. Tem nada a ver com a virtude, no sentido mais geral de agir com justiça. Assim, embora possa parecer, à primeira vista, que Lucas esteja elogiando a desonestidade, a interpretação mais exegética diz que o que devemos imitar não é a desonestidade, mas, o bom senso na administração dos bens materiais.

            Para os que entendem o trecho como uma verdadeira parábola, há duas explicações possíveis: uma diz que o que Jesus quer ensinar é que os seus discípulos, quando confrontados com a decisão de segui-Lo ou não, devem agir de maneira decisiva, como fez o administrador quando confrontado com a sua situação de crise, e não vacilar. A outra interpretação vai na direção do “contraste”: o sentido normal de justiça não condiz com a atitude condizente do patrão em v. 8. Assim, se faz contraste entre a maneira de agir dos homens e de Deus. Este ponto de vista corresponde com outros ensinamentos em Lucas sobre a nova justiça, a justiça do Reino e a dos homens - os critérios da “justiça do Reino de Deus” não são os da sociedade, mas exigem o perdão e o relacionamento com os inimigos.

            A segunda parte do trecho - vv. 8b - 13 - são aplicações práticas de como os discípulos devem usar os bens materiais. Indica o entusiasmo dos “que pertencem a este mundo” como exemplo para os discípulos que muitas vezes são insossos no seu seguimento de Jesus. “O dinheiro injusto”, que pertence a um mundo com princípios de exploração, pode até servir aos discípulos quando usado para a partilha com os necessitados, que se converterão em “amigos” que “vão receber vocês nas moradas eternas” (v. 9).

            Outro ponto destacado é a necessidade de fidelidade diária. Se nós partilhamos os nossos bens na convivência quotidiana, ganharemos os verdadeiros bens imperecíveis como prêmio eterno. Mas, isso exige fidelidade e lealdade total a Deus - a alternativa é sucumbir às tentações da injustiça que escraviza, - e a gente fica leal a este Deus através da partilha dos bens, especialmente com os mais necessitados.

            Embora possamos discutir e debater sobre interpretações minuciosas do trecho, uma coisa é inegável: Jesus quer advertir os seus seguidores sobre a tentação de escravizar-se com o dinheiro, e na mesma hora, exigir que a partilha material seja ponto marcante da vivência dos seus discípulos!

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VIGÉSIMO QUARTO DOMINGO COMUM (11.09.16)

Lucas 15, 1-32.

“A Ovelha, A Moeda e O Filho, Perdidos e Achados”

            O Evangelho de Lucas prima pela sua ênfase na misericórdia de Deus. Se fosse para classificar numa só palavra o rosto de Deus em Lucas, poderíamos sem hesitação assinalar “misericórdia”. Talvez nenhum capítulo saliente esta convicção tanto como o capítulo 15, que hoje lemos na sua totalidade.

            As três parábolas aqui relatadas são entre as mais conhecidas da Bíblia - geralmente chamadas (com razão ou não) “A Ovelha Perdida”, “A Moeda Perdida” e “O Filho Pródigo”. Talvez devamos ter um pouco de cuidado com esses títulos - já consagrados pelo uso - pois já indicam uma possível interpretação do ponto central de cada parábola - não necessariamente a mais adequada!

            De fato, cada parábola poderia ficar independente, e ter a sua interpretação fora do contexto da sua colocação em Lucas. Mas, para que sejamos fiéis à intenção do evangelista, devemos interpretá-las dentro do seu esquema teológico e literário. A Parábola da Ovelha também existe em Mateus, mas dentro de outro contexto e com outros destinatários, tornando-se a parábola da “Ovelha Desgarrada”. Em Mt 18, 12-14, a parábola é dirigida aos discípulos, enquanto em Lc é contada para os fariseus e escribas. Como os destinatários são diferentes, também a sua mensagem é diferente nos dois contextos.

            Para entender melhor o que Lucas quer ensinar, devemos dar muita atenção aos primeiros dois versículos do capítulo 15. Pois, estes versículos nos fornecem o motivo pelo qual Jesus contou as parábolas, e, por conseguinte, uma chave valiosa de interpretação. Funcionam como um gancho sobre o qual se pendura o resto do capítulo: “Todos os cobradores de impostos e pecadores se aproximavam de Jesus para escutá-Lo. Mas, os fariseus e os doutores da Lei criticavam a Jesus, dizendo: “Esse homem acolhe pecadores, e come com eles!” (vv. 1-2). Depois, vem a chave de interpretação: “Então, Jesus contou lhes esta parábola” (v. 3). Ou seja, Jesus contou estas parábolas porque os fariseus e doutores da Lei o criticavam por associar-se com gente de má fama! Então, a chave de interpretação é a atitude dos fariseus e doutores, contestada pelo ensinamento de Jesus.

            Neste sentido podemos interpretar a parábola conhecida como a parábola da “Ovelha Perdida”. Jesus, diante da intransigência dos fariseus, pergunta: “Se um de vocês tem cem ovelhas e perde uma, será que não deixa as noventa e nove no campo para ir atrás da ovelha que se perdeu, até encontrá-la?” (v. 4). A resposta razoável é “não” - nenhum pastor, com a cabeça no lugar, deixaria noventa e nove ovelhas à deriva para tentar encontrar uma ovelha perdida. Seria loucura! Mas, exatamente aqui está o sentido da parábola - Deus faz loucuras por amor a nós! Ele é capaz de fazer o que nenhuma pessoa humana faria - ir atrás da ovelha perdida, custe o que custar, até achar e trazer de volta! Aqui a parábola funciona não por comparação, mas por contraste - Deus é o oposto dos homens, que só agem através de decisões calculistas. Faz loucura - e a loucura do amor consegue o que a razão jamais conseguiria, a volta da ovelha perdida! Assim, se faz contraste entre a atitude de Deus e a atitude dos fariseus e doutores da Lei! Nos questiona sobre as nossas atitudes diante das “ovelhas perdidas” das nossas comunidades e famílias! Agimos como os fariseus, com censuras e moralismos? Ou, como Deus, com a loucura do amor?

            Retoma-se a mensagem na segunda parábola - a parábola da “moeda perdida”. Não que ela fosse de tão grande valor. Mas, para a pobre, até uma moeda pequena faz falta! Então, a mulher faz questão de virar a casa (as casas não tinham janelas, por isso precisava acender uma lâmpada) até achá-la. É assim com Deus - talvez a gente ache que uma pessoa não tenha grande valor, mas para Deus faz falta, e Ele é capaz de “exagerar” para recuperar a pessoa perdida, por tão insignificante que possa parecer. Mais uma vez, um contraste com a atitude elitista dos fariseus - e quem sabe, de muitos cristãos hoje!

            Por fim, chegamos à parábola do “Filho Pródigo”, ou do “Pai que perdoa”, ou dos “Dois Irmãos”, conforme a interpretação e o gosto de cada um! Fiquemos somente com o texto sagrado e não com os subtítulos! Podemos ler este texto a partir do filho perdido, ou do pai, ou do irmão mais velho. O título tradicional implica uma leitura a partir do “pródigo” (= esbanjador). Assim, ressaltaria o processo de conversão - sentir a situação perdida, decidir a pedir reconciliação, ser aceito pelo pai, reativar os relacionamentos perdidos e estragados. Sem dúvida, uma leitura válida do texto como tal – mas, diante dos primeiros três versículos do capítulo, não a interpretação primária que Lucas queria dar.

            Outra possibilidade é de ler a história a partir do pai. Sem dúvida, também válido. Assim, o pai representa o próprio Deus, que em primeiro lugar, respeita a liberdade de decisão do filho, não impedindo que ele seja “sujeito” da sua vida; depois, não espera a volta do “pródigo”, mas corre ao seu encontro, numa atitude não “digna” de um patriarca oriental idoso, preocupado mais com a reconciliação do que com o prejuízo, e que se alegra com a volta de quem estava morto! Mais uma vez, uma leitura mais do que aceitável!

            Mas, o contexto do capítulo quinze, à luz dos primeiros versículos, sugere uma leitura diferente - a partir do irmão mais velho. Pois, Jesus conta a parábola para contestar a atitude dos fariseus e doutores da Lei, que o reprovam porque Ele acolhe os pecadores! Então, o filho mais velho é imagem dos fariseus - “gente boa”, fiel na observância da Lei, mas cujos corações estão fechados, a ponto de serem incapazes de alegrar-se com a volta de um irmão perdido. Assim, embora observem minuciosamente todas as prescrições da Lei, a atitude deles contradiz claramente a atitude de Deus! No fundo a questão é, em que Deus acreditamos? – um Deus que age com critérios humanos, não buscando nem acolhendo pecadores, ou o Deus de Jesus, “enlouquecido” pelo amor que faz “loucuras” para que ninguém se perca! Aqui temos ecos de Is 55, 10-11, onde Deus afirma: “Os meus caminhos não são os caminhos de vocês e os meus pensamentos não são os pensamentos de vocês”.

            Aqui, Jesus questiona todos nós que somos “praticantes”. Somos capazes de reconhecer a nossa própria fraqueza e miséria espiritual, como fez o “pródigo”? Somos capazes de correr ao encontro de um irmão perdido, como fez o pai? Ou somos como o irmão mais velho - “gente boa”, gente de “observância”, mas gente incapaz de ter um coração de misericórdia, de alegrarmo-nos com a volta ao estado original do irmão ou irmã perdido/a?

            Podemos até dizer que o capítulo quinze de Lucas é o coração do seu Evangelho. Pois Deus, o Deus de Jesus e o Deus de Lucas, é o Deus que não se alegra com a perda de quem quer que seja, mas, com a volta do pecador. É o Deus que se encarnou em Jesus de Nazaré, para salvar quem estivesse perdido. É o Deus de misericórdia e do perdão. Como traduzimos esta visão de Deus em nossa vida?

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VIGÉSIMO TERCEIRO DOMINGO COMUM (04.09.16)

Lucas 14, 25-33

“Quem não carrega a sua cruz... não pode ser meu discípulo”

            Aprofundando o ensinamento sobre o discipulado, Jesus aqui expõe as condições para um verdadeiro seguimento. À primeira vista, a leitura pode nos chocar! Pode até parecer que Jesus esteja ensinando algo que não condiz muito com os ensinamentos cristãos. Isso especialmente se a tradução da nossa bíblia fala que nós devemos “odiar” os nossos pais e família (uma tradução literalmente correta). Mas, aqui estamos novamente diante do problema das culturas e das línguas. Pois, esse texto nos traz um “semitismo”, ou seja, uma expressão de uma língua semita (no caso de Jesus, o aramaico, embora Lucas escreva em grego) que tem que ser interpretada no contexto da cultura que aquela língua expressa. O aramaico e o hebraico usavam muitas expressões assim, que não tinham a mesma força que têm em português. Realmente o termo traduzido por “odiar” significava “desapegar-se”. Então podemos traduzir em termos inteligíveis portugueses: “Se alguém vem a mim, e não dá preferência mais a mim do que ao seu pai, à sua mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs, e até mesmo à sua própria vida, esse não pode ser meu discípulo” (v. 26).

            Jesus quer deixar bem claro - como Ele faz muitas vezes “na caminhada” - que a opção pelo Reino necessariamente exige renúncias. Não só renúncia do mal e do pecado, mas, renúncia de coisas altamente positivas em si; não renúncia por renunciar, mas, em vista de um bem maior - o Reino de Deus, o único bem que pode satisfazer plenamente os anseios mais profundos do coração humano. Por isso, a vinda de Jesus pode ser vista como a crise escatológica última - pois põe todos nós diante da opção mais fundamental: Quais são os valores reais da nossa vida?

No mundo pós-moderno, onde se foge dos compromissos permanentes, onde tudo é relativizado, os desejos individuais são absolutizados, e a subjetividade se confunde com o individualismo, esta proposta soa como contra-cultural. Na verdade, é contra-cultural em uma cultura consumista, materialista, individualista, onde o maior valor é a gratificação individual imediata e a preocupação com o bem-comum é relegada a um segundo plano, se é que seja levado em conta! Jesus nos convida a definir os valores mais profundos da nossa vida - e insiste que nada, por mais valioso que seja, possa ser mais importante do que a dedicação total ao Reino. Claro, Ele não nos obriga - estamos livres para recusar esta exigência, mas então não seremos discípulos d’Ele! Aqui põe em cheque a vivência do cristão que “não é frio nem quente, mas morno”, e por isso mesmo “está para ser vomitado da minha boca” (Ap 3, 16). Vivendo em um mundo onde há muita coisa “light” – margarina, refrigerante, até feijoada! – também está em voga um Jesus “light”, sem exigências de autodoação, sem senso crítico diante da realidade de tanto sofrimento, mas, que nos confirma em uma prática religiosa aburguesada e acomodada que nos consola e não nos incomoda ou perturba. Pregadores desse “Jesus light” fazem sucesso nas emissoras de rádio e televisão – mas traem o Jesus real, Jesus de Nazaré, que veio para que todos tivessem vida plena (Jo 10, 10) mesmo que custasse a sua vida. É esse Jesus que nos convida hoje ao discipulado.

            O tema da cruz reaparece aqui - e de novo lembramos que “carregar a cruz” não é de maneira alguma simplesmente “sofrer” por sofrer. É a consequência de uma coerência com o projeto e a proposta de vida de Jesus. É condição imprescindível para quem quer ser discípulo d’Ele: “Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (v. 27). Podemos dizer que, se o trecho que precede este texto (vv. 15-24, “Um rei fez um grande banquete”) enfatiza a gratuidade do chamamento da parte de Deus, esses versículos salientam o outro lado da medalha - a resposta incondicional dos discípulos. Todo o Evangelho de Lucas - como também os outros - deixa bem claro que esta resposta é a meta da nossa vida. Ninguém começa a caminhada com total dedicação ao Reino - mesmo que pense que faz! É na caminhada de anos, com as nossas incoerências, tropeços, erros, e traições, que a gente aprende a ser discípulo/a. A experiência de Pedro e dos Doze que nos diga!

            As duas parábolas seguintes - a do construtor tolo e do rei que vai à guerra - nos ensinam a necessidade de reflexão antes da ação. Ou seja, aqueles que querem seguir Jesus devem refletir sobre o preço a pagar. A situação triste do construtor falido e do rei derrotado são símbolos da situação do discípulo que desistiu “pelo caminho”.

            A reflexão sobre as exigências do discipulado pode nos desanimar diante da realidade das nossas fraquezas, a não ser que reflitamos também sobre a gratuidade de Deus que não nos abandona, mas nos ama como somos e nos dará forças para a caminhada. Assim foi a experiência do grande discípulo Paulo, que após longos anos de experiência, incluindo as maiores experiências místicas e os maiores sofrimentos, pôde afirmar com toda a sinceridade: “Eu não consigo entender nem mesmo o que faço; pois não faço aquilo que eu quero, mas aquilo que mais detesto... Não faço o bem que quero, e sim o mal que não quero” (Rm 7, 15s). Mas, mesmo assim, reconhecendo os fracassos e falhas na sua caminhada de discípulo, exclama com alegria: “Portanto com muito gosto, prefiro gabar-me das minhas fraquezas, para que a força de Cristo habite em mim. É por isso que eu me alegro nas fraquezas, humilhações, necessidades perseguições e angústias, por causa de Cristo. Pois, quando sou fraco, então é que sou forte (2Cor 12, 9s).

            Pois, se ele fez a experiência das exigências inerentes ao seguimento de Jesus, ele também fez a experiência da graça de Deus: “Para você, basta a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta o seu poder” (2Cor 12, 9). O Ano de Misericórdia nos recorda essa realidade e nos convida à experiência da misericórdia de Deus em nossas vidas e a levar essa experiência a todos que encontramos. Não tenhamos medo de assumir o desafio que Jesus hoje nos lança, pois Ele nos dará a graça necessária para a caminhada. Basta querer e pedir!

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Tomaz Hughes SVD

e-mail: thughes@netpar.com.br

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PRATICAR A JUSTIÇA, AMAR A MISERICÓRDIA E CAMINHAR COM DEUS

Setembro 2016 = Mês da Bíblia

Como já é de costume, as comunidades católicas do Brasil estão convocadas para fazer do mês de setembro o “Mês da Bíblia”. A escolha cai em setembro por causa da festa de São Jerônimo, no dia 30 de setembro, grande estudioso e podemos até dizer, padroeiro do uso da Bíblia pelo Povo de Deus. A CNBB propõe a todas as comunidades um texto a ser aprofundado nesse tempo de graça. Para 2016, o tema escolhido é “Para que neles os povos tenham vida: O Livro de Miquéias” e o lema “Praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar com Deus”.

            Torna-se importante distinguir entre dois profetas chamados Miquéias, que viviam e profetizavam em épocas diferentes. Em 1Rs 22, 7-28 encontramos Miquéias de Jemla, que confrontava destemidamente o Rei Acab de Israel. Porém, o Livro de Miquéias contém oráculos e pronunciamentos do profeta Miquéias de Morasti, que profetizava no Reino de Judá, um século mais tarde, durante os Reinos dos Reis Joatão, Acaz e Ezequias. As indicações cronológicas do próprio livro indicam que a sua ação profética se deu entre 727 e 701 a.C.

            É bom que clarifiquemos algumas caraterísticas do autêntico profeta bíblica. Examinando a pregação e a atuação de tantos homens e mulheres nas páginas das Escrituras, e especialmente o maior de todos, Jesus de Nazaré, podemos afirmar que, em primeiro lugar, o profeta é movido pelas suas profundas experiências de Deus e do povo. É no confronto entre a situação real do povo sofrido e a proposta de Deus, revelada na história, e em grande parte descrito nas Escrituras, que o profeta sente o impulso divino para ser a voz de Deus em favor dos que a sociedade dominante não permite ter voz nem vez. Muitas vezes ele preferiria ficar calado, mas o Espírito do Senhor o impele e ele sente a impossibilidade de calar-se ou omitir-se diante de tanto sofrimento e opressão que ele entende, corretamente, como rejeição do Deus da Aliança, mesmo que os detentores do poder mantenham a fachada de ritos religiosos e louvores a Deus.

            Ele é caraterizado pela veemência - pois antes de tentar convencer outros, ele mesmo é totalmente convencido do que fala. De Elias, se escrevia que “suas palavras queimavam como uma tocha” (Eclo 41, 1). É empolgante e cheio de paixão. Ele reflete o mundo em convulsão, em crise, mesmo quando a crise é camuflada pelos poderosos. É tomado pelo Espírito que põe fogo. Assim podemos entender as palavras de Amós, que foi proibido a falar no templo de Betel pelo sacerdote Amasias: “Eu não sou profeta nem discípulo de profeta. Eu sou criador de gado e cultivador do sicômoros. Foi Javé quem me tirou de trás do rebanho e me ordenou: “Vá profetizar ao meu povo Israel”. Pois bem escute agora a palavra de Javé....” (Am 7, 14-16). Ele sabe que vai sofrer pela profecia, mas, não pode resistir à ação do Espírito: “Ruge o leão: Quem não temerá? Fala o senhor Javé: quem não profetizara?” (Am 3, 8). Como consequência, o profeta anuncia o projeto de Deus e denuncia tudo o que se opõe a Ele. Defende o fraco e confronta o forte, seja ele Rei, comerciante, Sacerdote ou falso profeta e como consequência, é quase sempre uma pessoa perseguida, expulsa, torturada e assassinada.

            Assim podemos dizer que é sempre necessário contextualizar o profeta, pois não fala nem age num vácuo. É na leitura que faz da realidade que o cerca, sempre a partir da ótica dos sofridos e explorados, que ele encontra a mensagem de Deus. Olhemos algo do contexto político-econômico-social do tempo de Miquéias de Morasti para entendermos melhor a sua atuação e mensagem.

            O elemento determinante no cenário internacional foi a ascensão do Império Assírio, dominando todos os pequenos estados da região numa grande expansão comandada pelo Imperador Tiglat-Falaser III (745-727). Dois dos pequenos estados, Damasco e Israel se uniram para invadir Judá, tirar o Rei do trono e colocar outro que iria se aliar a eles numa aliança anti-assíria. Isso causou a Guerra Siro-Efraimita que deixou desolação, pilhagem e massacre onde passasse. Para se salvar, o Rei de Judá pediu a ajuda de Assíria, que teve como consequência colocar o pequeno Reino, onde morava Miquéias e o seu povo, sob o jugo implacável assírio. Em 721 a.C, a capital de Israel, Samaria foi destruída, a maioria do povo deportado e muitos estrangeiros importados como colonizadores. Era o fim do Reino do Norte, Israel. Judá então experimentou um grande crescimento populacional com a chegada de muitos do norte e uma enorme expansão comercial, mas que na verdade só beneficiava uma pequena minoria às custas da população camponesa.

            Toda a região entrou numa época de instabilidade política com alianças militares, invasões, sítios. A população do campo sofria horrores com saques constantes, concentração de terras, roubo de campos, pilhagem. Morasti, cercada por cidades fortificadas e quartéis, sofria muito os resultados do militarismo. Nesse cenário ressoava a voz de Miquéias, talvez um ancião de uma vila interiorana, denunciando a ganância da classe dominante, o roubo das terras, a destruição dos lares, e lembrando que isso tudo era a rejeição do Deus da Aliança, que queria vida digna para todos.

            Miquéias não hesita em identificar os opressores do povo e de condená-los em nome de Deus. São as lideranças políticas e legisladores: “Ai daqueles que, deitados na cama, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos e os roubam; querem uma casa e a tomam” (2, 1-2). Não escapam os juízes: “Não é obrigação de vocês conhecer o direito? Inimigos do bem e amantes do mal, vocês esfolam o povo e descarnam os seus ossos...” (3, 1-4). Enfim ele vê a sociedade dominante como Deus a vê - um conluio de políticos, juízes, comerciantes e lideranças falsas religiosas, movidos à ganância e camuflando tudo com um discurso religioso falso: “Ouçam isso, chefes da casa de Jacó; prestem atenção governantes de Israel, vocês que têm horror ao direito e entortam tudo o que é reto; constroem Sião com sangue e Jerusalém com perversidade. Os chefes de vocês proferem sentenças a troco de suborno; seus sacerdotes ensinam a troco de lucro, e seus profetas dão oráculos por dinheiro. E ainda ousam apoiar-se em Javé!... Por culpa de vocês, Sião será arada como um campo, Jerusalém se tornará um montão de ruínas, e o monte do Templo será um colina cheia de mato”! (3, 9-12).

            O Profeta, porém, não é só de denúncia, mas de anúncio. Além de denunciar a situação nefasta da sociedade, muitas vezes justificada por um discurso religioso falso, ele alimenta a esperança e a resiliência dos pobres e fracos, mostrando que Deus jamais os abandona. Fomenta a esperança em dias melhores, que virão pelo esforço solidário dos fracos e não pela força armada - “ajuntarei as ovelhas estropiadas, reunirei as que foram dispersas e aquelas que eu mesmo castiguei. Farei dos estropiados um resto e das dispersas uma nação forte; e, no monte Sião, Javé reinará sobre elas, desde agora e para sempre” (4, 6-7). Em Cap. 5 profetiza que sairá de Belém (lugar do pastor Davi, e não da poderosa Jerusalém) “aquele que há de ser o chefe de Israel. Ele próprio será a paz!” (5, 4). Os primeiros cristãos não tiveram dificuldade em reler esses versículos à luz de Jesus, o Messias.

            Resumindo a sua mensagem, Miquéias lembra que a proposta de Deus para nós não é complicada nem complexa: “Ó homem, já foi explicado o que é bom e o que Javé exige de você: praticar o direito, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o seu Deus.” (6, 8)

            Sem fazer comparações simplistas, não é difícil traçar paralelos entre a situação sofrida do povo do tempo de Miquéias e o nosso povo hoje. Em nossos tempos não faltam espoliação, ganância, corrupção, suborno, discurso religioso alienante, falso profetismo. Miquéias nos alerta para que não percamos o ânimo, nem compactuemos com uma situação que parece irreversível. Nos ajuda a buscar na fé a certeza que Deus está com os sofridos e nunca com os opressores, e nos convida a descobrir como agir para que se estabeleça a sociedade que Deus quer, alimentados pelo exemplo e palavras proféticos, especialmente do Profeta por excelência, Jesus de Nazaré.

Tomaz Hughes SVD

e-mail: thughessvd@yahoo.com.br

 

Jornalismo com ética e solidariedade.